Um dia, nossos descendentes – em os havendo – vão estudar na escola o
que aconteceu no mundo em nossa época. Talvez esse capítulo do livro de
História deles possa começar com a citação da frase de Mark Zuckerberg,
que expressa sua filosofia de vida: “Move fast and break things”,
“Avance rápido e quebre coisas”. Difícil pensar em uma frase que
expresse de maneira mais completa o espírito dominante do nosso tempo.
Zuckerberg tem vivido precisamente desse modo. Sua genialidade se
revelou ainda na faculdade, que ele nem terminou, pois já era
bilionário. Sua empresa, o Facebook, proprietária também do Whatsapp e
do Instagram, mudou as relações humanas talvez tanto quanto qualquer
outra grande revolução da história. No caminho, inegavelmente, ela
quebrou coisas. Como a democracia, que pifou.
Zuckerberg não é o único a viver dessa forma nos nossos tempos. Na
verdade, é seguro dizer que a imensa maioria das pessoas que comandam o
mundo hoje se movem rápido, de olho em resultados trimestrais ou
campanhas eleitorais quadrienais, e quebram coisas no caminho. As oito
edições passadas da Mostra Ecofalante discutiram uma longuíssima lista
de coisas que se quebraram ao longo do último século, enquanto a
humanidade acelerava seus sistemas, característica mais marcante da era
industrial, que se encerra enquanto escrevo. Na 9a edição, a
Mostra surpreendeu ao incluir uma seleção de filmes diferentes na sua
programação. Há quem pense que não são propriamente “filmes ambientais” –
são documentários sobre tecnologia. Os quatro mostram consequências
humanas de novas tecnologias, enquanto elas avançam à toda velocidade.
Um deles é Olá, IA
(Alemanha, 2019), que conta as histórias de pessoas que já vivem na
companhia de robôs dotados de inteligência artificial. Outro é Bebês do Futuro
(Áustria, 2016), que segue homens, mulheres, cientistas, vendedores e
bebês participantes do incrível mercado de úteros e embriões humanos. Há
ainda Jawline: Ascensão e Queda de Austyn Tester
(EUA, 2019), que mostra a vida de adolescentes tentando sobreviver
emocionalmente dentro do mercado brutal surgido numa das plataformas de
Zuckerberg, o Instagram. E, por fim, O Futuro do Trabalho e da Morte
(Reino Unido, 2016), uma bela contextualização do pensamento que ajuda a
explicar o impulso por trás disso tudo. O filme, dividido em duas
partes, trata de duas grandes ilusões humanas: a de que industrializando
e automatizando tudo seremos ricos e felizes numa vida tranquila, e a
de que seremos capazes de vencer a morte. Enquanto seguimos obcecados
por essas duas ilusões, nos sentimos cada vez mais oprimidos pelo
trabalho e pela morte.
A verdade é que os quatro são filmes ambientais, sim: todos eles
tratam de ecologia. Todos contam histórias sobre como as violentas
intervenções que temos feito no ambiente, via tecnologia, geram
consequências na vida de uma espécie animal específica: o Homo sapiens. Os quatro nos deixam pensando sobre essas consequências.
Como serão as crianças criadas por robôs? Ou as projetadas a partir
dos óvulos e espermatozoides encontrados no mercado? Como será a idade
adulta das celebridades de redes sociais e de seus fãs, com os rostos
sempre enfiados nas telas de celular? Como será o mundo todo uberizado, sem nenhuma preocupação com o amanhã?
Nenhuma das respostas é simples, mas algo aparece com clareza nos
quatro filmes: coisas irão se quebrar – já estão se quebrando. Essas
novas tecnologias estão gerando oportunidades e possibilidades, mas
também uma montanha imensa de sofrimento e devastação. E tecnologias
ainda mais novas já vão chegando atrás delas, mudando ainda mais
radicalmente o ambiente, sem que antes paremos sequer para pensar nas
consequências.
Claro que o sentido disso tudo muda em meio a uma pandemia, quando
subitamente estamos tendo de parar de nos mover rápido. Os quatro filmes
foram gravados antes disso tudo começar, e geram aquela sensação
estranha que temos com qualquer cena captada antes de março de 2020.
Agora, qualquer imagem banal de gente se abraçando na rua, misturando os
hálitos, já gera um turbilhão de emoções. Mas o germe do que estamos
vivendo agora pode ser entrevisto nos quatro documentários, ainda que
ninguém apareça usando máscara. Afinal, a pandemia também é,
evidentemente, sintoma de que algo se quebrou enquanto acelerávamos.
Pestes são, por definição, desequilíbrios ambientais. Passamos o último
século focados em aumentos de produtividade e em disrupções nos jeitos
tradicionais de fazer todas as coisas, ao mesmo tempo em que
desvalorizávamos todos os sistemas de cuidado coletivo na nossa
sociedade. Pelo jeito, chegamos a um limite.
Agora ficou impossível acelerar – quebramos até o acelerador.
Qualquer tentativa de retomar a velocidade de antes tem sido punida
inexoravelmente duas semanas depois, com a mortandade causada pelo
vírus. A natureza nos colocou de castigo, contemplando tudo o que
quebramos. Não acho que velocidade seja naturalmente má. A verdade é que
precisamos de velocidade mais do que nunca agora: ao menos na busca
para uma cura para a doença que está matando o nosso modelo de
sociedade. O que me parece que teremos de mudar é o descuido com as
coisas que quebramos no caminho. Se queremos continuar nos movendo
rápido, teremos que dedicar ao menos parte da humanidade ao trabalho de
consertar o que se quebra e de buscar caminhos menos destrutivos. Só
será possível viver em uma sociedade inovadora e tecnológica se tivermos
sistemas fortes de proteção e cuidado. Sem eles, esse estado de
disrupção permanente vai acabar nos matando – e matando o planeta.
Não sei se esses sistemas serão criados e mantidos pelo Estado – uma
solução que subitamente voltou à moda quando percebemos que uma
sociedade sem saúde pública não tem resiliência nenhuma. Tendo a
acreditar que muitos deles surgirão diferentes, de baixo para cima, a
partir dos laços das comunidades. Comunidade é uma velha tecnologia
humana: uma que reduz nossa velocidade, porque impõe valores que
desaceleram a mudança. Mas, em compensação, ela nos oferece uma rede de
proteção. Se tivéssemos comunidades fortes, teríamos menos carências e
ilusões, como aquelas dolorosamente retratadas nos quatro filmes.
O fato é que não dá para imaginar um futuro muito promissor para a
humanidade se ela continuar inteiramente nas mãos de indivíduos, cada um
deles se movendo rápido e sem olhar para trás, para checar se quebrou
alguma coisa. O problema de todas as tecnologias retratadas nos quatro
filmes não está nelas: está no nosso despreparo para lidar com as suas
consequências inesperadas. Estamos desprotegidos contra o que pode dar
errado – e, na velocidade em que estamos, é quase inevitável que algo dê
errado.
Inteligência artificial e robótica não são tecnologias más – tampouco
são uma solução mágica para a dissolução de laços comunitários, a
epidemia de solidão e a crise mundial de cuidado. As novas tecnologias
reprodutivas tampouco são más – mas não têm como dar certo se forem
dominadas por clínicas que manipulam carências humanas para fazer
dinheiro rápido. Nada contra a conectividade à distância das redes
sociais – mas não dá para abandonar crianças e adolescentes num
experimento social desse tamanho, sem proteção social alguma. Faz todo o
sentido continuar procurando formas melhores de trabalhar e de adiar a
inevitável morte. Mas não faz sentido algum colocar uma grande proporção
dos recursos da humanidade a serviço de estender a vida dos bilionários
alguns anos mais, enquanto tudo ao redor do sistema vai se quebrando.
Enquanto a humanidade toda adoece de uma virose generalizada.
Quando nossos descendentes estudarem o período histórico que estamos
vivendo hoje, espero que o capítulo que talvez se abra com a frase de
Zuckerberg feche-se em 2020. E que algo diferente – e menos destrutivo –
comece em seguida.