Em tempos terríveis para se viver
e sobreviver, resistir é urgente e necessário. Como diz o grande xamã Yanomami
Davi Kopenawa, "temos que sacudir, tem que falar, tem que balançar, tem que
cutucar, se não eles não vão fazer nada". Em casa, as pessoas nunca
souberam bem o que eu faço, como sobrevivo e qual a minha força para a coragem.
Assim, é impossível não se inspirar com Dolores e admirá-la. Peguei um caderno para
anotar, enquanto assistia, cada coragem, cada força, mas foi impossível.
Entre oceanos tristes, vulcões,
patrimônios e tudo, é Dolores que me vinha à cabeça.
Talvez porque tenha sido o primeiro filme a que assisti. Mas também porque Dolores
dá forma e valor a dores tão latentes, e se coloca à disposição para ser a voz
em busca dos direitos das pessoas historicamente esquecidas por quem nos
colonizou.
Olhando para ela, vejo muitos
tipos de ativismos, e acredito que todos sejam de extrema importância para
combater injustiças, barrar retrocessos, minimizar as emergências climáticas e
tantas outras questões. O mundo está cheio de lideranças ativistas e precisamos
de mais, porque nosso atual modelo de sociedade foi concebido para nos sufocar
e nos matar.
Mas fico pensando se podemos
chamar Dolores Huerta de ativista. A palavra daria conta de definir a imensidão
de importância que ela teve para milhares de trabalhadores nos EUA? Eu acho que
não. O dom da palavra, a força e a organização no movimento a tornam ainda mais
potente, firme, combativa e disposta a abrir mão da convivência familiar para
estar inteiramente na luta.
Os cinco filmes nos forçam a
olhar para o que acontece no planeta, acompanhando cada mobilização e trabalho
dos ativistas, que recupera vidas perdidas, devolve a dignidade a pessoas e
salva o oceano, que nos conecta enquanto humanidade.
Vulcão de Lama: A Luta Contra a
Injustiça nos apresenta Dian, jovem ativista, mas que, ainda criança,
sobreviveu ao tsunami de lama que soterrou 16 vilarejos em uma área industrial
e residencial de Java Oriental, na Indonésia, desalojando mais de 60 mil pessoas.
É impossível não lembrar das imagens do crime da Vale em Mariana e depois em
Brumadinho, em Minas Gerais, em 2015 e 2019, respectivamente. Grandes empresas arriscam
a vida de milhares de pessoas pelo lucro. No caso da região de Java Oriental,
cientistas afirmaram que a tragédia se deveu às atividades de fracking – extração de gás de xisto –,
que acidentalmente atingiu um vulcão de lama subterrâneo. A luta por justiça
segue e a imagem de terra arrasada, tudo desaparecido, coberto de lama, das histórias
interrompidas dá força para escrever mais linhas de sobrevivência.
Triste Oceano, de Karina
Holden, alerta para a realidade da vida marinha do mundo, que estamos perdendo
em decorrência do uso
desastroso dos mares e
da exploração desenfreada da pesca. A verdadeira carnificina de milhares de
espécies é pano de fundo para evidenciar a pobreza das pessoas que sobrevivem
desse mercado nas áreas costeiras. Nas imagens, assistimos assustados ao uso
descontrolado do plástico e ao retorno de nossos resíduos à natureza. A imagem
de uma das pesquisadoras retirando um pedaço de plástico da garganta de um
filhote de pássaro marinho é tão impactante quanto os dados apresentados:
metade de toda a vida marinha foi perdida nos últimos 40 anos, e, até 2050,
haverá mais plástico que peixes nos mares.
Os oceanos são a imensidão que
nos conecta com o mundo. Já conseguiu entrar no mar, fechar os olhos e só ouvir
a onda quebrar na areia? Abra os olhos e veja onde ele termina, é água que não
acaba mais, é infinito de vida. Tenho a impressão de que o mar é infinito, que
se conecta com outros mundos possíveis, outros povos, outras tradições,
temperaturas, biomas, tudo com muita ancestralidade. É santuário de salvação.
É o mar que nos leva à Patrimônio,
filme em que a resistência e a luta estão intimamente ligada à imensidão da
natureza, preservada por famílias de pescadores há décadas. O documentário
coloca em cena o racismo ambiental, que faz desaparecer comunidades históricas:
logo no início, executivos brancos celebram a construção de um grande
empreendimento hoteleiro, americano, de bilhões de dólares, que está sendo
planejado para invadir uma pequena comunidade costeira do México. Não é
surpreendente – há décadas acompanhamos com indignação poderosos construindo e
acabando, legal ou ilegalmente, com zonas costeiras e expulsando comunidades
inteiras. A história se repete.
O acesso à água para
sobrevivência local continua ameaçado, e a vida marinha e manguezais,
destruídos. Mas a população local está se organizando para resguardar seu modo
de vida e o delicado ecossistema do qual todos dependem. E quais são os
direitos das comunidades diante dos interesses milionários e do desenvolvimento
insustentável? O que elas podem fazer para defender esses direitos e seu modo
de vida? Unir-se, para salvar tanto esse modo de vida quanto um ecossistema já
ameaçado, do qual todos ali dependem.
Até aqui, aprendemos que ninguém
pode se dizer um ser consciente e não denunciar as injustiças colocadas diante
de si. Todos temos a responsabilidade e o dever de proteger a natureza, a
cultura e as pessoas que vivem de forma sustentável e garantem a sobrevivência
do planeta. É responsabilidade! É desconfortável assistir Patrimônio e não poder
gritar junto com a comunidade de pescadores e suas famílias. Testemunhamos a
mobilização e a conscientização da cidade através dos olhos de Rosario
Salvatierra, cuja família pescou nessas duras águas por quatro gerações, e de John
Moreno, jovem advogado nascido em Todos Santos, surfista e ativista ambiental
que assume uma causa que altera totalmente sua vida, mas que ganha um desfecho
positivo para a história da comunidade.
Assim como em diversos lugares do
mundo, o modelo de desenvolvimento vigente está destruindo comunidades e modos
tradicionais de viver. A permissão para a execução de projetos como esse é
concedida com rapidez e sigilo em nível nacional, e os danos ambientais que os
empresários já causaram seguem impunes. No Brasil, tivemos a má sorte de instituir
Ricardo Salles como ministro do Meio Ambiente – "defensor" das
florestas, biomas e povos e comunidades da floresta. Não por acaso, o
"estouro da boiada" no desmatamento da Amazônia coincidiu com o
período eleitoral de 2018 – que deveria entrar para a história como a maior
desgraça pela qual o país já teve de passar.
O aperto de mãos entre
presidentes poderosos que inaugura as cenas de Sufocado nos coloca
diante da indústria corrupta do amianto e de seu desprezo pelos direitos
humanos. A pesquisa do cineasta Daniel Lambo leva ao maior depósito de resíduos
de amianto da Índia, e revela uma indústria de sangue frio que ainda põe em
risco a vida de trabalhadores e consumidores em todo o mundo.
O amianto é um agente cancerígeno
muito conhecido e não existe um nível seguro de exposição a ele. Ao longo do
século XIX, esse mineral foi amplamente utilizado nas construções civil e naval
e na indústria do automóvel, uma combinação de maldade e degradação ambiental.
Sem proibição, o amianto permanece legal e letal em quase 70% dos países do
mundo, incluindo os Estados Unidos. A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima
que 125 milhões de pessoas ao redor do mundo convivem com amianto no trabalho.
A desgraça é a céu aberto:
pessoas que mal conseguem respirar têm seus direitos e vozes silenciadas de
forma perversa, já que, por outro lado, não podem perder seus empregos. Mesmo
com empregos absurdamente violentos e desumanos. O caminho para a organização
em sindicatos, busca por direitos, pressão para que exista segurança é
fundamental. O ativismo está em todos os lugares? Talvez de formas diferentes,
e em movimentos distintos, muitas vezes não chamados de ativismo.
Por isso, precisamos de
advogados, deputados, vereadores, jornalistas, professores ativistas. Ativistas
de todas as áreas, ocupando os espaços para a busca por direitos, combatendo a
desigualdade social e a degradação ambiental feroz no mundo.
Caminho
Conviver com unidades de
conservação e falar sobre elas é parte fundamental da minha vida desde que
tinha 14 anos, quando vi de perto a criação da Área de Proteção Capivari-Monos
e, depois, ajudei a criar e a pensar a Área de Proteção Ambiental
Bororé-Colônia, ambas dentro da maior e mais significativa parte da Mata
Atlântica da cidade de São Paulo, parte essa que é de uma riqueza biológica
muito importante e necessária a esse bioma.
Ou seja, nasci em uma região que
quase todo mundo desconhece, porque, no imaginário das pessoas, a cidade de São
Paulo é integralmente cinza, com prédios. Minha participação nos espaços de
discussão sobre unidades de conservação, sua importância e as maneiras de lidar
com conflitos em um território limite da área urbana, mas muito rural, se
misturam. No lugar em que a floresta se mistura com a cidade, e a cidade com a
floresta. Conviver com contradições, como precisar valorizar a água, a mata e
toda a biodiversidade, que nos fazem respirar, mas vivenciar a falta de
serviços básicos, que não chega por ali, é bem complexo e urgente. Precisamos
achar meios para que tudo possa conviver em harmonia, ou pelo menos tentar caminhos
comuns. E eu encontrei o ativismo.
Ainda sobre os filmes
Os cinco filmes, mesmo que com
particularidades regionais, caminham por lugares que se encontram. São filmes
que se atravessam, uns resistindo com dor, perda e sufoco por justiça e
existência, outros travando batalhas pela sobrevivência de um mundo ameaçado, e
usando seus privilégios para denunciar injustiças.
Viver pelo coletivo desconhecido
é iniciar um caminho de aprendizado que, em muitos casos, não tem mais volta.
Ser, viver e se tornar movimento social é isso, um emaranhado de nós junto às
nossas vidas cotidianas. O que faz o ser humano esgotar a terra até o último
estágio? Mesmo que isso cause milhares de mortes e ainda mais problemas
ambientais e sociais no mundo? As respostas podem ser diferentes, mas certamente
passam por poder e dinheiro.
Quando ativistas e militantes se
dispõem a trabalhar e lutar para que a biodiversidade permaneça intacta, para
que vidas e tradições não morram de fome ou esquecimento, entregam também um
pedaço da própria vida – sua força e existência – para o mundo. Vidas
atravessadas por outras vidas, que também precisam existir.
Talvez por isso, dentre todos os
filmes, Dolores tenha me virado mais a cabeça. O que chama a atenção é
a entrega com que diversas mulheres se doaram pelo mundo e para seu povo, no
combate ao machismo, racismo e desigualdade social, todos planejados por
grandes lideranças mundiais que não estão comprometidas com a justiça ambiental
e social do mundo. Dolores é o símbolo que tentaram apagar, é o símbolo de um
povo latino-americano que segue sendo exterminado. Símbolo da luta pela terra e
pela preservação ambiental que resiste contra a destruição de territórios de diferentes
povos ao redor do mundo.
Na luta para sermos melhores e
menos predadores, há a resistência de quem diariamente se doa ao mundo para que
o planeta resista por mais alguns longos anos. A utopia ainda persiste para que
se viva, e é capaz de movimentar o mundo, por mais que muitos não acreditem
nisso. Enquanto escrevo esse texto, em um convite muito especial da Mostra
Ecofalante, um vírus vem matando milhares pessoas pelo mundo, e nos faz, por um
instante, parar de acreditar no futuro possível e planejado. A Covid-19, que
nos mata e nos impossibilita de sair de casa, é resultado da forma despreparada
e predadora com que usamos os recursos do planeta. E mesmo em um cenário de
colapso mundial, as grandes corporações seguem o plano genocida de eliminar
florestas, poluir oceanos, matar comunidades inteiras e acabar com a nossa
água.
A possibilidade de criar nossos
mundos desejados, vencer o ódio e combater a desigualdade repousa, acredito eu,
em seguir com nosso trabalho diário no chão dos milhares de territórios. Seguir
os ensinamentos de quem persiste pelo mundo, de quem veio antes e nos ensinou a
cuidar e preservar para existir. O que há poucos anos chamamos de ativismo muda
o mundo, transforma. Até que um dia todos os seres vivos aprendam a viver
juntos.