Pensar nas linhas de
força no cinema de Werner Herzog não é tarefa fácil. Com carreira de meio
século, mais de meia centena de longas-metragens e variações de registros que o
acompanham desde o início, qualquer historiador sente-se intimidado e ao mesmo tempo
desafiado. Pode-se apontar o caráter obsessivo de grande parte de seus
personagens (de Aguirre a Fitzcarraldo, mas também personagens de filmes como Strozsek,
No Coração da Montanha, Invencível, O Diamante
Branco, O Homem-Urso, Vício
Frenético), uma obsessão que não raramente leva à loucura (os delírios de
Aguirre, sozinho com os macacos e a morte na jangada são inesquecíveis) e é
herdada claramente das obsessões do homem que está por trás da câmera. Ou o
fato de que alguns deles, talvez os mais notórios, apresentem um grau elevado
de autismo (Sinais de Vida, Coração
de Cristal, Stroszek, Woyzeck, Nosferatu, My Son My Son What Have Ye Done), ou sejam
vítimas de um cruel e desumano isolacionismo causado por deficiência física ou
mental (Últimas Palavras, Terra do Silêncio e da Escuridão, O
Enigma de Kaspar Hauser). Pode-se, também, como nove entre dez críticos que
se debruçam sobre sua obra, falar da potente relação do humano com a natureza,
e da maneira como essa relação por vezes envolve um confronto extremo e
audacioso (novamente Aguirre, a Cólera dos
Deuses, Fitzcarraldo e O Homem Urso, mas também Fata Morgana, La Soufrière, Onde Sonham as Formigas Verdes,
Lições da Escuridão, Juliane Cai na Selva, Diamante Branco, Encontros no Fim do Mundo e A Caverna dos Sonhos Esquecidos). E pode-se, de modo mais
sucinto, resumir toda sua obra cinematográfica de ficção (e boa parte dos
documentários)[1] a
uma única e taxativa palavra: loucura. De que outro modo, que não louco (no bom
sentido, porque no sentido artístico), classificar o diretor que faz Também
os Anões Começaram Pequenos (1970), um dos filmes mais insanos de que se
tem notícia? De que modo entender sua atração por atores que compartilham com
ele o mesmo tipo de loucura, de ir até o fim em seus papéis e de agir como
verdadeiros maníacos na frente da câmera: após Klaus Kinski, podemos lembrar de
Peter Blogle (o personagem que enlouquece em Sinais de Vida chama-se
Stroszek), Bruno Ganz, Nicolas Cage e Michael Shannon, além da atração pelo
trabalho de Bruno S, ator que serve perfeitamente a Herzog em dois filmes
marcantes (O Enigma de Kaspar Hauser e Stroszek).
Todos esses filmes
citados são apenas, a meu ver, os principais a lidar com cada uma dessas
características. Mas sua carreira é grande o suficiente para termos a certeza
de que há filmes importantes que não foram mencionados, por vezes até filmes
que conjuguem todas as características ao mesmo tempo. Como este texto, como
nenhum outro, não pode ter a ambição de ser conclusivo, sei que vale correr o
risco (incluindo aí o risco de aborrecer o leitor com as menções) para oferecer
algumas pistas das linhas de força que percorrem sua obra cinematográfica.
Há ainda uma outra
característica, presente em alguns dos mais importantes de seus filmes de
ficção: a crueldade. Truffaut agrupou textos de André Bazin em um livro chamado
O Cinema da Crueldade, pensando em uma característica comum aos
cineastas estudados naqueles textos. Mas Bazin não imaginava que depois de sua
morte um artista se encaixaria perfeitamente nessa definição. Pensemos na
crueldade com que são representados os anões de Também os Anões Começaram
Pequenos, e também na crueldade envolvida no processo de filmagem, em que
um anão está amarrado enquanto os vidros de uma janela se despedaçam acima
dele, num típico exemplar do "tudo pela arte" daqueles tempos
malucos. Ou a relação extrema que desenvolveu durante anos com outro doido de
pedra genial, Klaus Kinski. Ou mesmo na crueldade presente na dramaturgia, em
que alguns personagens agridem e abusam, como vilões de dramas até certo ponto
maniqueístas, de personagens mais fracos.
Então ficamos assim:
loucura e crueldade são duas boas palavras para definir a filmografia de
Herzog, ou parte dela. Mais que Federico Fellini ou Marco Ferreri, Herzog soube
incorporar sua própria loucura no fazer cinematográfico, a ponto de tornar
alguns de seus filmes quase ensaios sobre a loucura. Tanto quanto Luis Buñuel ou
seu companheiro geracional Fassbinder, Herzog soube dar voz à crueldade do
mundo e da sociedade de modo a enredar seus personagens em teias que cerceiam
ou mesmo aprisionam, privando-os de fazer outra coisa senão a mais entranhada e
não resolvida obsessão. É muitas vezes uma forma de fuga. Essas características
são levadas a cabo por uma inteligência rara, não desprovida de rigor e
convicções. Para Herzog, como para qualquer outro cineasta de fato
rosselliniano, filmar é um modo de entender o mundo e as pessoas. E por mais
que a filiação a Rossellini seja óbvia em alguns momentos, forçada em outros e
difícil de precisar na maioria deles, há nos dois cineastas a consciência de
que a natureza é uma força motivadora de conflitos que não devem ser ignorados.
Os caminhos do cineasta
O primeiro curta de
Werner Herzog, Hercules, é de
1962, mesmo ano do célebre Manifesto de
Oberhausen, capitaneado por Kluge e apoiado por diversos curta-metragistas
jovens e desejosos de mudanças no cinema alemão, tido por eles como cadavérico,
ultrapassado. O mote ficou conhecido e serviria de slogan para futuros
projetos: "O cinema do papai está morto, viva o novo cinema alemão" –
segundo a tradução que ainda ecoa em minha mente, vista no saboroso e
instrutivo documentário Entre o Sonho e a Realidade, exibido na TV
aberta brasileira nos anos 1990. O manifesto ainda demoraria para gerar frutos.
Estes só surgiriam em meados da década de 1960, notadamente com três primeiros
longas de diretores da geração Oberhausen: Os Não-Reconciliados (1965),
de Jean-Marie Straub e Danièlle Huillet, Despedida de Ontem (1966), de
Alexander Kluge, e O Jovem Torless (1966), de Volker Schlondorff. Ainda
em 1966, Rainer Werner Fassbinder realiza seus dois primeiros curtas, e no ano
seguinte seria a vez de Wim Wenders realizar o seu, firmando de vez essa
geração e o Novo Cinema Alemão, cujos nomes de ponta acabaram sendo Fassbinder,
Herzog e Wim Wenders.
Após um hiato de cinco
anos em que filmou o não lançado e não visto Spiel im Sand (1964), a
carga da provocação ressurge fortalecida com os curtas A Defesa sem
Precedentes da Fortaleza Deutschkreuz (1967), em que o narrador é
completamente maluco, com sua risada maquiavélica, uma espécie de preparação
para o primeiro longa, Sinais de Vida (1968), e Medidas Contra Fanáticos (1969), que contrapõe um velho
obcecado pelo cuidado com os cavalos, como se só ele soubesse cuidar dos
animais, aos profissionais responsáveis pela tarefa.
O terreno estava
devidamente preparado para os dois longas que chamaram definitivamente a
atenção da crítica: Também os Anões Começaram Pequenos (1970) e Fata Morgana (1971), ambos
reveladores de duas das facetas mais brilhantes de Herzog: a loucura com que
cerca personagens e filmagens e a maneira inventiva de "filmar o
real" (expressão imprecisa, normalmente usada como atalho, mas que de
alguma forma se aplica ao diretor). Em seguida, após mais dois documentários,
um deles para a TV, realiza seu filme mais celebrado, Aguirre, a Cólera dos Deuses (1972), tornando-se um
dos maiores diretores europeus da época. Alguns longas de ficção confirmariam
essa reputação: O Enigma de Kaspar Hauser (1974), Coração de Cristal (1976), Stroszek (1977), Woyzeck
(1979), Nosferatu (1979) e Fitzcarraldo (1982) formam, com Aguirre, o grupo de filmes mais
difundido e discutido de sua filmografia. E cada qual com sua magia por trás. Aguirre, a Cólera dos Deuses traz pela primeira
vez a relação insana entre o ator e o diretor; O Enigma de Kaspar Hauser
traz Bruno S como revelação; Coração
de Cristal é acompanhado da história de que quase todos os atores no
filme haviam sido hipnotizados (parece um caso de "imprima-se a
lenda", mas Herzog sustenta a história ainda hoje[2]); Stroszek tornou-se
famoso após supostamente ter motivado o suicídio de Ian Curtis, da banda de
pós-punk Joy Division (uma conexão tortuosa com a música); Woyzeck tem a
marcante abertura burlesca e a inesquecível cena de assassinato em câmera
lenta; Nosferatu relia com
muita personalidade a novela de Bram Stoker e ao mesmo tempo o Nosferatu
de Murnau, marco da UFA nos anos 20; por fim, Fitzcarraldo marcou época por representar ao mesmo tempo um
sinal de declínio do cinema alemão (a despeito de suas inegáveis qualidades) e
a obsessão de Herzog sendo expandida mais uma vez para seu protagonista. Em
1977, Herzog ainda viajou à ilha caribenha de Guadalupe para captar a véspera
de uma tragédia no belíssimo e esquecido La
Soufrière, média em que se assume fazendo uma reportagem, mas entrega
puro cinema (enquanto muitos documentaristas atuais fazem reportagem pensando
fazer cinema). Esse média é mais um ótimo exemplo de que não se deve desprezar
a produção documental que Herzog fez entre suas brilhantes ficções do período
1968-1982.
Após Fitzcarraldo, Herzog entrou no
bojo da decadência do cinema alemão junto com Wim Wenders, em grande parte
porque ambos se internacionalizaram[3], mas
também pelo falecimento de um de seus maiores talentos, Fassbinder. Os filmes
mais famosos desse período – Onde
Sonham as Formigas Verdes (1984) e Cobra
Verde (1987) – são longas de ficção (contaminados, como sempre, pelo
documentário e filmados numa época em que Herzog realizou também alguns
documentários para a TV), que dão sequência e corpo a um pendor para o mais
fácil exotismo, e são apenas sombras do que Herzog fez de melhor. Se Onde Sonham as Formigas Verdes
ainda respira um certo frescor graças ao interesse de Herzog pelos aborígenes, Cobra Verde, filmado
principalmente em Gana, sucumbe a um deslumbre com a diversidade cultural que
Herzog sempre conseguiu evitar. Não é um mau filme, pois Herzog controla a
forma como poucos, mas é provavelmente seu longa mais discutível até então.
Melhor, para continuarmos no continente africano, agora no Saara, é Wodaabe (1989), "menos um
documentário sobre uma tribo africana específica do que uma história sobre
beleza e desejo", diz o próprio Herzog. A influência confessa de Jean
Rouch nunca foi tão clara, mas Herzog, com razão, assume seu lado esteta para
clamar sua diferença com os cineastas etnográficos.
Os anos 1990 trazem um
Herzog mais afoito para recuperar a força dos anos 70. E também um foco ainda
maior no documentário. Nessa década, realizou só um longa de ficção: No
Coração da Montanha (1991), sobre dois alpinistas competitivos e
obsessivos. Nos anos 80 foram três ficções, já uma considerável redução em
relação aos anos 70, quando realizou sete longas de ficção (contando Também
os Anões Começaram Pequenos, de 1970). A volta à forma vem definitivamente
com Lições da Escuridão (1992),
documentário de 54 minutos sobre os poços de petróleo do Kuwait em chamas
durante a Guerra do Golfo, num dos maiores atentados à natureza movidos pela
ganância capitalista. Vinte e um anos após Fata
Morgana, quinze após La
Soufrière, Lições da Escuridão
surge com a mesma força nas imagens, a mesma coragem para se colocar no olho do
furacão e o mesmo pendor para a abstração a partir de fenômenos naturais, e
recoloca Herzog no panteão do grande cinema autoral contemporâneo.
A partir daí, a
despeito de ótimas obras de ficção como O Sobrevivente (2006) e Vício
Frenético (2009), são documentários como Meu Melhor Inimigo (1999), sobre sua relação conflituosa com
Klaus Kinski, O Diamante Branco (2004), que traz um
homem obcecado por desvendar o segredo de uma gruta escondida atrás de uma
cachoeira por meio de um balão, O
Homem-Urso (2005), sobre um cientista que é engolido por um urso, Encontros no Fim do Mundo (2007),
que acompanha uma expedição à Antártida, e A
Caverna dos Sonhos Esquecidos (2010), sobre uma caverna encontrada por
uma expedição francesa, num dos raros grandes usos do 3D, que chamam a atenção
da crítica e do público.
O estilo Herzog
"Detesto
perfeccionistas atrás da câmera, essas pessoas que passam horas para preparar
um único plano. Preciso de pessoas que realmente vejam as coisas, que as sintam
como elas são, e não quem fica preocupado em conseguir as imagens mais belas
possíveis".
De certo modo, a
declaração acima, que poderia ter saído da boca de um Rossellini ou um Buñuel,
explica o modo de Herzog dirigir. Ficção como se fosse documentário. O que não
elimina a possibilidade contrária: documentário como se fosse ficção, dada a
loucura e o pendor para o delírio presentes em sua carreira. E, no entanto,
como são belas suas imagens. Belas, também, plasticamente falando. O estilo de
Herzog não é simples. Trata-se de um diretor complexo e versátil, que transita
por vários estilos para formar um único, estilhaçado e condizente com o seu
modo de ver o mundo. Acima de tudo, cada filme pede um estilo, seja com atores
hipnotizados como em Coração de
Cristal, seja com o rigor formal da câmera de Jorg Schmidt-Reitwein ou
com a câmera mais solta de Thomas Mauch. Passemos brevemente por alguns traços
desse estilo.
Da natureza à
abstração. A areia em Fata Morgana
é mostrada de uma câmera móvel, e após um tempo vira uma abstração, como se
Herzog pintasse uma tela, uma pintura não figurativa, mas que combina cores e
formas com tal maestria que podemos esquecer que se trata da realidade filtrada
por uma câmera atenta, que seleciona do mundo um espaço. É o mesmo que vemos em
Lições da Escuridão, com os
poços de petróleo em chamas na primeira Guerra do Golfo, um desastre natural
causado pela ganância do homem, transformando-se em belíssimas pinturas
expressionistas. Ou no começo de cada longa da trinca poderosa que se abre com Aguirre, a Cólera dos Deuses, prossegue com O
Enigma de Kaspar Hauser e termina com Coração
de Cristal, numa combinação de paisagens naturais que remetem ao
romantismo do pintor alemão do século XIX Caspar David Friedrich, com a neblina
que contribui para a atmosfera de mistério e hipnotismo de seus filmes.
Afrontar diretamente o público. Em filmes como Sinais
de Vida, Também os Anões Começaram Pequenos, Fata Morgana ou My Son, My Son, What Have Ye Done!, entre muitos outros, as personagens
ou as pessoas, ou ainda animais como uma galinha, um gato ou um lagarto encaram
a plateia, rompendo a quarta parede para afrontar o público, tirá-lo de sua passividade.
Lembremos de Aguirre, a Cólera dos
Deuses, em que o personagem título tem o famoso monólogo em que se afirma como
a cólera dos deuses olhando diretamente o espectador, segundos depois de ter
ordenado o corte da cabeça de um oponente.
O burlesco. Em Fata Morgana, filme-súmula, dois
homens procuram instruções sobre a movimentação que devem fazer. A câmera os
flagra na indecisão, e os captura encabulados, risonhos, como comediantes do
burlesco. Em Coração de Cristal,
alguns enquadramentos fixos com os atores respeitando marcações bem definidas
remontam a um burlesco distorcido, assim como o momento em que o cão vampiro
pisoteia os dois homens desfalecidos para que se descubra qual ainda está vivo.
No início de Woyzeck, Klaus Kinski aparece correndo em câmera acelerada,
seguindo a ordem de um oficial que o obriga a algumas posições de sentido.
Rápida invasão do burlesco em um filme que terminará em tragédia.
O documentário. O cinema moderno
diminuiu, e por vezes até aboliu, as diferenças entre ficção e documentário.
Isso já estava evidente, conforme escreveu André Bazin, no Jean Renoir dos anos
30, essa década importantíssima para a evolução cinematográfica. Mas está
presente também em hollywoodianos como John Ford e King Vidor. Em Herzog, o
documentário está sempre presente, seja em filmes híbridos como Fata Morgana, cuja roupagem
documental não esconde a maneira ficcional da abordagem, seja em um poema
filmado como Coração de Cristal,
que mais parece um falso documentário sobre uma civilização perdida.
A relação com a música. Para além da parceria
com a banda de rock progressivo Popol Vuh, essencial para a atmosfera hipnótica
de alguns filmes, há um interesse genuíno de Herzog por performances musicais,
que podem ser vistas já no início da carreira, em Fata Morgana e no curta Últimas Palavras (1968). Em Aguirre, a Cólera dos Deuses, os flautistas têm a
função de fazer com que todos esqueçam temporariamente que estão em uma missão
suicida. Em O Enigma de Kaspar Hauser (1974), o interesse pela música
captura o protagonista para uma vida em sociedade que será sua ruína, mas
garante momentos de doçura ao cravo. As flautas tocadas pelos índios ameaçam o
sonhador de Fitzcarraldo. As
mulheres de uma aldeia entoam canções de impressionante força para a câmera em Cobra Verde. E muitos outros
exemplos poderiam ser apontados. Herzog já declarou que algumas de suas maiores
influências vêm da música, e seu estilo passa necessariamente pelo casamento
entre música e imagem, conforme nos mostram os dez minutos iniciais de Coração de Cristal, sua
obra-prima.
Breve conclusão
Werner Herzog é de uma
geração privilegiada, que entendia a arte como uma forma de criticar alguma
coisa (como dizia Fritz Lang). Rever seus filmes, hoje, é fundamental para uma
nova geração de cineastas acostumados a encaixar seus filmes ou projetos em
fórmulas para festivais ou aceitação crítica, quando o único caminho possível é
seguir uma inquietação particular e forte, que deve guiar o coração e a mente do
artista pelo único caminho possível que ele pode tomar. A possibilidade de
(re)ver filmes magníficos como Fata
Morgana, Aguirre, a Cólera dos
Deuses, Coração de Cristal, La Soufrière, Nosferatu ou Lições de Escuridão é também a
possibilidade de pensarmos no que se perdeu e no que pode ser recuperado de uma
era em que o cinema ainda fazia valer a denominação de sétima arte.
[1] Sempre bom
lembrar que o cinema moderno implodiu boa parte dos limites que separam ficção
e documentário, e que Herzog chegou a dizer que não acredita nessa divisão
("Fitzcarraldo é meu melhor documentário"). Herzog também é
espirituoso o suficiente para promover uma pequena e adorável confusão ao
chamar, por exemplo, Fata Morgana e Lições da Escuridão de filmes
de ficção científica.
[2] Consta que Herzog buscou desde o início fazer um filme hipnótico. O
cineasta Joel Yamaji conta que viu o filme três vezes no cinema à época, e que
dormiu no mesmo momento, nas três vezes, justamente o momento das quedas de
água com a música do Popol Vuh, ainda no começo do filme.
[3] Há a internacionalização de fato, de produção, pelo qual passou boa
parte do cinema alemão durante os anos 70, retomando a tradição da
cinematografia alemã de olhar para fora, desde os tempos da UFA, com um longo
hiato nacionalista entre as décadas de 30 e 60. Em Herzog, ela fica clara em Nosferatu,
produção franco-alemã falada em inglês. Mas há também a internacionalização
como tema, presente com força nos seus filmes dos anos 1970, e mesmo antes.
Herzog filma na Grécia (Sinais de Vida), no deserto africano (Fata
Morgana), na floresta amazônica (Aguirre, a Cólera
dos Deuses, Fitzcarraldo), no Alaska e na Irlanda (Coração de Cristal), nos EUA (Stroszek),
na antiga Checoslováquia (Nosferatu, Woyzeck), e mesmo quando
filma uma trama completamente alemã, o exterior aparece em sonho (Kaspar Hauser
sonha com os beduínos no deserto).
SÉRGIO ALPENDRE é crítico de cinema, professor, pesquisador e jornalista. Escreve na Folha de S. Paulo desde 2008 (Ilustrada, Mais, Guia Folha e Guia livros, discos, filmes). Doutorando em Comunicação/Cinema pela Universidade Anhembi-Morumbi e Mestre em Meios e Processos Audiovisuais pela ECA – USP. Coordenador do Núcleo de História e Crítica da Escola Inspiratorium. Edita a Revista Interlúdio (www.revistainterludio.com.br) e o blog de cinema sergioalpendre.com. Foi oficineiro do programa Pontos MIS (de 2012 a 2015). Fundou e editou a Revista Paisà, publicação impressa de cinema (de 2005 a 2008).