Quando vejo minha mãe hoje, seu corpo destruído pelos quinze anos de
trabalho duro numa linha de produção, com dez minutos de pausa para ir ao
banheiro de manhã e de tarde, sou tomado pelos resultados concretos e físicos
da desigualdade social. Entretanto, mesmo a palavra desigualdade é um eufemismo
que obscurece a realidade da violência nua e crua da exploração. Quando uma
mulher envelhece, seu corpo revela a verdade da existência das classes.
Essa é uma
das passagens – em tradução livre – de Regresso a Reims (Fragmentos), filme francês de 2021, dirigido por Jean-Gabriel Périot. A narrativa,
extraída de trechos do livro autobiográfico Retorno
a Reims, do filósofo Didier Eribon, é acompanhada por uma série de
fragmentos da filmografia francesa, revelando a reprodução social da classe
trabalhadora na França dos séculos XX e XXI. A arte apresenta-se como campo
potente de reflexão e crítica, uma difícil façanha frente a um mundo do
trabalho com horizontes tão minguados, como mostra esta seleção do eixo Trabalho
da 11ª Mostra Ecofalante.
Nesse filme,
as questões de raça, classe, gênero e sexualidade concretizam-se nas cenas e considerações sobre os destinos
e trajetórias de trabalhadores e trabalhadoras. Nos é oferecido um exercício sociológico
impressionante sobre a produção e reprodução das desigualdades, que também é a
produção e reprodução de modos de vida, de projetos de sociedade, da política e
da expressão do conflito de classes e seus desdobramentos. A classe
trabalhadora e o racismo, a classe trabalhadora e sua adesão à
extrema direita, o papel recente dos
partidos de esquerda: também são dadas
pistas para os enigmas do presente.
Os filmes deste
ano nos trazem, por diferentes perspectivas, a violência do mundo do trabalho,
mas também os sentidos, estratégias e esperanças que são traçados
cotidianamente e que colocam tudo em movimento, mas, ao mesmo tempo, são
dolorosamente extirpados. Os desafios políticos contemporâneos atravessam toda
a filmografia, sintetizados ironicamente e sem remissão no curta sueco Jobs
for All!, dirigido por Axel Danielson e
Maximilien Van Aertryck, o qual também poderia ser intitulado “palmas para os
trabalhadores” – vale a pena ver para entender. Compondo uma narrativa
quase linear, mas não simplista, o filme retrata o desenvolvimento tecnológico
incorporado em novas formas de dominação e controle: apertar parafusos ontem,
montar placas eletrônicas hoje, ser operadora de telemarketing, ser motorista
com dois empregos e jornadas extensas de trabalho... Nas fábricas, a figura
ameaçadora dos robôs que parecem prescindir do trabalho humano indica o
impasse: para onde vamos, para onde queremos, podemos, ir? Já os trabalhadores
abandonados no cenário melancólico do curta inglês de 2021, Cold
Stack:
Um Mundo à Deriva, dirigido por Frank Martin, podem nos levar àquela constatação:
“terrível com o trabalho, pior sem ele”. A paisagem impressionante nos fala
sobre a capacidade criadora, transformadora e destruidora – em diversos
sentidos: ambiental, cultural, econômico – que o desenvolvimento capitalista
carrega.
Uma espécie
de saudades de Charles Chaplin na esteira de fábrica pode acometer nossos
corações quando nos deparamos com os trabalhadores uberizados de The
Gig Is Up: O Mundo é uma Plataforma, filme dirigido por Shannon Walsh, coprodução canadense-francesa de 2021. Mas,
longe de um “antes e depois”, é preciso estar atento ao fato de que o que está
em jogo, na realidade, são as perversas
combinações contemporâneas de diferentes formas de organização, gerenciamento e
exploração do trabalho. Nos deparamos então com
diferentes – e surpreendentes – tipos sociais e histórias de vida de
trabalhadores informais que hoje compõem o exército mundial de alimentação da
inteligência artificial, envolvidos em tarefas altamente fragmentadas,
repetitivas, quase desprovidas de sentido. Sua atividade desmancha no ar o
fetiche da plena automação, dos algoritmos e das máquinas inteligentes. Trata-se de multidões de trabalhadores
invisibilizados, remunerados em centavos por cada tarefa, subordinados de forma
centralizada em cadeias globais difíceis de mapear, desempenhando trabalhos fragmentados e que mal parecem trabalhos, mas que hoje são
imprescindíveis ao desenvolvimento tecnológico.
A
elas se juntam os milhões de trabalhadores e trabalhadoras-emblemas dos nossos
tempos: motoristas e entregadores por aplicativo. A pandemia deixa nua e crua a
condição daqueles que vivem como trabalhadores sob demanda, subordinados a
empresas que controlam seu trabalho, definem seus ganhos, definem todas as
regras do jogo, mas não têm qualquer responsabilidade sobre as degradadas
condições de vida que elas produzem e reproduzem. A uberização hoje nomeia uma
tendência mundial que permeia o mundo do trabalho. Trata-se de uma nova forma
de organização e gerenciamento, que ganha muita visibilidade nos trabalhos
controlados por meio de plataformas digitais. Ela se organiza globalmente, ao
mesmo tempo que aterrissa e se apropria de realidades distintas – mas que
parecem estar cada vez mais próximas.
Cá
do hemisfério sul, podemos interrogar: a figura do
jovem negro bike boy brasileiro está ou não muito distante da figura da
ciclista entregadora por aplicativo na França? O que os une e o que os diferencia? Quem são os
trabalhadores que hoje integram a chamada gig economy nos países do
Norte? E quanto aos indianos, nigerianos,
americanos e brasileiros que passam dias e noites conectados em busca de uma
nova tarefa online em uma mesma plataforma digital? Como as empresas
que subordinam os trabalhadores por meio de plataformas digitais se inserem na
realidade de países como o Brasil, com forte e persistente presença do trabalho
informal, desigualdades abissais, predominância do trabalho precário e de baixa
remuneração? O que trazem de novo, o que persiste e o que se transforma?
Os filmes retratam
os nós da trama global das desigualdades e da exploração. Oferecem então um
panorama global do trabalho e dos desafios do presente: novas ocupações que mal
sabemos nomear se estabelecem com as novas tecnologias; o trabalho operário se
transforma ao mesmo tempo que conserva elementos que o estruturam
historicamente; trabalhadores vivem sob a ameaça permanente do desemprego
frente à mobilidade do capital; o trabalho análogo à escravidão assume novas
faces e se atualiza, entre outros vários elementos. O emprego doméstico hoje é
parte importante da organização global do trabalho. Empregadas domésticas no
Líbano vivem em condições análogas à escravidão: é o que denuncia o filme de
2020, Quarto de Empregada, coprodução austríaca-alemã, com direção de Roser
Corella. Suicídios, violências físicas e
psicológicas e cerceamento da liberdade aparecem como elementos banalizados de
um sistema que aprisiona aquelas que migram por meio de agências de emprego em
busca de uma vida melhor. Famílias retêm e escondem o passaporte de suas
empregadas, executam seu confinamento em suas próprias casas, tornando seus
lares mais um elo da organização global do tráfico de pessoas. O ingresso de
mulheres libanesas de classe média no mercado de trabalho pode então estar
apoiado na exploração violenta de mulheres de Bangladesh, Etiópia, Quênia.
No espaço doméstico, diluem-se as fronteiras e regulações sobre o tempo de
trabalho, os custos da sobrevivência e a remuneração, os afetos e as perversidades.
Os quartos de empregada, projetados e construídos como cubículos sem janela nos
modernos apartamentos envidraçados, materializam a brutalidade
institucionalizada que configura o emprego doméstico neste país e em tantos
outros lugares do mundo.
Um tema
recorrente nos filmes deste ano é a opressão da esteira de fábrica sobre
trabalhadores, que saem mudos ao final do dia, tamanha a brutalidade das formas
de dominação e controle sobre seus corpos, seu conhecimento, seu pensamento.
Mas, em A Fábrica dos Trabalhadores, o espaço
da fábrica é também o do exercício do diálogo e da difícil construção cotidiana
de outros caminhos. O filme croata de 2021, dirigido por Srđan Kovačević, acompanhou por cinco anos o dia a dia de uma fábrica
ocupada e autogerida pelos trabalhadores. O passado socialista, a globalização,
o neoliberalismo e a difícil manutenção da produção no futuro vão fazendo o
presente cheio de contradições e desafios que pesam nos ombros daqueles que
tentam criar outras relações, baseadas na propriedade coletiva e na igualdade
dos trabalhadores. Coloca-se permanentemente a contradição de uma fábrica que,
ao se constituir como espaço de formação e qualificação, acaba se tornando uma
espécie de fornecedora não paga de trabalhadores para outras empresas. A
gestão, a competitividade e o desenvolvimento tecnológico parecem impasses para
o exercício cotidiano não apenas de garantir a remuneração e as condições
dignas de trabalho, mas de fazer do trabalho um meio de emancipação política. Como manter
esse projeto viável? Tudo parece por um fio, entretanto a fábrica segue viva.
Os filmes
deste ano nos trazem um panorama de modos de vida contemporâneos, de
trabalhadores e trabalhadoras para os quais muito pouco ou quase nada está
garantido, elemento que constitui o que hoje podemos chamar de classe
trabalhadora, com suas diferentes articulações, que irão envolver desigualdades
de raça, etnia, gênero e geração. As trajetórias retratadas compõem o mosaico
de um mundo do trabalho globalizado, desenhado pela alta mobilidade do capital,
pelas formas contemporâneas de eliminação de direitos, proteções e garantias,
pelo endividamento, pelas novas formas de subordinação e controle, por novos e
velhos tipos de trabalho que se fazem na relação com a modernização e o
desenvolvimento. Entretanto, com os trabalhadores de The Gig Is Up: O Mundo é uma
Plataforma, vemos que, com as formas de dominação, também se fazem as
formas de resistência. Já a última parte de
Retorno a Reims (Fragmentos),
intitulada “epílogo”, nos lembra que tudo ainda está em aberto nesse mundo que,
em realidade, está em convulsão.
Ludmila Costhek Abílio
Ludmila
Costhek Abílio é socióloga pela USP, Doutora em Ciência Sociais pela Unicamp e
Pós-doutora em Economia (USP e UNICAMP). Atualmente, é pesquisadora do Centro
de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho (Unicamp). É autora de diversos
artigos sobre a uberização do trabalho e publicou, pela editora Boitempo, o
livro Sem maquiagem: uma empresa e um milhão de revendedoras de cosméticos.