A filósofa Nancy Fraser, ao propor a compreensão de que a atual fase do capitalismo se traduz em um “capitalismo canibal”, entende por “canibalizar” o ato de privar um empreendimento/estabelecimento de um elemento essencial ao seu funcionamento, a fim de sustentar outro. Essa seria, a seu ver, a relação entre a economia capitalista e os chamados “territórios não econômicos do sistema: famílias, comunidades, habitats, ecossistemas, capacidades estatais e poderes públicos”. Na crítica da autora, o cenário caótico atualmente vivenciado sacrificaria todos esses últimos em favor da reprodução da própria economia capitalista.
A seleção dos filmes sobre o mundo do trabalho da 13ª Mostra Ecofalante de Cinema nos convida, a partir de múltiplas perspectivas, a pensar na ofensiva contra os direitos sociais e na corrosão que o capitalismo, em sua faceta neoliberal, promove em relação ao próprio contrato social. Cada um à sua maneira, os filmes mostram retratos de espaços e valores sociais canibalizados por uma racionalidade econômica que desconhece e invalida outras métricas que não o lucro.
Vejamos o caso de Breaking Social: O Fim do Contrato Social (2023). O filme sueco promove uma reflexão ampliada sobre as diversas dimensões dessa corrosão social, mostrando os impactos ambientais, psicossociais e, sobretudo, os processos de exploração e expropriação das comunidades pela ofensiva capitalista em diversas regiões do mundo, com ênfase no sul global. Ao registrar ativistas e sujeitos críticos em relação a essa dinâmica, traz para o horizonte a possibilidade da crítica cada vez mais sufocada – ou asfixiada, como diria Franco Berardi – pela narrativa hegemônica de uma sociedade pautada no individualismo e na competição diária por projetos autobiográficos, em relação aos quais a questão social e as reflexões coletivas ficam esvaziadas.
Em Breaking Social, contudo, as mobilizações coletivas que se prestam a reagir e questionar a ofensiva neoliberal são trazidas ao centro, com destaque para a grande mobilização da juventude chilena em 2019 contra o modelo de austeridade e de fragilização dos direitos sociais implementado no país. Assim, o documentário aporta uma dimensão de esperança, ao evidenciar a força coletiva dessas mobilizações, que impulsionaram uma nova Constituinte para o Chile.
Para o espectador de 2024, que já conhece o desfecho desse processo político – a proposta de nova Constituição foi rejeitada pela maioria da população em plebiscito –, o sentimento é de ambiguidade: ao mesmo tempo que reconhecemos vivamente a força política e coletiva do movimento social que deflagrou esse processo, assistimos à violenta repressão policial e, também, ao poderio ideológico da contraofensiva conservadora, dimensionando o desafio do tempo presente.
Ainda na chave da reflexão sobre a austeridade e a fragilização do Estado Social, o filme Estado Limite (État Limite, 2023) nos transporta para um hospital psiquiátrico em uma zona periférica da França, cujos pacientes são majoritariamente pessoas negras, imigrantes e jovens provenientes de trajetórias de vida marcadas pela violência e pela exclusão. O adoecimento psíquico aparece como produto de uma sociedade desigual e excludente, que enseja sofrimento e dissociação àqueles que lhe são indesejáveis.
Ao acompanhar a luta de um jovem médico psiquiatra – único para uma quantidade de pacientes desproporcional – e de sua reduzida equipe, o desabafo do profissional é avassalador. De um lado, os quadros ali enfrentados são produtos da exclusão e da falência do Estado Social em diversos outros setores (trabalho, moradia, assistência social). De outro, uma vez acometidos pelo adoecimento psíquico, aqueles sujeitos são vistos como inúteis, porque demandam a atenção de saúde e não oferecem contrapartidas, visto que se encontram incapacitados para produzir e, assim, ter qualquer possibilidade de valor reconhecida em uma sociedade cada vez mais centrada numa perspectiva meritocrática, em que a capacidade de gerar lucro é a única medida considerada.
Nesse enredo, a possibilidade de investimento público na atenção à saúde dessa população e, por consequência, de melhoria das condições de trabalho da equipe profissional deles incumbida é absolutamente estranha às prioridades de um Estado focado no enxugamento dos gastos públicos e numa racionalidade cada vez mais mercantil de investimento exclusivamente voltado à obtenção de resultados, como observaram Dardot e Laval.
Adentrando de forma mais direta a questão dos trabalhadores e trabalhadoras, Os Motivados (The Driven Ones, 2023) e Mil Pinheiros (A Thousand Pines, 2023) nos mostram duas faces de um mesmo mundo do trabalho em degradação. Em Os Motivados, jovens treinados em um centro de excelência suíço para formação de administradores aportam ao mercado de trabalho com grandes expectativas de ascensão e, sobretudo, de captura de recursos/investimentos para empreenderem. Contudo, essas trajetórias, salvo raras exceções, são marcadas pela ascensão a cargos executivos em grandes empresas, que, embora muito bem remunerados, exigem desses sujeitos renúncias familiares, sociais e até mesmo éticas.
As vidas pessoais e as aspirações desses jovens ficam prejudicadas por cargas horárias excessivas, ausência de desconexão com o trabalho e necessidade de se deslocar geograficamente para onde as boas oportunidades aparecem, engendrando rompimentos amorosos, afastamentos familiares e profunda solidão. Além disso, a necessidade de operar diuturnamente com a lógica da maximização dos lucros impõe “tarefas” como negligenciar demandas sociais e sustentar demissões em massa, por exemplo, bem como os empurra para deixar em segundo plano preocupações com inclusão de gênero e raça, que fazem parte de suas próprias vivências e mesmo dos aprendizados com os quais se depararam em sua formação. Nesses tristes enredos de vidas bem-sucedidas sob a métrica do capital, mas vazias de sentido, temos uma face da degradação do trabalho, colocada pela perda de sua razão social, mesmo para aqueles e aquelas que se encontram no topo das hierarquias, mas que, ainda assim, se veem como engrenagens de processos de exploração e suportam as consequências psicossociais desse modo de vida.
Em uma face bem distante das elites executivas, mas marcada por problemas correlatos (guardadas suas devidas proporções) estão os trabalhadores mexicanos contratados por temporada em atividades de reflorestamento para a produção de madeira nos EUA, retratados no filme Mil Pinheiros. A contratação periódica para trabalhar nos EUA durante parte do ano aparece como oportunidade e possibilidade de redenção para inúmeras famílias de trabalhadores mexicanos que não teriam como alcançar rendimentos pelo seu trabalho nas comunidades locais. Com o valor do rendimento advindo de cada temporada, eles sustentam seus familiares durante todo o ano e conseguem adquirir bens de consumo para seus lares.
Entretanto, o custo dessa “oportunidade” é alto. A contratação precária desses trabalhadores imigrantes, que chegam a ter que plantar milhares de pinheiros por dia em terrenos áridos, tanto nas estações do inverno quanto do verão, se dá mediante o recebimento de um valor semanal pelo número de mudas plantadas, sem nenhuma infraestrutura de moradia, alimentação, saúde ou segurança do trabalho. Como imigrantes, eles representam focos de expropriação no ambiente do norte global, não alcançando sequer as condições daqueles que são explorados.
Durante os longos períodos em que se ausentam do convívio familiar e comunitário, esses trabalhadores se acomodam em hotéis de beira de estrada, dividindo quartos precários com muitos outros trabalhadores e se alimentando também precariamente dos ultraprocessados que conseguem adquirir nos mercados locais. As dores musculares pelo trabalho pesado e a falta do convívio familiar, aliadas ao assédio dos gerentes pela qualidade e quantidade do trabalho, fazem com que o gosto do acesso ao “sonho americano” seja amargo.
Duas realidades diametralmente opostas – dos trabalhadores imigrantes contratados de forma espoliativa e dos altos executivos de grandes empresas europeias – revelam, cada uma à sua forma, a degradação promovida por uma racionalidade que instrumentaliza o trabalho e os seres humanos, dissociando a atividade produtiva e criativa das formas de viver de cada comunidade e das respectivas necessidades sociais.
Por fim, o emocionante Union (2024) nos leva a acompanhar o processo político de formação do primeiro sindicato de trabalhadores da Amazon nos EUA. Nessa obra, cuja realidade também foi investigada por Ruy Braga em A angústia do precariado, observamos a potência de um movimento coletivo surgido no contexto da pandemia, por parte de trabalhadores sem experiências anteriores com o sindicalismo e alheados da estrutura sindical tradicional dos EUA, que fazem convergir uma série de indignações sociais, notadamente contra as péssimas condições de trabalho vivenciadas nos galpões da Amazon, para um movimento espontâneo e potente de construção da ALU – Amazon Labor Union.
O documentário mostra como estratégias criativas e a agregação de pautas relevantes como a questão racial e a da moradia fizeram parte do repertório dos sujeitos, que utilizaram a comunicação virtual, mas também o contato direto com os trabalhadores, por meio do oferecimento de lanches (e até de maconha) em frente aos locais de trabalho. Essa articulação permitiu que, a despeito da escandalosa conduta antissindical das direções empresariais, fossem preenchidos os rígidos requisitos para a criação do sindicato dos trabalhadores da Amazon em Nova Iorque.
As peculiaridades da questão social nos EUA, notadamente com o agravamento da questão da moradia e da falta de proteção social, tornam dramática a situação dos empregados da Amazon. Também é desafiadora a construção de um espaço de resistência, seja pelas dificuldades inerentes aos processos coletivos, seja pela conduta abusiva e assediadora da empresa contra as lideranças.
A resistência retratada no filme aponta para uma nova forma de ser das lutas coletivas, pulsante, ainda que sob a égide do neoliberalismo. Como observa Fraser, a crise atual também tem o condão de gerar “novas configurações políticas e gramáticas de conflito social”, de modo que as lutas pelo trabalho se imbricam produtivamente a questionamentos sobre outros eixos de desigualdade e outras formas de construção política, alimentando um horizonte de resistência. Nesse novo cenário, é incontornável se pensar na centralidade do meio ambiente, um desses “espaços não econômicos”, em meio a questões de reconfiguração do contrato social.
Como um “ouroboros” que engole a própria cauda, o sistema do capital desconhece os limites para um convívio sustentável entre seres humanos e meio ambiente, em suas múltiplas dimensões, como as demandas sociais e trabalhistas focalizadas no conjunto de filmes que abordamos, e também as demandas de preservação ambiental e sustentabilidade – que nos atingem sobremaneira no dia a dia, vide o recente desastre ambiental de enormes proporções no estado do Rio Grande do Sul por conta das enchentes, que deixam mortos, desaparecidos e desabrigados, além de danos materiais e imateriais ainda incalculáveis. Certamente, a falência de um pacto social voltado para a preservação do bem comum e de valores que transcendem a esfera econômica contribui para que essa autofagia seja ainda mais desastrosa.
Lançando luz sobre a necessidade de expandir os horizontes críticos, os desastres do presente e a catástrofe ambiental iminente nos lembram, dolorosamente, de que o caráter autodestrutivo do sistema nos corta a própria carne, enquanto trabalhadores e comunidades que pertencemos a e dependemos intrinsecamente do espaço natural que habitamos. Esse cenário nos impele a repensar, com urgência e com radicalidade, na esteira do que já alertava Karl Polanyi, estratégias e contramovimentos que possam conter o “moinho satânico” do capital. Se, por um lado, não temos respostas prontas ou simples para problemas complexos, por outro, é certo que elas passam necessariamente pela refundação do pacto social.