A crise sanitária causada pela pandemia da Covid-19 é global e
totalitária. Ela atingiu todos os países e camadas da vida social,
convertendo-se, em muitas regiões, em crises econômicas, sociais e
políticas. Dentre as esferas que mais têm sido atingidas – e gerado
incertezas sobre o nosso futuro –, está a do mundo laboral. Sendo o
trabalho um elemento constitutivo do ser social e, portanto,
estruturador da sociedade, a sua radical transformação poderá ter
consequências incalculáveis. Fala-se de uma inflexão histórica e do
surgimento de um “novo normal” no pós-pandemia. No entanto, tudo indica
que se intensificarão as tendências de maior precarização do trabalho,
transformando algumas exceções dos tempos viróticos em regras.
Antes da pandemia, afirmava-se que estávamos em pleno processo de uma
quarta revolução tecnológica. Disruptivas, as novas tecnologias de
informação e comunicação, assim como as novas máquinas automatizadas,
passariam a ser incorporadas no mundo do trabalho e no cotidiano de
nossas vidas. Um admirável mundo novo, ultramoderno, de máquinas que se
autogovernam e se autocomunicam, era contemplado por vários setores da
sociedade. No entanto, o planeta se viu obrigado, no início deste ano, a
paralisar suas cadeias globais de produção, fechar suas fronteiras e
submeter parcelas significativas da população ao isolamento social. Com
isso, viu-se que o projetado era uma ilusão, trazendo à tona suas
contradições.
Um impacto visível na vida das pessoas, ainda durante a pandemia, foi
o salto qualitativo na necessidade de mediarmos as nossas relações
sociais com os recursos virtuais. Exemplo disso é a excepcionalidade
desta edição da Mostra Ecofalante, que acontecerá por via remota, com o
auxílio de uma plataforma digital. No caso da seção sobre o mundo do
trabalho, ela conta com quatro espetaculares filmes que abordam
diferentes realidades e perspectivas sobre as condições de trabalho e
sua exploração por parte do capital, assim como suas múltiplas formas de
resistências.
Nas últimas décadas, o capitalismo em sua fase neoliberal globalizou
sua produção, deslocando-a dos países ricos para os periféricos, em
particular os asiáticos. Aqui, encontrou-se uma força de trabalho muito
mais barata e disposta a altas jornadas de trabalho. Consequentemente,
baratearam-se os produtos e acelerou-se o processo de
desindustrialização dos países centrais. Essa é a realidade retratada em
Botando pra Quebrar,
filme de Lech Kowalski, no qual os operários da fábrica de autopeças
GM&S, localizada em La Souterraine, no interior da França, viram-se
obrigados a ocupá-la diante da possibilidade de seu fechamento e da
perda de seus postos de trabalho, ameaçando explodi-la caso suas
demandas não fossem atendidas.
Indústria Russa,
documentário de Petr Horký, explora os conflitos e resistências
ocorridos no interior da lendária fábrica de automóveis AvtoVAZ quando
da chegada de um novo CEO, o sueco Bo Inge Andersson. Este promete
tirá-la de sua aguda crise econômica e reestruturá-la sob a lógica do
capitalismo. Famosa nos tempos soviéticos, com a fabricação do automóvel
Lada, a fábrica está localizada na cidade de Tolyatti, à margem do rio
Volga, e ainda hoje é uma das maiores empresas estatais da Rússia. O
filme nos lembra o vencedor do Oscar Indústria Americana (2019) [American Factory],
de Reichert e Bognar. Em ambos, os cinegrafistas puderam registrar
várias das reuniões dos executivos e acompanhar as tentativas de
implementação de uma nova cultura de gestão nas empresas. Na ótica de
Andersson, a fábrica russa estava permeada por grosseiras ineficiências,
empregos redundantes, vícios de gestão e falta de iniciativas na
gerência. No entanto, sua proposta de reforma, que incluía demissões e a
interrupção da compra de peças produzidas na região, não levou em
consideração o fato de que a fábrica é a força motriz econômica e social
da cidade e, por conta disso, a resistência ao seu projeto foi unânime.
Como disse um engenheiro elétrico da empresa, “um humano morre quando
seu coração para de bater. Quando uma fábrica morre, nossa cidade morre
com ela!”.
O filme de Horký ilustra bem a Rússia dos tempos de Putin e a
nostalgia dos tempos soviéticos entre sua população. Por isso, o diretor
retrata muito bem o contraditório desejo dos operários de tornar a
AvtoVAZ uma fábrica competitiva globalmente, sem, contudo, abandonar
seus tradicionais hábitos e costumes locais. Como ressalta Svetlana
Alexievitch, em seu clássico O Fim do Homem Soviético, “só um
soviético pode compreender um soviético. Nós somos todos uma só e mesma
memória comunista. Nós somos vizinhos de memória” (p. 19). Andersson não
compreendeu isso e sucumbiu no posto.
Dispostos a defender os seus empregos a todo custo – e,
consequentemente, um certo modo de vida ameaçado de desaparecer –, os
trabalhadores da França e da Rússia, retratados nos documentários,
insubordinaram-se por diferentes vias. No hexágono, os trabalhadores e
trabalhadoras reafirmaram a tradição operária de maio-junho de 1968,
quando milhares de fábricas foram ocupadas em todo o território francês.
O filme de Kowalski, na perspectiva em que dá voz ao coletivo de
trabalhadores e não a uma única “liderança”, lembra-nos os trabalhos do
grupo Medvedkine, composto por Chris Marker e Jean-Luc Godard.
Assim, a ação radical de ocupar a fábrica e ameaçar sua explosão fez
com que a GM&S se tornasse um problema nacional, obrigando até mesmo
o Presidente da República a se pronunciar sobre o assunto. No entanto,
diferente do contexto dos “Trinta Gloriosos” – como ficou conhecido o
excepcional período de crescimento econômico da Europa ao longo do
pós-II Guerra Mundial – de 1968, Botando pra Quebrar
nos remete mais à situação da Argentina de 2001, quando o país foi
brutalmente atingido pela crise do neoliberalismo, o que fez com que
centenas de fábricas falissem e milhares de trabalhadores decidissem
ocupá-las e colocá-las sob o seu controle.
Enquanto a economia concreta parece estar ruindo rumo a uma nova
grande crise econômica, assistimos ao florescimento do capitalismo de
plataforma e da economia digital. A revolução nesse setor acabou por
borrar as barreiras tradicionais das fronteiras que antes separavam o
trabalho intelectual do manual, o produtivo do improdutivo, a indústria
do serviço, a esfera do trabalho da esfera do lazer ou do domicílio e,
por fim, o trabalho pago do não pago. É esse último aspecto que a
diretora Cosima Dannoritzer aborda em Ladrões do Tempo.
Segundo o argumento central do filme, nos últimos anos passamos a ser
cada vez mais trabalhadores de empresas de que antes éramos apenas
clientes, sem que ganhemos nada pelas atividades exercidas. Se nos anos
1990 as jornadas de trabalho aumentaram por meio da flexibilização das
legislações trabalhistas e da legalização das horas extras, agora, com o
auxílio das novas tecnologias informacionais-digitais, o trabalho não
pago estendeu-se para o nosso tempo livre. Assim, passamos de
trabalhadores precários a consumidores precários.
Ladrões do Tempo
problematiza uma série de atividades que os manuais empresariais
chamam, desde os anos 1950, de “trabalho parcial” realizado pelo
consumidor. Trata-se de uma estratégia do capital para diminuir os
custos e aumentar os lucros. “Ao golpe de um like, não deixamos
de fornecer os nossos dados, que se converteram em um negócio”,
ressalta o documentário num dado momento. No mundo da mercadorização
total, nunca a consigna liberal “tempo é dinheiro” fez tanto sentido.
Mas o dinheiro é produzido para aqueles que nos expropriam o tempo e,
com isso, perdemos o controle sobre ele.
Por fim, Ouro da Morte
nos faz retornar para a ponta da cadeia produtiva, no caso, a extração
de ouro na África Austral. O filme, produzido ao longo de três anos por
Richard Pakleppa e Catherine Meyburgh, é baseado em uma sistemática
pesquisa de arquivos e coleta de depoimentos na África do Sul,
Moçambique, Lesoto e Suazilândia. Seu conteúdo denuncia como o racismo e
o colonialismo, duas formas estruturantes da modernidade capitalista,
construíram e enriqueceram uma sociedade pautada na supremacia branca,
sob o regime da repugnante exploração de mais de 5 milhões de corpos
negros ao longo de 120 anos da África do Sul. No documentário, uma voz
em off lê as transcrições dos arquivos da Câmara de Minas, uma
entidade empresarial criada no final do século XIX para fortalecer a
competição de suas associadas no mercado mundial. Na ata da reunião de
1894, ficam explícitos dois objetivos fundamentais da instituição: a
manutenção do suprimento e a redução dos salários.
O capital, em seus diversos contextos, precisa criar e recriar as
condições para a reprodução social da força de trabalho. Em países
ricos, com legislações protetivas consolidadas e arrancadas por lutas
sociais, algumas concessões são fornecidas para uma melhor qualidade de
vida dos trabalhadores. Já em países periféricos, principalmente aqueles
marcados por uma história racista e colonial, as vidas (negras) não
importam! Quando um trabalhador adoece por conta do trabalho nas minas,
sendo obrigado a voltar para a sua comunidade, outros vêm para
substituí-lo. Mas, para que esse ciclo interminável ocorra, o Estado
atua litigiosamente criando leis – como os impostos sobre a terra – que
dificultam a vida dos indivíduos e os obrigam a fornecer seus filhos
saudáveis para trabalhar em outra localidade – no caso, retratado no
filme, nas minas de ouro. Sela-se, assim, sob o comando de alguns homens
brancos, o destino de milhares de seres humanos.
Os filmes escolhidos para esta seção da Mostra Ecofalante demonstram,
por diferentes perspectivas, o papel central do trabalho na
constituição da vida social. Ele é definidor na formação de
subjetividades, na organização de economias locais e nacionais e na
constituição das culturas. A depender de como é organizado, pode ser
tanto um fator de coesão, como se evidencia nos filmes russo e francês,
como de desagregação social, como fica explícito em Ouro da Morte.
Nos primeiros casos, o fechamento ou a reestruturação de uma fábrica
ameaçou a vida local e impulsionou seus operários e operárias a lutarem
para manter um certo modo de vida. Já no caso africano, o trabalho nas
minas de ouro é a ilustração cabal da degradação total do ser humano,
semelhante à escravidão. Aqui, os corpos negros são reificados para
alimentar a luxúria de alguns poucos brancos.
O título original do documentário francês é On va tout pêter,
que pode ser traduzido como “vamos explodir tudo”. Trata-se da frase
pichada no tanque de gás líquido, logo na entrada do prédio ocupado
pelos trabalhadores, envolto por um dispositivo explosivo. No entanto,
além de sua mensagem direta, a frase tem um outro sentido metafórico.
Nas manifestações operárias francesas, recorrentemente se canta “Ça va pêter!”
(Isso vai explodir!), em referência à disposição de luta quando parece
não haver mais nada a perder diante da falta de perspectivas no atual
sistema econômico e político, como pudemos ver recentemente com os
Coletes Amarelos.
O mundo pós-pandemia tende a aumentar a exploração do trabalho, a
desigualdade social e econômica e as formas mais precárias de trabalho.
Num processo de desagregação da integração social, a sociedade
capitalista tem intensificado as formas arcaicas de dominação, como o
patriarcado e o racismo. Nesse cenário, há indicações de que muitas
fábricas falirão e postos de trabalho serão fechados ou substituídos por
máquinas automatizadas. Enquanto isso, o 1% segue aumentando as suas
riquezas às custas da grande maioria da população. Resta-nos saber para
onde irá a sociedade quanto tudo o que é sólido se desmanchar no ar.