Lanternas acesas na mata, quatro
pessoas se aproximam sorrateiras de um ninho. Protegidas pela escuridão da
noite do Pacífico Sul, avançam de surpresa e apanham um filhote indefeso de uma
ave marinha, pelo pescoço. A imagem é dolorosa de se ver: uma moça enfia fundo
um canudo goela adentro do filhote, e começa a bombear. A avezinha fecha os
olhos, sem poder reagir. Dá para ver seu pescoço e seu abdômen se avolumando,
enquanto enchem de água. Até que não aguenta mais e vomita numa bacia. A câmera
focaliza a bacia: boiando na água regurgitada, surge um pedaço de tampa de
caneta esferográfica, um disco achatado que um dia já fechou uma garrafa de
água mineral, uma bucha de parede para fixar parafusos, e mais dezenas de
pedaços multicoloridos de plástico, alguns deles cheios de pontas afiadas.
A moça é Jennifer Lavers, cientista
especialista em aves marinhas, uma das personagens que conduzem o documentário Triste
Oceano, da diretora australiana Karina Holden, sobre o colapso da vida
no oceano. Jennifer passa dias sem fim viajando de uma a outra ilha do
Pacífico, cuidadosamente provocando o vômito de filhotes de aves migratórias,
num esforço para tentar salvar suas vidas. O que achei mais chocante nesta cena
– entre tantas cenas chocantes que vi nos cinco filmes deste eixo temático da
7ª Mostra Ecofalante – foi a familiaridade dos objetos na bacia. Não era minha
esta garrafa d’água? Ah, está aí a tampa que sumiu da minha Bic.
Todos os dias, você, eu e os outros
7 bilhões de nós cobrimos o mundo de objetos eternos de plástico. Aí o planeta
é enxaguado pelas chuvas e este plástico todo escoa terra abaixo até o mar.
Cabe a Jennifer olhar nos olhos de quem sofre as consequências dessa cadeia de eventos.
Algumas das aves que ela encontra expelem mais de três centenas de pedacinhos
de plástico. Nunca acontece de ela encontrar uma ave que não tenha plástico
nenhum dentro de si. Nunca.
Todos esses cinco filmes nos forçam
a encarar consequências – em especial, as consequências sentidas pelos animais
que deram o azar de precisar dividir a Terra com o Homo sapiens. Assistir a eles envolve a difícil tarefa de olhar nos
olhos de outros seres dotados de inteligência e consciência e contemplar neles
o sofrimento que nossa espécie causa.
Metade da população animal da Terra
foi exterminada nas últimas décadas, a bala, fogo, fome ou calor. De cada duas
espécies animais, uma perdeu 80% de sua população ou mais no último século,
porque cruzou nosso caminho. Quem mais está sofrendo é quem é mais difícil de
encarar: os animais grandiosos, de olhar sábio e porte imponente. As baleias,
os grandes primatas, os leões, os elefantes, os rinocerontes, as girafas, as
tartarugas – bichos de posição elevada nos ecossistemas, que simplesmente não
conseguem sobreviver em meio à destruição massiva de seus hábitats.
Triste Oceano desnuda as consequências da
exploração industrial dos mares e da quantidade astronômica de resíduos que
deixamos escoar todos os dias de nossas cidades, e nos força a encarar o que
talvez preferíssemos que ficasse escondido debaixo da superfície. Usando como
guias ativistas e pesquisadores que amam o oceano, como Jennifer, o filme não
nos poupa de cenas sangrentas (e lindas) do massacre dos tubarões para lhes
serrarem as barbatanas, do extermínio em massa dos atuns, da mortandade de
tartarugas enroscadas em redes abandonadas, da tragédia que está dizimando os
corais.
Essa mesma história de devastação,
só que em terra firme, é contada de um jeito bem diferente na fábula As
Estações, uma produção épica dirigida pelos franceses Jacques Perrin e
Jacques Cluzaud, a mesma dupla que fez os impressionantes Migração Alada e Oceanos.
A proposta do filme é curiosa: usando imagens reais de animais na natureza
europeia, As Estações tenta, quase sem narração, contar a história dos
últimos 80 mil anos no continente. No início do filme, só se veem ursos, lobos,
cavalos, raposas. Com o tempo, um outro animal começa a aparecer na beira das
imagens: o homem. Logo as consequências surgem. No final do filme, os humanos
estão no centro das cenas, erguendo cidades, fumegando plantações e
distribuindo chumbo, enquanto os outros animais fogem. Ou morrem.
Já Alforria Animal é um
filme simples que nos obriga a encarar certas consequências de nossa produção
científica e da nossa indústria de entretenimento: o encarceramento descuidado
de vários chimpanzés, seres mais do que 99% humanos. São animais que
participaram de pesquisas científicas, até mesmo do programa espacial
americano, ou estrelaram filmes e shows, e que hoje estão presos por humanos em
condições inadequadas. O filme, dirigido pelos americanos D. A. Pennebaker e
Chris Hegedus, acompanha a batalha jurídica do advogado Steven Wise para
conseguir que a Justiça americana considere os chimpanzés pessoas, portanto
providas de direitos, inclusive o de serem livres. Não é fácil fitar os olhos
deprimidos dos primatas, ainda mais depois de ver suas evidentes demonstrações
de inteligência e empatia.
Mas as cenas mais difíceis de
assistir este ano estavam em dois filmes que abordam um tema difícil: a caça
esportiva. São duas produções bem diferentes: Safari, do austríaco
Ulrich Seidl, é uma primorosa produção dinamarquesa, cuidada no mínimo detalhe,
enquanto Troféu, de Christina Clusiau e Shaul Schwarz, é um telefilme da
CNN, com tratamento estético e amarração narrativa só um pouquinho melhores do
que os de um telejornal. Apesar das diferenças, os dois filmes são bem
complementares e pintam juntos um quadro bem complexo sobre a caça de animais
selvagens na África.
Uma das coisas mais desconfortáveis
que Troféu
faz ver é que, por mais horrendo que o hábito da caça possa parecer a alguém,
muitas vezes ele pode ser a única esperança de salvar espécies ameaçadas.
Caçadores que pagam caro para abater um animal às vezes são o único incentivo para evitar a exploração industrial
da floresta, análoga à exploração do mar retratada em Triste Oceano, que
resultaria na morte de todos os animais. Afinal, neste mundo de hoje, nada que
não tem valor financeiro tem chance de sobreviver diante da industrialização de
tudo.
Por mais bizarros que sejam os
personagens de Safari – europeus do norte com roupas camufladas e grandes
rifles, que chamam animais de “peças” e gastam fortunas pelo prazer de matar na
África –, ao menos seu olhar é obrigado a encarar a consequência do que fazem.
A câmera do filme corre atrás dos caçadores ofegantes e os flagram tremendo,
chorando, silenciando, quando fitam o animal em agonia – ao contrário das
pessoas que matam porque jogam plástico no chão, ou soltam redes no mar, ou
compram produtos que implicam na destruição da floresta, que nunca veem os
animais tombarem como consequência de seus atos.
Mas é claro que os caçadores só veem
até certo ponto. Depois do tiro fatal, eles ajeitam a carcaça e posam para uma
fotografia que um dia vai adornar uma parede, talvez ao lado da cabeça
empalhada do bicho abatido. E vão embora felizes com o tiro certeiro. Sobra a
carcaça lá, para ser arrastada pelo guia africano, depois esquartejada a golpes
violentos e esfolada com a ponta de facas velhas. E o filme continua seguindo a
cena, enquanto tudo isso acontece, exibindo cada detalhe sanguinolento até a
última consequência do ato de puxar o gatilho. Sem nos poupar de absolutamente
nada. Como deveria ser sempre, talvez.
Nenhum destes cinco filmes é puro
desfrute – nem mesmo As Estações, que, embora feito para
maravilhar, é bem explícito ao mostrar que a história da humanidade é uma
história de devastação. Os cinco vão exigir de quem entrar na sala a coragem de
olhar de frente para o que somos. E para o que causamos.
DENIS RUSSO BURGIERMAN é jornalista
e escreveu livros como Piratas no Fim do
Mundo (2003), sobre caça às baleias na Antártica, e O Fim da Guerra (2011), sobre a guerra às drogas. É colunista do Nexo
Jornal e foi diretor de redação de publicações como a
"Superinteressante" e a “Vida Simples”. Comandou a curadoria do
TEDxAmazônia, em 2010.