A Seção Histórica da Mostra Ecofalante deste ano propõe um olhar sobre o cinema latino-americano, colocando em relação o trabalho de três mulheres: a colombiana Marta Rodriguez, a venezuelana Margot Benacerraf e a cubana Sara Gómez. Duas delas são frequentemente lembradas quando o assunto são as realizadoras do continente, seja por terem dirigido filmes emblemáticos, seja pela importância do conjunto de sua obra. Todas as três foram inovadoras ao se relacionar com seu contexto e sua(s) época(s), dialogando, em seus filmes, com as dinâmicas socio-históricas da realidade de seus países e com as propostas estéticas de seu tempo.
Dentre as três cineastas aqui mostradas, a venezuelana Margot Benacerraf, recentemente falecida, talvez seja a menos conhecida entre nós. Isso porque seu único longa, Araya, dirigido em 1959, ainda não ocupa o lugar que deveria na cinematografia latino-americana e mundial. Além disso, a cineasta, a partir dos anos 1960, construiu uma carreira em torno do cinema, mas não predominantemente a partir do lugar de prestígio da direção de filmes. Benacerraf dedicou sua vida sobretudo à formação, à difusão e à conservação cinematográficas, tendo sido uma das fundadoras da Fundación Cinemateca Nacional da Venezuela, entre outras. Embora tenha tentado, nunca mais conseguiu dirigir um filme depois de Araya.
Assim como Benacerraf, Sara Gómez também realizou apenas um longa-metragem, a obra-prima De Certa Maneira (De Cierta Manera, 1977), que também faz parte deste programa. Diferentemente de Benacerraf, para quem o marcador de gênero foi decisivo para não conseguir realizar um outro filme, no caso de Gómez sua morte precoce teve ainda um papel crucial nesse sentido. Apesar disso, a diretora cubana constituiu uma obra com mais de uma dezena de documentários em curta-metragem realizados para o Instituto Cubano del Arte e Industria Cinematográficos (ICAIC), nos anos 1960.
Os filmes de Gómez tinham como motivação sobretudo o contexto pós-revolucionário cubano, explorando, por meio de seus personagens e dos fatos mostrados, a complexidade das relações sociais da ilha em processo de transição. De Certa Maneira, finalizado por Tomás Gutiérrez Alea alguns anos depois da morte de Gómez, é a cristalização de seu cinema. O filme combina elementos de documentário e ficção para, de maneira sutil, porém contundente, fazer emergirem as tensões sociais latentes, incluindo questões de gênero, raça e classe, que apontam para os desafios ainda agudos a serem enfrentados pelo novo regime.
Apesar de estarmos no território do realismo social e do modernismo no cinema, os contextos estéticos de ambos os filmes diferem. Em Araya, filme que mostra a dura realidade nas salinas venezuelanas através de imagens imponentes e implacáveis, a influência neorrealista é evidente, e explorada de forma pioneira dentro do contexto do cinema latino-americano. Já em De Certa Maneira, esse modernismo aparece numa outra etapa, plenamente digerido e em busca de novas formas. O filme incorpora técnicas de montagem e narrativa não convencionais para explorar as complexidades da vida urbana em Cuba.
Dentre as três cineastas aqui apresentadas, Marta Rodriguez é aquela que possui a obra mais extensa, tendo dirigido mais de uma dezena de documentários ao longo de cinco décadas – alguns deles em parceria com Jorge Silva. Recentemente, a Ecofalante exibiu um de seus filmes de maior destaque, Nossa Voz de Terra, Memória e Futuro (Nuestra Voz de Tierra, Memoria y Futuro, 1982). Neste ano, aproveitamos o ensejo da recente restauração em 4K do filme Amor, Mulheres e Flores (Amor, Mujeres y Flores, 1989) para voltar a chamar a atenção para o cinema da documentarista colombiana, sempre tão pungente nos retratos que apresenta dos personagens e da realidade de seu país. Desta vez, neste filme denúncia, ela mostra a vida insalubre de agricultoras, principalmente, que se dedicam à indústria das flores na região da Savana de Bogotá, vítimas, muitas vezes fatais, dos muitos agrotóxicos utilizados para mover a roda do comércio internacional. Esse, aliás, parece ser o resumo da história dos últimos séculos de um continente que se construiu a partir da premissa de que seus recursos naturais e a saúde de sua gente são commodities exportáveis. Vidas insalubres, vidas nuas, que também são denunciadas em Araya.
São filmes, portanto, que tratam de diferentes realidades, mas que se conectam a partir do fio comum da história de exploração do continente. São histórias de exploração, mas também histórias de resistência, em parte explícitas no choque entre tradição e modernidade, temática presente nas três obras. É preciso destacar ainda que a resistência se encontra também na própria materialidade dos filmes; que eles existam e que possam, ainda hoje, ecoar e reverberar a diversidade de olhares e perspectivas do continente, mesmo que a partir de certos limites, possui um significado simbólico muito grande.