O mestre Gilberto Gil, em 1992, nos diz em poesia que antes o Mundo era muito grande, porque a Terra era grande, e hoje o Mundo é muito grande, porque a Terra é pequena, podemos tê-la no tamanho da antena Parabolicamará. A poesia é uma aula de como a humanidade se moveu pelas necessidades de ter o “mundo”, transformando a Terra em sua imagem a tal ponto que, por hora, perdemos até a saudade das paisagens da terra sem a natureza – nas terras da imagem humana.
A terra, neste ano, memoriza 30 anos do massacre que assassinou mais de 800 mil tutsis, tuas e hutus em um período de cem dias em Ruanda, no continente africano. Em 1994, as imagens das terras de mãos de sangue apagavam a beleza dos pés das mulheres da terra de Guicongoro, que desenhava a África, como escreveu a escritora Scholastique Mukasonga, sobrevivente tutsi – em saudade da Natureza Terra que “antes longe era distante, perto só quando dava”.
Nas imagens da terra humana, no documentário República dos Gafanhotos (Grasshopper Republic, 2023), o diretor estadunidense Daniel McCabe fotografa as naturezas (florestas e condições humanas) no oeste de Uganda durante o ciclo de vida dos gafanhotos, que voam, em enxames, através das grandes florestas do continente africano e em tempo alcançam os ventos quentes do Saara, chegando às terras insulares de Cabo Verde, na costa atlântica, em busca de alimentos.
Mesclam-se cenas de reprodução de insetos com a vulnerabilidade dos humanos que, nas florestas, buscam garantir comida, usando das tecnologias disponíveis – técnicas que são aprimoradas para a captura do alimento e garantia de capital – para caçar o maior número possível de insetos a tempo de ter condições de comer na desumanidade que as terras com mãos de sangue lhes deixaram como presente. Um cinema observacional, sem complexidade, silencia o genocídio da milenar arte africana extrativista e torna visíveis, nas luzes, os seres que ameaçam a existência dos gafanhotos: famintos caçadores e comerciantes de insetos. E se a obra contasse a história pela perspectiva dos caçadores?
Luzes extrativistas na caça de gafanhotos nas florestas de Uganda remetem às luzes tecnológicas da frota mercantil chinesa na caça de lulas no Atlântico Sul Ocidental. No curta A Frota Chinesa (Squid Fleet, 2023), de Ed Ou e Will N. Miller, temos imagens da terra humana com narração em primeira pessoa dos pescadores, que apresentam as complexidades de viver no oceano das terras distantes por conta da cultura gastronômica do país, consumidor de lula. Trata-se de uma cadeia alimentícia que move diretamente cerca de 50 milhões de pessoas, com impactos reais no ciclo de reprodução da espécie, o que levou à moratória da pesca, decretada em 2021 pela República Chinesa relativamente à pesca de lula no Atlântico Sul e Pacífico e na Costa Sul do continente africano.
Viver nos barcos pesqueiros, em águas distantes, é uma tradição de gerações, passada adiante em nome de alimentar as famílias e o seu país. Em imagens nas águas, o filme busca o olhar das lulas para as luzes noturnas, que se tornam sua atração, assim como os gafanhotos, nas florestas, observam as técnicas humanas que os atraem pela claridade. Os autores registram as condições humanas em uma embarcação, que se move junto a outras duas mil, trazendo a complexidade da terra humana. A história dos caçadores de lula é publicada fora de sua terra, mas há imagens dos caçadores.
Imagens da terra humana nos levam ao filme Silvícola (Silvicola, 2023), de Jean-Philippe Marquis, uma jornada fotográfica através das formas humanas de gestão da natureza, que colocam em contradição os tempos históricos dos descendentes de colonos na província da Colúmbia Britânica, na costa pacífica do Canadá. É importante destacar que o documentário busca, nos cortes das árvores, o tempo de vida que as motosserras apagam hoje e, séculos atrás, eliminaram os povos originários dessas florestas, atualmente tomadas por uma diversidade de pinheiros.
O filme é narrado majoritariamente por homens brancos que confrontam técnicas extrativistas e industriais de manejo florestal, surpreendendo pela ausência de fala de mulheres descendentes dos povos originários e imigrantes, que são as mãos que cultivam, dentro do manejo industrial, as sementes e mudas do reflorestamento. O registro da manufatura de mudas é feito através da ação de um homem narrando os movimentos de plantio nas montanhas, discursando sobre a sobrevivência das mudas que estão sendo plantadas ali. Isso se não for garantido o direito de a floresta florir em biodiversidade, já que ela não é só árvores. Uma história de contradição, pela perspectiva do extrativista ou industrial, não deixa dúvida sobre a importância e complexidade para equilíbrio climático do planeta que é ter florestas, as quais não podem ser florestas plantation.
Já Antártica: Continente Magnético (Voyage au Pôle Sud, 2023), de Luc Jacquet, especialista há 30 anos no continente, realiza, com narrativa off e registro de paisagens, uma viagem para documentar o degelo nas montanhas e a extinção dos icebergs. Durante essa jornada, que traz reflexões, nos mostra álbuns de navegantes que viajaram ao Polo Sul, em memória do importante trabalho de exploração que realizaram – apresentando, em passagem sem maiores informações, como as terras com mãos de sangue colonizaram o continente em degelo. Estamos diante das mudanças climáticas, e os efeitos nos extremos sul e norte da Natureza Terra são reais.
Com uma fotografia densa em texturas preta e branca, o documentarista registra as comunidades de pinguins, leões-marinhos, baleias, golfinhos e a vida nas águas do Atlântico Sul, que poderão deixar de existir junto dos icebergs. O bucólico é usado para direcionar a atenção à imagem da terra humana – um movimento amparado em técnicas e tecnologias capazes de nos levar à memória da saudade da natureza que é a Terra.
Essa saudade da imagem Natureza Terra é o que a escritora, documentarista e contadora Sarvnik Kaur captura em Contra a Maré (Against the Tide, 2023), nos aproximando do cotidiano de pescadores de Mumbai, maior cidade no estado de Maharashtra, na costa leste da Índia. A documentarista nos guia pela tradição de pesca com o sistema Koli para apresentar as imagens da terra humana que será estabelecida pelos amigos Rakesh e Ganesh. É uma narrativa muito viva e originária de pertencimento, que nos permite, mesmo com a limitação imposta pela não compreensão do hindu, fruir de sua fotografia e seus movimentos de câmera, que dão natureza e humanidade às culturas e ao pescador, que está cada vez mais distante de Rakesh. Diante da frota mercantil pesqueira, que aporta de manhã nas águas de Mumbai com toneladas de atum (de que Ganesh se tornou intermediário), a rede no mar, perto da família, está cada dia mais vazia. As narrativas e conflitos entre os amigos vão revelando o quanto a indústria da pesca oriental tem impactado os ciclos de reprodução das espécies e, somada aos fenômenos climáticos que se intensificam nas águas do Pacífico, tem reduzido a biodiversidade marinha.
Uma obra de saudades em imagens da Natureza Terra é Os Caçadores de Barragens (#DamBusters: The Start of the Riverlution, 2022), do ativista e cineasta Francisco Campos-Lopez Benyunes, que nos lança em uma jornada para mapear e lutar pela eliminação das obras de barramento dos rios na Europa Ocidental. O documentário apresenta a importante memória das lutas pela retirada das barragens na França, Espanha, Estônia e Lituânia, além de registros na Letônia, Grécia, Hungria e Finlândia. É uma obra que nos mostra que as cidades precisam deixar os rios correrem ao encontro do mar. É necessário olhar para as águas como organismo vivo, que precisa deixar as prisões da imagem humana da terra. Os desafios nesse processo são grandes, já que estamos falando de uma grande mobilização que leve as populações ao contato com a natureza das águas, forma de biodiversidade e fonte de qualidade de vida nos espaços urbanos. Sua liberdade também contribuirá para a redução de gases de efeito estufa na atmosfera. Os Caçadores de Barragens é um registro desse ativismo, com fotografia da imagem da terra humana, que nos move em reflexão e apresenta formas simples de conseguirmos recuperar grandes bacias hidrográficas que hoje são vistas como mortas diante da prisão das barragens.
Por fim, trazemos, neste panorama, o documentário 2G (2023), de Karim Sayad, que nos apresenta as condições de vida dos povos no Níger, uma rota de imigração das populações violadas da ideia de humanidade que buscam no tráfico humano as imagens das terras de mãos sujas de sangue para sentirem o direito de existir. O filme possui grande riqueza documental em formas diaspóricas de fotografar a imagem da terra humana, com uma camada de cores que deixa o Saara vivo, em movimento.
Nessa jornada, Ibrahim Nouhou Agan, Abdousalam Nouhou Agan, Daouda Nouhou Agan, Abdallan Adam e Ibrahim Ahamed nos conduzem pelo Saara, com imagens que nos conectam e desconectam da imagem da Natureza Terra. Lado a lado, assistimos ao tráfico humano e à migração em busca de esperança – a vida humana em buracos pela pepita em grãos. Em off, o jovem Agan revela sonhos com educação, a realidade de viver com a família, o ensinamento daqueles que viram seus horizontes serem apagados pelas imagens das terras de mãos sujas de sangue. É enriquecedor sentir uma narrativa diaspórica diante da desumanidade que está sendo registrada. É como trazer saudade de natureza e não deixar que a realidade seja início, meio e fim da vida em regiões remotas. Jovens e homens sentem no corpo o calor das terras do deserto e sorriem para um aparelho erguido para o alto por um sinal Parabolicamará.