The past has been a mint
Of blood and sorrow.
That must not be
True of tomorrow.
Langston Hughes, "History"
Em 2013, em Colgate, no Estado de Nova Iorque, durante a 59ª edição do Flaherty Film Seminar, intitulada “History Is What’s Happening”, programada por Pablo de Ocampo, tive a alegria e a honra de conhecer Sarah Maldoror e de lhe servir de intérprete juntamente com a cineasta e pesquisadora Joana Pimenta. Meses depois, em Paris, a pedido da pesquisadora Maria do Carmo Piçarra, fiz-lhe uma entrevista. Nessa conversa, além de ter abordado os modos de produção e a história material de certos filmes, a doce e indômita cineasta definia clara e vigorosamente os parâmetros formais, políticos e epistêmicos da sua praxis: o seu cinema procurava reinterpretar a tradição cinematográfica a partir de uma alteridade relacional, contestar a visão unificada do mundo imposta pelo sistema capitalista-colonial e descolonizar a própria representação cinematográfica. Maldoror, que nos deixou em 2020, entrevia o cinema, “um cinema sobre nós e vós”,[1] como um instrumento de emancipação e transformação do mundo.
De Monangambé (1969) a Aimé Césaire – A Máscara das Palavras (1987), os filmes exibidos na retrospectiva que a 11ª Mostra Ecofalante de Cinema dedica a Maldoror evidenciam as dimensões plurais da obra da cineasta francesa de origem guadalupense. Ao articular uma função poética com uma intenção política e epistêmica — a de oferecer contra-perspectivas sobre o presente e a história tendo em vista a transformação do mundo —, a filmografia de Maldoror apresenta-se como uma poética relacional e intencional. Está nela em jogo uma poética do mundo — e, em particular, do paradigma de emancipação das décadas de sessenta e setenta — que procura superar e reelaborar os mecanismos e os modos perceptivos, cognitivos e representativos de ordem colonial que moldaram historicamente (e continuam a moldar) o olhar e as formas do cinema dominante — e que são intrínsecos ao próprio dispositivo cinematográfico. A obra da cineasta interpela o olhar e o observador “ocidentais” ao tornar visível o fora de campo do cinema hegemônico (as lutas de libertação africanas, bem como a potência e o dinamismo das formas culturais extra-europeias e transculturais, que encontram expressão em filmes como Fogo, Île de feu, de 1977). Ao mesmo tempo, faz sensíveis, com o intuito de desmantelá-los, os “interditos” das sociedades “metropolitanas” (a persistência de divisões coloniais, o racismo estrutural).
O cinema de Maldoror organiza-se em torno de duas operações complementares: a autorrepresentação, levada a cabo através de procedimentos narrativos e estéticos não-hegemônicos, é nele indissociável de uma rotação do olhar, de um olhar que observa e figura os países centrais (e, em particular, a sociedade francesa) a partir de uma perspectiva alterna e relacional. Os filmes-espelho de Maldoror são, tal como as obras de outras cineastas afro-diaspóricas, como Barbara McCullough, Fronza Woods ou Zeinabu Irene Davis, o lugar de um encontro de olhares. Em 1988, a propósito de Sambizanga (1973), bell hooks acentuava a construção do olhar — a possibilidade de um contra-olhar e de um encontro de olhares — como um processo central no cinema de Maldoror: “a mulher negra não-colonizada fixa o seu olhar, faz filmes, faz imagens que nos restituem uma presença. podemos [sic] ver aquilo que não foi antes visto, ver-nos — a criar — a ver — em devir”.
Repensar a história eurocêntrica e canônica do cinema a partir de obra de Sarah Maldoror
Nascida em 1929, em Gers, no Sul de França, de mãe guadalupense e pai originário da região, Maldoror é considerada uma pioneira do cinema africano e afro-diaspórico. É a primeira cineasta a tratar as lutas de libertação e o processo tardio de descolonização dos países africanos de língua portuguesa através do sistema de representação da ficção. Adotando o pseudônimo “Maldoror” em homenagem a Lautréamont, exemplifica o percurso do cineasta internacionalista das décadas de sessenta e setenta. De Moscou, onde se instala em 1961 para ali frequentar as aulas do cineasta realista socialista Marc Donskoï, encontrando, então, Sembène Ousmane, a Bissau, onde, depois da independência da Guiné-Bissau, realiza uma série de filmes, passando por Argel, a sua trajetória ilustra o cosmopolitismo e as aspirações do cinema tricontinental.
Composta por cerca de quarenta títulos em todos os formatos e gêneros, do longa-metragem à reportagem televisiva e da ficção ao documentário, a filmografia de Maldoror permaneceu durante décadas nas zonas de sombra da história canônica do cinema, história que urge repensar à luz de critérios não-eurocêntricos, bem como segundo uma abordagem não-patriarcal dos cinemas (bem como dos próprios processos) revolucionários, que incluiria, além da cineasta, Esfir Shub na União Soviética, Sara Gómez em Cuba, Josefina Crato na Guiné-Bissau ou María Barea no Peru, entre outras figuras. O trabalho de conservação, digitalização e restauro dos filmes de Maldoror levado a cabo ao longo dos últimos anos graças aos esforços empreendidos pelas suas filhas, Annouchka de Andrade e Henda Ducados, tem contribuído decisivamente para a re-emergência da sua obra.
Maldoror instala-se em Paris no início da década de cinquenta. É então que começa a frequentar o círculo da livraria Présence Africaine e se aproxima de Léopold Sédar Senghor, Alioune Diop, Édouard Glissant e Aimé Césaire, a quem consagra uma série de filmes, como Aimé Césaire – A Máscara das Palavras, título da programação da Mostra que documenta inventivamente a intervenção do poeta, dramaturgo, ensaísta e político martinicano na Primeira Conferência Hemisférica dos Povos Negros da Diáspora organizada em sua homenagem em 1987, na Universidade Internacional da Flórida, em Miami, a par de fragmentos da sua vida na Martinica. A carreira artística de Maldoror começa no teatro, com a fundação da companhia Les Griots com três amigos então também estudantes. As encenações de peças de Jean Genet e de Jean-Paul Sartre pela companhia anunciam o gesto crucial que atravessará a obra cinematográfica por vir de Maldoror: a procura de uma autorrepresentação africana e afro-diaspórica, a par do ensejo de reinterpretar a tradição cultural, literária e visual europeia (e, em particular, francesa) a partir de uma poética relacional. O desejo de descolonizar as formas culturais, performativas e visuais — assim como o próprio olhar — está na base dos estudos cinematográficos que Maldoror realiza em Moscou.
De Moscou a Argel
Depois dos estudos em Moscou, Maldoror reúne-se com o seu companheiro, o ensaísta, ideólogo e primeiro presidente do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) Mário Pinto de Andrade em Rabat e, em seguida, em Argel, a então “Capital dos revolucionários”, título do filme realizado em 1972 por Gordian Troeller e Marie-Claude Deffarge a propósito da efervescência revolucionária da principal cidade argelina. Em 1969, o Festival Pan-Africano de Argel, em que participam delegações do MPLA, do Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), liderado por Amílcar Cabral, e da Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO), é fundamental para reforçar os laços internacionalistas dos movimentos de libertação. Dos Black Panthers ao Vietcong, todos os movimentos de libertação passam por Argel. O Festival Pan-Africano demonstra a importante função da cultura nas lutas de libertação africanas, aspecto que é sublinhado no intertítulo final de Festival Panafricain d’Alger 1969 (1969), filme de William Klein no qual Maldoror colabora: “A cultura africana será revolucionária ou não será”.
A carreira cinematográfica de Maldoror inicia-se em Argel. Em 1966, trabalha com Ahmed Lallem no média-metragem Elles e é estagiária de Gillo Pontecorvo em A Batalha de Argel (1966). Ao contrário do cineasta italiano, Maldoror adotará uma perspectiva atenta a questões de gênero na representação das lutas de libertação. Combinando inventividade formal e engajamento político, o seu cinema dará corpo às formas emancipatórias de uma indisciplina poética e política.
Uma estética da sensorialidade e dos afetos
Em Argel, Maldoror encontra Elisa e Carlos Pestana, militantes do MPLA que encarnarão duas das três personagens principais da sua opera prima, o curta-metragem Monangambé, parte do programa da Mostra. Primeiro filme de ficção sobre a luta de libertação de Angola, produzido pela Frente de Libertação Nacional e pelo Exército Nacional Popular argelinos, Monangambé, termo que significa “contratado”, designando os trabalhadores negros forçados a trabalhar nas plantações coloniais, é filmado em três semanas nos arredores de Argel. Debruçando-se sobre a tortura nas prisões coloniais do sistema fascista português, do outro lado da “linha abissal”, o filme é uma adaptação do conto O Fato Completo de Lucas Matesso (1962), do escritor angolano Luandino Vieira. A estética da sensorialidade e dos afetos do filme e sua poética de resistência aos modos perceptivos e visuais dominantes anunciam os procedimentos formais de Sambizanga, primeiro longa-metragem de Maldoror, baseada em outra obra de Vieira, A Verdadeira Vida de Domingos Xavier (1961), que também poderá ser vista na Mostra.
Em Monangambé e Sambizanga, o cinema de Maldoror afirma uma poética relacional e plural do mundo que procura desconstruir as categorias de classe, raça e gênero que informam o cinema hegemônico em geral e o cinema colonial em particular. Os dois filmes colocam um olhar que não só se opõe ao cinema hegemônico e ao paradigma escópico dominante, apontando para outros paradigmas, como também interpela os discursos masculinos heroicizantes que predominam no cinema anticolonial. Em Sambizanga, a personagem de Maria, interpretada por Elisa Pestana, procura o marido, Domingos, encarnado pelo guerrilheiro do MPLA Domingos Oliveira, preso e torturado pelo sistema colonial em Angola. Filmado na República Popular do Congo, montado em Paris e produzido com o apoio do MPLA, o longa-metragem complexifica os procedimentos formais de Monangambé. Os enquadramentos sem profundidade de campo reconstituem as condições sensíveis e as perspectivas perceptivas e cognitivas dos corpos dominados — e resistentes — do colonialismo.
A estética da sensorialidade e dos afetos de Monangambé e Sambizanga aponta para a possibilidade de pensar o cinema enquanto dispositivo moderno e colonial que resulta da incorporação dos pressupostos científicos e ideológicos da modernidade europeia hegemônica a partir de outros parâmetros, extirpando-o da sua colonialidade. O cinema de Maldoror interroga o paradigma capitalista-colonial (e também patriarcal), sem deixar, contudo, de examinar criticamente e de se contrapor às formas rígidas e às estruturas de dominação operativas em um certo cinema anticolonial.
O olhar em rotação
O cinema de Maldoror não cessou jamais de propiciar o encontro relacional de olhares através de uma perspectiva que tende a dissociar-se dos paradigmas perceptivos, cognitivos e representativos dominantes. Em dois títulos do programa da Mostra — Uma Sobremesa para Constance (1980) e a reportagem televisiva Retrato de uma Mulher Africana (1985) —, o olhar de Maldoror foca-se em França, nas relações entre o ex-colonizador e o antigo colonizado e na condição dos imigrantes africanos. Estes dois filmes, resultantes de modos de produção diversificados e fazendo uso de formas estilísticas variadas, tornam sensível a existência de divisões coloniais na França e do racismo estrutural da sociedade francesa. Na esteira de obras como Afrique sur Seine (1955), de Paulin Soumanou Vieyra e Mamadou Sarr, e de Soleil Ô (1969), de Med Hondo, os dois filmes constituem concretizações do “cinema sobre nós e vós” de Maldoror, abrindo também a possibilidade de repensar a história do cinema — e do cinema francês em particular — a partir de parâmetros não-eurocêntricos e de traçar uma genealogia dos modos materiais e formais de autorrepresentação que encontra nos cinemas afro-diaspóricos contemporâneos, tal como declinados no Brasil e em outras zonas geopolíticas, uma das suas linhas de continuidade.
Raquel Schefer
Raquel Schefer é pesquisadora, realizadora, programadora e docente na Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris 3. Doutora em Estudos Cinematográficos e Audiovisuais pela Universidade Sorbonne Nouvelle com uma tese dedicada ao cinema revolucionário moçambicano, é mestre em Cinema Documental pela Universidad del Cine de Buenos Aires e licenciada em Ciências da Comunicação pela Universidade Nova de Lisboa. Publicou a obra El Autorretrato en el Documental na Argentina, bem como diversos capítulos de livros e artigos em Portugal e no estrangeiro. Foi Professora Assistente na Universidade Grenoble Alpes, docente nas Universidades Paris Est - Marne-la-Vallée, Rennes 2, na Universidad del Cine de Buenos Aires e na Universidad de la Comunicación, na Cidade do México, e pesquisadora convidada na Universidade da Califórnia, Los Angeles. É bolsista de pós-doutorado da FCT no CEC/Universidade de Lisboa, no IHC/Universidade Nova de Lisboa e na Universidade do Western Cape e coeditora da revista de teoria e história do cinema La Furia Umana. No CEC, é coordenadora do grupo “Visual Culture, Migration, Globalization and Decolonization” e, no IHC, da Oficina de História e Imagem. É conselheira de programação do International Film Festival Rotterdam (IDFA).