Jacques Perrin usou o cinema para defender o respeito aos animais, buscando um convívio harmônico para a preservação das espécies
Ator, diretor e produtor, o francês Jacques Perrin (1941-2022) era um homem que não confiava nas aparências – a começar pela sua própria, e não que houvesse nada de errado com ela. Ator precoce, bem-sucedido no cinema a partir dos 20 anos, em filmes emblemáticos como A Moça com a Valise (1961) e Dois Destinos (1962), com o diretor italiano Valerio Zurlini, e Duas Garotas Românticas (1967) e Pele de Asno (1970), com o francês Jacques Demy, muito cedo na carreira ele decidiu não se acomodar em uma fama que, apostando em seu rosto angelical, poderia eternizá-lo apenas como belo herói romântico. Além de procurar papéis mais desafiadores e sombrios, como o que viveria em Um Homem pela Metade (1966), do italiano Vittorio De Seta, que lhe deu o prêmio de melhor ator no Festival de Veneza, Perrin interessou-se em dominar as engrenagens que moviam os bastidores do próprio cinema, produzindo, ao lado do fotógrafo daquele filme, Luciano Tovoli, vários curtas documentais.
Fixou-se desde então essa vontade de, como ele mesmo dizia, “ser mais do que um espelho”; ainda que continuasse sempre atuando, ao mesmo tempo tomava a frente nas tarefas que permitiam que os próprios projetos que o interessavam saíssem do papel. Foi assim no mítico Z (1969), de Constantin Costa-Gavras, que Perrin ajudou a viabilizar como produtor, convencendo as autoridades argelinas não só a cederem locações naquele país como a financiarem o drama político – que venceria dois Oscars, corajosamente denunciando crimes da ditadura dos coronéis gregos, então ainda no poder no país natal de Costa-Gavras.
Se abraçar a produção como segunda vocação mostrou-se essencial em sua vida, não foi menos visceral sua constatação de que havia um gravíssimo problema no planeta: a proteção da natureza. Fazer filmes sobre isso se tornou uma causa na vida do diretor e produtor, transformando o retrato dos animais e seus habitats em uma forma de espetáculo único, complexo e arrebatador, para o qual se tornava importante encontrar meios sofisticados o suficiente para lhes fazer justiça. Embora tenha assinado documentários, tanto como produtor, roteirista ou diretor, caso de Microcosmos (1996), Migração Alada (2001), Oceanos (2009) e As Estações (2015), ele temia ver o termo associado ao errôneo clichê que vincula o gênero a produções pedagógicas, de baixo orçamento e limitadas à televisão. Nada mais distante dos filmes que realizou neste campo, todos identificados por um rigor técnico e científico singular, que garantiu a Perrin um merecido reconhecimento internacional, além de diversas premiações.
Todo esse indispensável apuro, evidentemente, demandava tempo, e obtê-lo era a tarefa primeira do produtor Perrin. Produzido por ele e dirigido por Claude Nuridsany e Marie Pérennou, Microcosmos foi precedido de uma preparação prévia de três anos, necessários para que se projetassem as câmeras especiais, dotadas de lentes de aumento que permitiram a apreensão no nível dos close ups vistos nesse filme, que retrata a vida dos insetos em detalhes sem precedentes. Revelava-se, assim, um mundo secreto, invisível a olho nu, cheio de beleza e drama.
Maiores façanhas ainda foram alcançadas em Migração Alada, que Perrin produziu, além de codirigir com Jacques Cluzaud e Michel Debats. Orientado por pesquisas minuciosas e a assessoria de ornitólogos de 50 países, cerca de quatro anos antes do filme Perrin criou cinco locais de reprodução e criação de pássaros, importando ovos de reservas naturais de todo o mundo para gerar as aves que, acompanhadas desde o nascimento por monitores especialmente contratados, acostumaram-se desde cedo com a presença humana e tornaram-se o elenco natural de um documentário que focalizou de forma inédita os meandros das migrações de diversas espécies. Para acompanhar essas exigentes viagens aéreas por milhares de quilômetros pelos seis continentes, foram empregadas catorze câmeras especiais, mais uma vez feitas sob encomenda. Além disso, formou-se uma equipe de 450 pessoas, sendo 17 pilotos para os vários tipos de veículos aéreos, helicópteros, parapentes, planadores, ultraleves e até balões, imprescindíveis para acompanhar a travessia.
Acostumados às filmagens, em que foram garantidas as perfeitas condições de seu comportamento natural, os pássaros foram depois entregues aos parques e reservas de onde provinham os ovos. Como destacou Perrin em uma entrevista ao site French.China.Org.CN, em setembro de 2017: “Nós criamos a situação, levamos os animais e eles são livres e se divertem. Não têm medo de nós e continuam a viver de modo completamente natural e é isso que queremos. Eles têm muito mais facilidade do que nós para serem livres. Somos completamente condicionados.”
Ele nunca deixou de acreditar que a convivência entre humanos e animais deveria ser mais harmônica e, para isso, colaborava a empatia inata à personalidade do ator, capaz de lhe permitir ver o mundo pelos os olhos dos outros. Em entrevistas como a que deu à BBC, em 2003, falando justamente de Migração Alada, Perrin destacou que sua vontade de seguir os pássaros era também uma forma de “lembrar que não estamos sós neste planeta. Estamos no território dos outros, que também têm o direito de viver”. Sua preocupação em não tornar seus filmes pedagógicos, evitando o mais possível as narrações em off (que em geral eram feitas por ele mesmo na versão francesa), vinha do desejo de torná-los uma experiência sensorial e emocional para o público. Para isso, ele contava com parceiros como o engenheiro de som Philippe Barbeau e o compositor Bruno Coulais, autor de trilhas musicais originais que sedimentam a atmosfera de um sonho, sensação que Perrin pretendia causar em seus espectadores.
Ao lado da procura por revelar, através das melhores imagens e sons, a beleza intrínseca da natureza, a sensação da urgência para sua proteção foi crescendo ao longo do tempo, na mesma medida em que aumentaram as ameaças ambientais no planeta, uma mudança de ênfase que se traduziu de forma peculiar em filmes como Oceanos e As Estações. Para isso, Oceanos, que foi visto por quase 3 milhões de espectadores na França e 12 milhões em todo o mundo, resgatou o aspecto histórico, da perspectiva dos séculos de vida no planeta, para abordar temas como os perigos da poluição e da pesca predatória, que vem contribuindo para a quebra do equilíbrio milenar dos ecossistemas dos mares, bem como para a extinção de inúmeras espécies. Ao mesmo tempo, garantiu-se o encanto de nosso olhar com as impecáveis sequências mostrando baleias, golfinhos, tubarões, tartarugas, focas, caranguejos, pinguins, morsas e tantas outras espécies em seu cotidiano intenso, em que a luta pela sobrevivência inclui uma violência que os filmes de Perrin reencenavam de forma honesta, embora contida e absolutamente segura, para impedir qualquer dano aos animais.
A mesma perspectiva milenar, negando o imediatismo das análises e soluções, foi adotada em As Estações, um ensaio visual ambicioso que embarca em uma reflexão sobre a ocupação humana das terras do planeta, tomando como exemplo as florestas europeias. Partindo de uma era do gelo que, milhares de anos e migrações depois, é seguida pela era de ouro das florestas profundas, o filme retrata essa variedade de espécies que se multiplicam e convivem em um grande território, até que o homo sapiens predomina – e, com ele, a floresta encolhe, é redesenhada para a agricultura e o manejo dos animais domesticados, em um ambiente progressivamente apropriado por humanos que dizimam a natureza, produzem máquinas e fazem a guerra.
Mesmo sendo realista sobre a seriedade e a urgência desta grande batalha pela salvação da Terra, Perrin nunca se mostrou pessimista, defendendo sempre a necessidade de homens e mulheres terem um olhar mais generoso em relação aos animais, seus companheiros na partilha da Terra, com quem mantivemos até agora uma história longa e atribulada, mas em que uma nova aliança é ainda possível. Impávido portador de esperança em seus filmes, Perrin sempre sustentou que não é tarde demais. E é essa a principal mensagem que deixa em suas obras.
Neusa Barbosa
Jornalista e escritora paulistana. Trabalhou nos jornais Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo e na revista Veja S. Paulo. Criadora e editora do site Cineweb, um dos pioneiros da internet, em 2000. Membro e fundadora da Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine) e do coletivo Elviras de Mulheres Críticas de Cinema. Integrante do comitê de seleção do Festival Internacional de Documentários É Tudo Verdade desde 2006.