Esse conjunto de quatro laureados documentários sobre povos e lugares revela como as complexidades da economia política e da geopolítica afetam a organização social, os imaginários, as práticas sociais e a resistência de seus protagonistas, assim como suas mobilidades/imobilidades e relações com o meio ambiente, no passado e no presente. Processos históricos, marcados seja por conquistas, guerras e revoluções, crises econômicas e políticas ou, ainda, ascensão e queda de regimes comunistas e avanços do capitalismo constituem, implícita ou explicitamente, os cenários e constrangimentos que unem essas produções fílmicas sobre problemáticas, conjunturas e personagens distintos. Desse ângulo, esses filmes trazem à tona mudanças sociais dramáticas na vida dos seus protagonistas e nos lugares que habitam.
Três desses documentários transcorrem em regiões ou países da Ásia que estiveram sob a esfera da antiga URSS. Assim, em A Baleia de Lorino, dirigido por Maciej Cuske, a dissolução da União Soviética e seus impactos socioeconômicos e demográficos se manifestam na precarização das condições de vida dos descendentes do milenar povo Chukchi da Sibéria, cuja mitologia e organização social estão historicamente vinculadas à caça das baleias. Por sua vez, Exodus, de Bahman Kiarostami, se passa em um centro de retorno de imigrantes na fronteira terrestre entre o Irã e o Afeganistão por ocasião do colapso da moeda iraniana em 2018, decorrente das novas sanções dos Estados Unidos contra o Irã, que forçou numerosos trabalhadores migrantes do Afeganistão afetados pela recessão econômica a retornar à terra natal. Já em Memórias do Oriente, os diretores Niklas Kullström e Martti Kaartinen justapõem a biografia e os escritos do renomado diplomata e linguista finlandês Gustaf John Ramstedt (1873-1950) sobre suas experiências de vida e trabalho no Oriente às transformações socioeconômicas, políticas e culturais ocorridas nos países asiáticos onde ele viveu, como China, Japão e, especialmente, Mongólia. Em contraposição, a quarta produção, Ma'Ohi Nui, realizada na Polinésia Francesa, sob a direção de Annick Guijzelings, focaliza a brutalidade e violência intrínsecas aos desastres ambientais e sanitários, incluindo óbitos, provocados por testes nucleares executados intermitentemente no Taiti pelo exército francês durante trinta anos (1966-1996). As sequelas afetam até hoje os habitantes desses arquipélagos do Oceano Pacífico, que ainda permanece sob jugo colonial.
Violência, brutalidade e sofrimento estão subjacentes, já no início de A Baleia de Lorino, na narrativa do mito Chukchi sobre as relações simbióticas entre seres humanos e as baleias; sobrepondo-se às belíssimas imagens e sons dos mares do Estreito de Bering, o relato do assassinato original da baleia pelo irmão homem prenuncia alegoricamente tempos difíceis. Cenas subsequentes revelam a paisagem inóspita de Lorino, as compras feitas a crédito no pequeno mercado local em preparação para a tradicional caça anual às baleias monumentais, a moradia e móveis precários, entre os quais uma TV que parece não funcionar, e os diálogos sobre a falta de dinheiro, sinalizando as dificuldades pelas quais passam seus moradores.
Na sequência, um solitário busto de Lenin numa praça deserta de Lorino, aparentemente entregue ao abandono, permanece como símbolo da Revolução Bolchevique de 1917, evocando as lembranças nostálgicas de um dos moradores Chukchis que rememora os bons salários nos tempos em que a Sibéria fazia parte da União Soviética (1922-1991). Essa imagem de abandono também pode ser interpretada como metáfora da dissolução da URSS, quando o governo regional se desfez, os subsídios estatais minguaram e grande número dos russos étnicos que formavam a maioria da população, assim como seus compatriotas ucranianos, foram embora, migrando para outros lugares. Nessa conjuntura, os Chukchis, diante da vulnerabilidade socioeconômica e da despossessão, se voltaram, num aparente paradoxo, aos modos tradicionais de vida e à caça às baleias ameaçadas de extinção como o seu principal meio de subsistência.
Através do uso de uma estrutura narrativa circular, o filme nos faz acompanhar a vida cotidiana durante a preparação de mais uma caça anual às baleias. Esse estilo narrativo nos faz atentar em que, não obstante a situação precária na qual vivem e as dificuldades, sofrimentos e paradoxos que confrontam – inclusive o alcoolismo e a emigração, que não são mostrados no filme –, os Chukchis que vivem na localidade persistem em investir na continuidade de seu povo, como aliás é o caso de outros povos originais, como, por exemplo, os Guarani Kaiowá, no Brasil. Esses esforços são evidenciados na sua interação com o meio ambiente, na celebração dos rituais, como os de casamento, que levam à reprodução social, e na transmissão da história, tradições e saberes para as novas gerações, seja na escola, no centro cultural, nas visitas das crianças ao museu ou nas brincadeiras e inclusão dos meninos no processo de trabalho. Se o documentário nos informa sobre a falta de perspectivas e possível desaparecimento não só das baleias, mas também dos Chukchis, parece prevalecer ainda, entre os que vivem em Lorino, uma aposta no futuro.
Questões de geopolítica também estão presentes em Exodus. Mas, enquanto A Baleia de Lorino nos faz refletir sobre o retorno aos modos de vida ancestrais daqueles que permaneceram na localidade, Exodus nos fala de um retorno geográfico, protagonizado por um contingente de mulheres e homens que se movimentam na fronteira terrestre entre Irã e Afeganistão. Aberta inicialmente para acolher refugiados da Guerra afegã-soviética de 1979, essa fronteira propiciou no decorrer dos anos a travessia de cerca de dois milhões e meio de migrantes afegãos para o Irã, muitos dos quais em situação indocumentada. Na atualidade, dada a crise iraniana, os fluxos maiores são formados por contingentes de afegãos tentando realizar a migração de retorno.
Se as idas e vindas de migrantes através de fronteiras constituem um fenômeno histórico, desde as últimas décadas do século XX – com a intensificação dos fluxos migratórios e a construção de um regime global de migrações que criminaliza migrantes em situação indocumentada –, houve um aumento de controle nas fronteiras, que se acentuou ainda mais no decorrer do século XXI. Ao se utilizar do cinema-verdade e focalizar a sua câmara nesse posto de controle de fronteiras, Bahman Kiarostami registra as interações, marcadas por desigualdades, entre os migrantes afegãos que querem voltar para casa e os funcionários responsáveis pela fiscalização, liberação ou proibição da saída do território iraniano. Essas relações desiguais são aparentes no modo como os funcionários organizam e controlam o fluxo das filas, formadas predominantemente por homens jovens. Ao mesmo tempo, a composição etária e de gênero indica que a migração desses jovens provavelmente faz parte de projetos familiares, implicando, portanto, em obrigações e reciprocidades, que incluem o envio de remessas para a terra natal, como atestam os casos dos homens jovens senegaleses, malineses, congoleses ou haitianos, entre outros, que migraram desacompanhados para diferentes localidades brasileiras.
Nesse cenário, o registro fílmico tanto das interações entre migrantes afegãos e funcionários, como também das conversas entre os funcionários sobre uma alegada falta de clareza acerca de suas funções expõem situações que ocorrem durante processos migratórios em diferentes partes do mundo. Assim, muitas das perguntas aparentemente desconexas formuladas por esses funcionários manifestam preconceitos e discriminação engastados nas noções em voga que criminalizam imigrantes considerados, a priori, “indesejáveis”. Esses preconceitos, reforçados por visões em geral estereotipadas sobre migrantes, surgem no filme nas indagações dirigidas aos homens jovens sobre drogas, bebidas, tatuagens e deportações anteriores. Outras questões revelam a burocracia intrínseca aos processos de entrada e saída de migrantes, cujo poder decisório cabe aos funcionários, em diferentes contextos. Também, vários questionamentos nos fazem perceber os constantes trânsitos de mão dupla entre fronteiras, inclusive de migrantes em situação indocumentada que já passaram por experiências de deportação. Trazem ainda à tona as duradouras conexões afetivas com a terra natal, como no caso de familiares que, atendendo ao pedido feito por um parente antes de morrer, tentam transportar seu cadáver para ser enterrado no Afeganistão.
A partir de um ângulo diverso, Memórias do Oriente se vale das narrativas de Gustaf John Ramstedt (1873-1950) sobre a sua vivência (migrante) no Oriente, marcada por longas separações da família – seja devido às suas pesquisas linguísticas na Mongólia, seja por sua atuação como diplomata na China e no Japão –, para nos apresentar visualmente as continuidades da tradição em conjunção com as (drásticas) descontinuidades sociais ocorridas nesses países no decorrer dos últimos 100 anos. Assim, através das sobreposições, conexões e contrastes entre imagens do passado e do presente, o filme nos revela a reconfiguração das paisagens rurais do passado em efervescentes metrópoles globalizadas, assim como as junções entre tradição e modernidade em decorrência das transformações geopolíticas, socioeconômicas e culturais. Mas é especialmente no caso da Mongólia, um forte aliado da extinta URSS, cuja inserção na economia do mercado se deu somente em 1992, que nos deparamos com um dramático contraste entre um passado (rural) e a flagrante modernidade da vida urbana contemporânea, com seus arrojados arranha-céus, clubes e rappers. Se, nos tempos em que Gustaf John Ramstedt conduzia pesquisas linguísticas na Mongólia para o seu doutorado, um interlocutor lhe informou que “não possuímos a terra, a terra nos possui”, hoje, a questão fundiária e a sua transformação em propriedade privada estão no âmago da metamorfose urbana e de indagações sobre quem tem direito à cidade.
Comparativamente, Ma'Ohi Nui apresenta um retrato cinematograficamente poético que traz à tona uma aparente (i)mobilidade dos povos originários do Taiti e da Polinésia Francesa em face dos violentos e intermináveis efeitos dos 30 anos de testes nucleares que, iniciados a mando do poder colonial em 2 de julho de 1966, causaram radioatividade e a destruição de seu habitat. Inicialmente, como lembra um dos narradores, esse programa colonial atraiu a população, que, diante das possibilidades de trabalho com bons ganhos e aquisição de bens materiais, abandonou a agricultura e a pesca, “sem compreender que era um perigo que nos destruiria”. Outro tristemente avalia que “não temos mais vozes, não temos mais memórias, não temos história. E o que é um povo sem história, sem língua, sem terra? Bem, isso não existe”.
Imagens do primeiro teste nuclear, junto a cenas de pobreza nas favelas e de mulheres, homens e crianças largados em redes dão essa sensação de imobilidade. Mas há também aqueles que, após migrarem, decidem fazer o caminho de volta, recomeçando a agricultura, relembrando saberes transmitidos pelos seus antepassados, trazendo de volta vozes ancestrais, buscas de identidade e, com elas, perspectivas de futuro, que incluem movimentos de libertação do jugo colonial.
Apenas em 2019, a França reconheceu pela primeira vez, oficialmente, que os polinésios franceses foram forçados a aceitar quase 200 testes nucleares conduzidos ao longo de 30 anos[1], que trouxeram devastação, morte e doença para os habitantes dos arquipélagos. Mas os desastres ambientais resultantes dos grandes projetos hidroelétricos ou de extração de minério – como os de Mariana e Brumadinho, no Brasil –, que estão ocorrendo em diversas partes do mundo, com impactos destrutivos nos povos e lugares, numa conjuntura do capitalismo neoliberal que prescinde do colonialismo, mas se assemelha a ele, permanecem como chagas abertas.
Desse ângulo, esse conjunto de filmes, embora muito diferentes entre si, provoca nossa reflexão sobre esse momento tão difícil que estamos vivendo, à luz das temporalidades e espacialidades de processos de globalização – ou do sistema–mundo, que, como tão bem nos ensinou Immanuel Wallerstein, se iniciou com as conquistas e emergência dos colonialismos dos séculos XV e XVI. Por isso, de forma talvez à primeira vista surpreendente, ao assistirmos a esses filmes e aprendermos sobre povos e lugares distantes que ficam no continente asiático ou no meio do Oceano Pacífico, nos deparamos com processos históricos e contemporâneos, relações de poder, deslocamentos da economia política, despossessão e destruição do meio ambiente muito familiares para nós da América Latina e do Brasil, em especial. A tragédia dos Chukchis, conquistados e dominados pelo czarismo ainda no século XVI, ressoa nos dramas das populações originárias da Amazônia frente à destruição e escassez do meio ambiente, como corolário de um capitalismo altamente destruidor e dos avanços da extrema direita, a extirpar direitos duramente conquistados. Da mesma forma, as cenas no posto de controle de imigrantes na fronteira entre o Irã e o Afeganistão remetem às situações, entre outras, dos imigrantes venezuelanos nas fronteiras brasileiras e ao aumento de deportações de estrangeiros em geral pela Polícia Federal nesses tempos de pandemia, assim como às deportações de brasileiros em situação indocumentada nos Estados Unidos, com o beneplácito do governo brasileiro. Além das aceleradas transformações do campo em cidades profundamente desiguais, os malfadados testes nucleares executados pelo poder colonial francês nas paradisíacas ilhas do Pacífico – tão distante de nós – nos fazem confrontar os desastres ambientais decorrentes de grandes projetos desenvolvimentistas que transformam cidades em lama.
[1] https://www.defesa.tv.br/governo-frances-admite-ter-forcado-polinesios-e-taitianos-a-aceitarem-seus-....