A
imagem da curva de contágio da Covid-19 se tornou comum ao olhar do mundo. Em
todas as línguas, em todos os países, esperou-se o período “platô” e que ele
caminhasse para a queda. Um discurso de que tudo isso vai passar, porque “isso”
tem um começo e um fim.
A
seleção na temática Consumo do Panorama
Internacional Contemporâneo da 9ª Mostra Ecofalante descortina a
racionalidade por trás da curva. Os quatro documentários rasgam a sua frieza e
expandem em raízes as conexões das histórias das vidas representadas por ela
para muito antes do início do contágio.
Impossível
não conectar a injustiça social que faz hoje as comunidades mais fragilizadas –
negras, periféricas urbanas, tradicionais e ribeirinhas, de povos indígenas e
de pequenos agricultores – no Brasil e no mundo serem as mais afetadas pela
Covid-19 à exploração insustentável dos recursos que gerou concentração de
terras, de poder político e econômico. E esse é um dos retratos da covardia
político-produtiva comuns aos longas-metragens O Custo do Vício Digital (EUA, 2016), de Sue Williams, O Fim da Carne (Alemanha, 2017), de
Marc Pierschel, Superalimentos (Canadá, 2018), de Ann Shin, e Beleza Tóxica (Canadá, 2019), de
Phyllis Ellis, inédito no Brasil.
Ao
escrever este texto, fecho os olhos para chorar novamente e sentir a falta de ar,
a dor no peito diante do intolerável em cada um dos filmes. Reconhecemos que
compartilhamos com os territórios apresentados condições degradantes de
produção que violam os direitos de bem-estar dos trabalhadores – na sua maioria
camponeses e agricultores – e causam a contaminação de pessoas e natureza.
O Fim da Carne parte
das evidências já consolidadas dos impactos negativos da produção e consumo de
carne tanto na saúde das pessoas quanto na crise de degradação ambiental e
emissões de carbono. E se propõe a explorar as possibilidades da mudança
radical de um mundo sem ela.
A
expansão da produção de carne nos Estados Unidos foi marcada pela invasão de
terras de povos indígenas. E quem décadas depois é empregado para trabalhar nos
distantes abatedouros são agricultores da área rural. Como em outros setores nos
quais o consumo excessivo foi estimulado, campanhas desassociaram a morte dos
animais à carne que chega aos nossos pratos. A adoção da palavra bife, do
francês de origem latina, ajudou. Não é carne, é bife. Não é morte, é abate.
Além
dos impactos ambientais, Pierschel parte do tema dos maus-tratos aos animais na
produção de carne e derivados de leite e explora o debate sobre o direito dos
animais a uma vida digna e a serem legalmente defendidos. Nos caminhos
possíveis de abandonar a produção baseada na crueldade animal, que causa
desmatamento, invasões de terras, emissões e uso de recursos como água e
energia, a tecnologia apresenta algumas alternativas. Mas mesmo os autores das
carnes de laboratório reconhecem: se estivermos realmente comprometidos com a
redução do impacto da produção da carne, não existe nenhuma solução melhor do que
as proteínas de origem vegetal.
No
mínimo, precisamos reduzir, como os que adotam um estilo de vida
flexitarianista (pessoas que reduzem o consumo de produtos animais). E esse caminho
não está muito longe da nossa realidade. Um produtor americano de hambúrguer
vegetal presente no mercado brasileiro afirmou no final de julho que espera
igualar o custo das opções veganas, ainda caras, ao preço da proteína animal
até 2024.
Se
começamos a imaginar nossa vida sem carne, será que conseguimos ter uma vida
sem celular? Em O Custo do Vício
Digital conhecemos a origem da produção dos primeiros computadores
pessoais nos Estados Unidos. Todo o cuidado de proteção não era com a exposição
das pessoas aos componentes químicos contaminantes da época. Era com os objetos
sendo produzidos.
Foram
décadas de descarte sem tratamento dos resíduos em rios e terras, contaminando
águas subterrâneas do entorno das fábricas, prejudicando cidades inteiras. Nos 300
anos em que se estima “limpar” um território, ninguém vivo hoje estará lá para
saber se é verdade.
Depois
dos processos de responsabilização por contaminação e morte nas cortes dos
Estados Unidos chegarem a valores e penas custosos demais, essa produção
irresponsável foi simplesmente transferida para a Ásia. O cenário escala e piora.
Os trabalhadores que aceitam trabalhar nessas condições degradantes, sem pausa
e em turnos sem fim, são, novamente, camponeses mais pobres.
Essas
empresas não foram responsabilizadas pela pegada química (chemical footprint) de seus contaminantes. Metais como cobre,
cianeto e solventes poluíram as águas dos rios que abastecem as cidades na
China, e a corrupção frauda a fiscalização. E essa responsabilidade é também
das marcas que chegam às mãos dos consumidores.
A
terceirização do trabalho (e das responsabilidades) como estratégia de
negócios, mostrada na cadeia de computadores e celulares, corrobora a prática
de levar para longe dos olhos e da consciência da sociedade a imagem vil da sua
produção. Assim como os abatedouros são distantes das cidades, as fábricas
estão em outro continente. O que os sentidos não sofrem não existe.
E
a demanda só cresce. Em meio à pandemia, no Brasil, as vendas de celulares
cresceram 9% no primeiro semestre de 2020 em relação ao mesmo período do ano
passado, segundo estudo de uma plataforma de venda de usados e novos. E na
ponta, o e-lixo cresce igual.
Em
julho, o estudo The Global E-waste
Monitor 2020, colaboração entre a Universidade das Nações Unidas e várias
outras organizações, indicou que nos últimos 5 anos houve um crescimento global
de 21% de lixo eletrônico. Em 2019, foram 53 milhões de toneladas no ano, compostos
por itens como celulares, computadores, geladeiras e células fotovoltaicas.
Desse total, somente 17,4% foram reciclados. “Isso significa que ouro, prata,
cobre, platina e outros materiais recuperáveis de alto valor avaliados conservadoramente
em 57 bilhões de dólares foram em sua maioria descartados ou queimados em vez
de coletados para tratamento e reutilização”, contabiliza o estudo.
O
Brasil é citado por ter pelo menos um marco legal, a Política Nacional de
Resíduos Sólidos, que completou uma década. Só agora, estabeleceu-se a meta de sair
das atuais centenas para 5 mil pontos de coleta e destinação de lixo
eletroeletrônico, em 400 cidades, até 2025.
Metade
dos municípios brasileiros (49,9%) ainda despeja resíduos em lixões – depósitos
irregulares e ilegais. 17,8 milhões de brasileiros não têm coleta de lixo nas
casas e apenas 3,85% dos resíduos são reciclados. Recém lançado agora, em
agosto, o 5º Índice de Sustentabilidade da Limpeza Urbana (ISLU), elaborado
pelo Sindicato Nacional das Empresas de Limpeza Urbana (Selurb) em parceria com
a consultoria PwC Brasil confirma a estagnação em que estamos no setor.
Em
Superalimentos, a diretora canadense explora como os
superalimentos que viraram moda no mercado global com o poder nutritivo
temperado por narrativas de ancestralidade impactam as comunidades onde eles se
originaram. O caso mais emblemático, o cultivo da quinua na Bolívia, mostra o
desequilíbrio causado pela queda pela metade do preço do grão em cinco anos, de
2013 – quando foi eleito alimento do ano pelas Nações Unidas – a 2018. Todo o
mundo, inclusive o Brasil, passou a produzi-lo.
No
contraponto, o teff, na Etiópia, foi preservado nos primeiros anos como produto
soberano do país. A conexão afetiva da família Enedeg com o alimento se
completa. Hoje, a Bolívia está se reconectando com o cultivo da quinua para
subsistência e com o cultivo orgânico da quinua real.
Mesmo
quando uma comunidade consegue preservar sua cultura, é impossível se isolar
das consequências da pressão do mercado. É o que o documentário mostra nas ilhas
Haida Gwaii, no Canadá, onde o consumo tradicional de salmão foi protegido da
sobrepesca e da aquacultura por leis locais. Mas ainda está ameaçado pelas
águas vizinhas, onde tais práticas acontecem intensivamente.
Presente
em todo o roteiro do documentário, a comunidade de agricultores extrativistas de
coco de San Roque (San Roque Farmers Association – SRFA), nas Filipinas, foi beneficiada
pelo apoio de uma iniciativa de comércio justo. Mas também enfrenta uma disputa
de terras: uma história que conhecemos bem no Brasil, como grilagem. Uma
família local requereu ao governo a posse da área onde vivia a comunidade para
vendê-la e transformá-la num resort e centro comercial. As Filipinas são o
maior exportador de coco do mundo, com a maior parte da produção nas mãos de
3,5 mil pequenos agricultores. Hoje eles estão sofrendo com a concorrência da
produção extensiva de óleo de palma por grandes corporações no país.
Produzir
rápido, ao menor custo. Assistir ao inédito Beleza Tóxica é sentir o relógio tocando de madrugada. A
diretora Phyllis Ellis conta que, quando soube pelos jornais sobre o processo que
condenou o grupo farmacêutico Johnson & Johnson em 2018, se viu no grupo de
risco. Por mais de quinze anos, como atleta olímpica de hóquei, ela usou o
talco para bebês da marca.
Em
junho, o tribunal de apelações do Missouri, nos Estados Unidos, confirmou o
veredicto que determinou que o talco vendido pela empresa provoca câncer de
ovário e a condenou a pagar 2,1 bilhões de dólares em danos. A história a
motivou a investigar outras contaminações por componentes químicos em produtos
de cuidado pessoal e beleza, como a contaminação por parabenos usados como
conservantes em cremes, xampus e cremes de barbear.
Ellis
se deparou com décadas de estudos epidemiológicos do Dr. Daniel Cramer, da
Universidade de Harvard, sobre como o uso de talco (à base de sílica e
magnésio, que, assim, pode conter amianto) estava associado ao câncer de ovário.
O corpo acumula ao longo dos anos toda essa carga. Sem aviso, sem saber da pegada
química do produto.
A
maior crítica ao setor que permite que isso aconteça é a autorregulação. Os
produtos são primeiro lançados, e, se houver algum problema, as empresas são
notificadas. Na guerra de narrativas, há a fabricação da incerteza em relação aos
estudos e pesquisas que comprovam a fatalidade desses contaminantes e seu uso.
Finalmente,
em 2020, testes realizados pela agência americana FDA (Food and Drug
Administration) atestaram que o ingrediente cancerígeno amianto foi
encontrado em produtos como sombras, blush e corretivos, além do próprio talco
da J&J.
Do
livro Primavera Silenciosa, de Rachel
Carson, citado pela organização Silent Spring, que a homenageou em Beleza Tóxica, à atuação do
ambientalista Ma Jun, do Instituto de Assuntos Públicos e Ambientais (IPE) da
China, que aparece em O Custo do Vício
Digital, o comportamento de pessoas, como você e eu, no que chamamos de
sociedade civil organizada, tem papel crucial. Cidadãs e cidadãos, as ONGS, os
ativistas, artistas, cientistas e jornalistas, hoje alvos dos ataques de
governos, apoiam e trabalham com movimentos locais na construção de soluções.
O
extremo a que chegamos com a pandemia global, sob governos responsáveis por
torná-la um genocídio das populações mais fragilizadas, escancara que somos nós
a sociedade que precisa ter a coragem de estabelecer a transparência extrema
como acordo social.
Transparência
extrema e responsabilização. Uma sociedade em que empresas como a J&J e a
Vale não poderão ocultar que sabiam há décadas que havia risco de cancerígenos
em seu produto ou que as barragens tinham prazo para romper. Em que cada passo
dos governos seja conhecido e inclua participação da sociedade.
O
geógrafo Milton Santos acreditava que era preciso “deslocar a centralidade do
dinheiro em estado puro para o homem” para organizar uma outra lógica econômica
capaz de abarcar a maior parte da população. “O homem sendo residual, o
território, o Estado-nação e a ideia de solidariedade social também se tornam
residuais” (in Teoria & Debate,
abril de 1999).
É
nosso papel sermos solidários. Com quem está ao nosso lado, com a vida dos
animais e ecossistemas de que dependemos. Que haja a ética pelo direito à vida,
e não pelo lucro de poucos. Para isso, precisamos sentir para agir. Que da
covardia, que gerou a crise e a curva da Covid-19, sejamos ciência, coragem e cuidado.