A tecnologia está mudando o mundo. O
ritmo das transformações ultrapassa radicalmente a nossa capacidade de
organizar a transição para essa sociedade do conhecimento em construção.
A mudança tecnológica é muito mais rápida do que a mudança cultural,
que dirá das instituições e das leis. O avanço tecnológico está na era
do faroeste, só que com armas muito mais poderosas do que o cavalo e a
pistola. Hoje é em ritmo avassalador que enchemos os rios e os oceanos
de plástico, os aquíferos de contaminantes químicos, o ar que respiramos
de partículas nocivas, a atmosfera de gases de efeito de estufa. As
nossas ferramentas são muito mais poderosas do que as nossas precárias
capacidades de organização política e social. O potencial vira ameaça.
É muito interessante, e os
documentários investigativos têm caminhado com sucesso nesta linha,
tomar um produto na forma como nos aparece na loja, em ambiente suave e
limpinho, com iluminação agradável, vendedores sorridentes, um notebook
lindo – e retraçar a sua história. Porque o que nos aparece na loja ou
na publicidade é apenas uma realidade enfeitada. A produção efetiva
envolve hoje centenas de produtos químicos diferentes, cujo descarte
leva, por exemplo, a que 60% da água dos aquíferos na China estejam
contaminados, realidade pouco diferente no Silicon Valley na Califórnia.
Arsênico, chumbo, mercúrio e solventes são apenas os mais conhecidos.
Na análise do O Custo do Vício Digital, os
impactos indiretos – externalidades, como as chamamos em economia –
aparecem em todos os grandes: Apple, IBM, Google, Intel, Dell etc. O
rendimento financeiro domina.
No ciclo completo do produto, que
envolve desde a matéria prima, até condições de trabalho, logística,
comercialização, marketing e descarte, descortina-se o mundo econômico
realmente existente, e que não aparece, evidentemente, nem na loja nem
na publicidade. E nem na mídia, pois são as corporações que pagam a
publicidade, que aliás sai do nosso bolso, incorporada ao preço do
produto. O tipo de jornalismo investigativo desses documentários nos
coloca frente a frente com a realidade: imagens de imensas linhas de
montagem em Shenzen, na empresa subcontratada da Apple, com ritmos
infernais e suicídios frequentes, nos trazem para o chão. Entre
corporações e população, quem está a serviço de quem?
Uma dinâmica que se torna clara aqui é
a do alongamento da cadeia produtiva da eletrônica, que faz com que uma
empresa que distribui o produto final possa tranquilamente fingir que
ignora que barbaridades em termos sociais, ambientais e econômicas são
praticadas em diversas etapas do ciclo e em diversos países. Vamos fazer
de conta que ignoramos o fato de que 90% do que descartamos não é
reciclado? Deslocar as etapas mais perniciosas para países menos
regulados sem dúvida ajuda países mais prósperos a parecerem limpos.
Hoje, como o filme mostra, as partículas que permeiam o ar que
respiramos navegam com os ventos que cobrem o planeta, gerando câncer,
doenças respiratórias e outros males em qualquer parte do mundo. Não se
trata aqui de ser contra as tecnologias, e sim de assegurar uma
contabilidade completa dos impactos, muito além do ar condicionado da
loja que expõe o produto final, ou da caixinha despachada pela Amazon.
Essa lógica da cadeia produtiva aparece com força no Uma História de Desperdício. A
alimentação está no centro das nossas vidas, e as novas tecnologias
permitem produzir muito alimento. Só em grãos, produzimos mais de um
quilo por dia por pessoa, isso sem falar de frutas, legumes, peixe etc. E
a grande imagem que emerge é que temos quase um bilhão de pessoas que
passam fome no mundo, enquanto jogamos fora 40% do alimento que
produzimos, cerca de 1,3 bilhão de toneladas desperdiçadas. O custo
ultrapassa o trilhão de dólares. O que impressiona é que sabemos o que
fazer, temos as tecnologias disponíveis, mas seguimos desperdiçando em
volumes escandalosos. Quem disse que realmente temos de consumir a carne
em 3 dias, o peixe em 2, e as verduras entre 4 e 5? Jogamos montanhas
fora, com os supermercados com medo que alguém os processe por ficar
doente com um alimento que passou da validade.
Na realidade, o que produzimos pode
sim alimentar as pessoas, e precisamos alimentá-las todas, é um
escândalo termos gente que passa fome. Mas podemos também recolher
sobras e alimentar animais, e usar os restos ou subprodutos para
produzir bio-energia, e obviamente realimentar o solo através de
compostagem. A Coréia do Sul já não aceita restos orgânicos no destino
final do lixo. Muitas regiões passam a consumir alimento produzido
localmente, reduzindo o desperdício. Em muitos países é ilegal o
supermercado jogar os restos no lixo, ele precisa assegurar um destino
inteligente. Na realidade, se a lógica empresarial é centrar-se apenas
no que dá mais lucro – como a indústria da pesca de camarão, que
descarta 5 quilos de peixes não lucrativos a cada quilo de camarão
pescado, o chamado by-catch – temos
de resgatar cadeias produtivas que façam sentido para a lógica humana e
do planeta. Temos o conhecimento, as tecnologias, os recursos. Falta
usá-los de maneira inteligente.
O chocolate, retratado em O Caso do Chocolate,
que tanto associamos com um momento agradável, com um recreio na nossa
vida sofrida, é igualmente instrutivo. O mundo da comunicação está
claramente organizado de maneira que tenhamos, como os burros
comportados que puxam a carroça, pouca capacidade de olhar para os
lados. O que temos de ver é a linda embalagem de um chocolate que
adivinhamos ser delicioso. Seguir as etapas de uma cadeia produtiva, tal
como em outros documentários desta Mostra Ecofalante, é prodigiosamente
instrutivo. Por desgraça, para chegar à loja e ao consumidor final,
alguém teve de produzir o cacau, transformá-lo, transportá-lo, assegurar
a composição final, bolar a embalagem mais atraente possível,
acrescentar cheiros, corantes e conservantes. Enfim, se queremos ver o
mundo como realmente existe, temos de ir além da embalagem e da
publicidade.
A regra geral que aparece é que
quanto mais distante do consumidor final, mais o processo produtivo se
torna selvagem, como no caso da produção do cacau na Costa do Marfim ou
no Ghana. Os autores do documentário pegam o rico veio da
desresponsabilização. Ninguém sabe da etapa anterior, e todos conseguem
razoavelmente ignorar o uso crescente do trabalho escravo na base da
cadeia produtiva. Isso é muito interessante, porque nos leva de novo aos
‘biombos’ mentais que nos permitem fazer de conta que desconhecemos o
que é desagradável. Não que a culpa seja rigorosamente nossa: os
departamentos de marketing, e os sistemas de ‘compliance’ nas
empresas, além evidentemente da mídia financiada pela publicidade,
asseguram o conforto da nossa ignorância. Mas esse faz de conta
generalizado permite não apenas que o sistema funcione, mas que não se
corrija.
A simpática conclusão dos
pesquisadores dessa cadeia produtiva do chocolate é que os grandes
executivos que tanta segurança e compromisso social e ambiental
apresentam são pouco mais confiáveis do que qualquer vendedor de carro
usado. Estão todos nessa, e gigantes como Nestlé ou ADM não estão entre
os últimos. Aliás, gastam rios de dinheiro na associação da marca com
sentimentos de bem-estar e de confiabilidade. Nas entrevistas, como
sempre, aparecem profissionais de relações públicas que, por fim,
confessam que houve deslizes, mas que a empresa já tomou providências, e
tudo continua como dantes, depois de uma campanha de fortalecimento da
marca (brand). A governança corporativa, essencial para que as tecnologias nos sirvam, está voltada para a rentabilidade e para o curto prazo. Greed is good, proclama Wall Street.
Frente à dificuldade de adaptarmos as
novas tecnologias, produtos, procedimentos, rotinas – enfim, o mundo em
acelerada transformação – ao cotidiano e à utilidade das nossas
modestas vidas, gerou-se uma imensa indústria de mudança dos nossos
comportamentos. Tornamo-nos, de certa forma, obedientes servidores das
tecnologias que criamos. Até o Pescoço. Escravos
voluntários, naturalmente, e isso é conseguido por um martelar
incessante da propaganda, em casa, no computador, no celular, na tela do
consultório médico, na parede do bar, no ônibus: um imenso aparelho de
invasão do nosso limitado tempo de atenção consciente, gerando o que já
se chamou de ‘sobrecarga sensorial’, que nos cansa e esgota. São mais de
600 bilhões de dólares que nos custa a indústria da persuasão, que lê
por meio da invasão das nossas mensagens e comportamentos as nossas
fragilidades e interesses, e sugere respostas comerciais a tudo. A
leitura das emoções que transparecem nos nossos rostos ao vermos
diferentes mensagens nos aparelhos online permite que os algoritmos
adaptem a invasão de qualquer intimidade, com mensagens devidamente
customizadas. É Big Brother is Guiding You, muito além do watching. Imensa invasão, zero privacidade, zero regulação.
Podemos chamar de marketing¸ parece
inocente e destinado a nos servir melhor, mas se trata de uma invasão
generalizada que permite um nível de controle de comportamentos com os
quais nenhum dos históricos marqueteiros teria ousado sonhar. Um dos
grandes já dizia: “Não se persuade as pessoas pelo intelecto”. A captura
é pelas emoções. As grandes corporações mundiais já não dependem de
fábricas, máquinas e outras formas físicas de capital do século passado:
os seus ativos são a conexão online que lhes permite a leitura da nossa
vida. Toxic assets, ativos tóxicos para a sociedade. You’re mine, baby. O filme faz uma pergunta direta: é esse o mundo que queremos?
Poucos casos deixam mais clara a
ambiguidade das nossas opções do que a transformação das tecnologias
biológicas aplicadas à procriação, que vemos em Bebês do Futuro.
Ter filhos é, sem dúvida, uma das atividades mais profundamente
enraizadas na natureza, nos nossos instintos, nos sentimentos de amor e
pertencimento. Hoje, evidentemente, enfrentamos de maneira cada vez mais
generalizada a poderosa indústria do bebê. A tecnologia está mais uma
vez no centro das mudanças. A gente fazia amor e rezava. Hoje a gente
escolhe no menu quando e o que queremos. Se tivermos os recursos,
obviamente. Mas o problema é que a tecnologia está cada vez mais
disponível, e, adotada pelos mais ricos, torna-se um desejo irreprimível
das eternamente aspirantes e insatisfeitas classes médias, para em
seguida se generalizar. Ter um filho ou uma filha está sendo cada vez
mais diferente. Há limites? A ciência permite, e o desejo das pessoas de
explorarem novos territórios é muito forte, comentam os autores do
filme.
Tudo isso é muito recente, data de
décadas o sequenciamento do DNA, e de poucos anos o início da
compreensão da epigenética, sendo ainda mais recente a abertura do
imenso potencial do CRISPR, que permite pela primeira vez, e de maneira
rápida e barata, modificar o nosso programa genético. Estamos entrando
na escura, escorregadia e preocupante era da programação genética
estendida ao ser humano. Como em tantos avanços tecnológicos, a riqueza
do potencial e o lado sombrio estão misturados. Poder interferir no
embrião para reduzir a propensão a determinada doença ou deformação é um
avanço indiscutível, e muitos pais que apresentam uma hereditariedade
pesada recorrem a esses serviços. Mas quando mais de um terço dos
clientes pedem alterações no embrião porque desejam um filho mais alto,
ou de olhos diferentes, na linha da embriologia cosmética, o bom senso
do médico fica em alerta. Onde estão os limites? Uma filha monoparental
pergunta para a mãe como seria ela saber alguma coisa do anônimo doador
de esperma que representa uma boa metade do que ela é. Estamos indo para
um universo desconhecido, muito além da barriga de aluguel e do bebê de
proveta.
Uma das facetas mais interessantes e
atraentes da série de documentários é a preocupação não só em descrever
as inovações tecnológicas e a combinação de oportunidades e ameaças que
representam, mas também as diversas formas como as pessoas reagem ou
tentam se situar frente aos desafios. Particularmente emocionante é o
documentário sobre os Imigrantes Digitais. A
minha cultura digital (já estou naquela idade em que da idade não se
fala) consistiu em juntar papéis com clips, e organizá-los em pastas.
Pastas de verdade, de papel. Entre a lentidão da mudança cultural e as
transformações dramaticamente aceleradas da era digital, como funciona a
cabeça? Os imigrantes digitais são os que não nasceram neste país de
sinais magnéticos, e que tentam desesperadamente aprender a nova
linguagem. O ar de perplexidade dos velhinhos frente à mensagem de
“erro” na tela é encantador e angustiante. Juntam-se várias pessoas
tentando ajudar. Mas a lógica não é a delas, é a da máquina. O meu
filho, há alguns anos atrás, programou o computador da mãe, a Fátima,
para que aparecesse, na hora de ligar, a mensagem “Esse computador está
programado para explodir em 30 segundos”. Brincava com a insegurança da
senhora novata. Vivemos a era da disritmia, em que as tecnologias
avançam muito mais rapidamente do que a nossa capacidade de mudança
interna. É a era da angústia tecnológica.
Outras tecnologias podem até reduzir
as angústias. Imagine-se pedalando numa bicicleta ergométrica, mas em
vez de ter uma parede pela frente, ou de ‘se ver na Globo’ na telinha
incorporada, você esteja imerso numa imagem de bosque, e tenha a
impressão visual de estar efetivamente andando de bicicleta em charmosas
e verdejantes veredas. É a era da natureza virtual do Natureza: Todos os Direitos Reservados.
Na cadeira do meu dentista, eu costumo passar o tempo, que não passa,
contando quantos buraquinhos têm nas telas da iluminação do teto. Na
natureza virtual, o teto do dentista apresenta o céu, com nuvens que se
deslocam, muito charmoso. E, obviamente, irreal. Para que ter um aquário
que é preciso limpar de vez em quando, e que tem peixes que ainda por
cima exigem alimento, se você pode ter um aquário virtual, com os peixes
que quiser programar, nadando mais ou menos rapidamente? Como no caso
de tantas tecnologias, ficamos na insegurança de achar absurdo ou de
achar ótimo. Afinal, porque não? E se ainda por cima permite que não
tranquemos os pobres peixinhos entre quatro paredes de vidro? E também,
porque não, se pode nos tornar indiferentes à destruição da natureza
realmente existente? Vou reclamar com o meu dentista. Não uso bicicleta
ergométrica, caminho no parque Villa Lobos.
Mas fugir da realidade não é para todos. O Coração de Açougueiro
apresenta um pequeno matadouro e açougue familiar, gerido de pai para
filho. O menino ajuda o pai, e se vê defrontado diretamente com o seu
amor natural pela vida, pelo cabritinho, pelos coelhos peludinhos, pela
vaca amiga. Agora tem de matar, serrar os ossos, exercer toda a
violência. Normalmente, somos protegidos de tudo isso, apenas vemos a
carne no saquinho plástico, na geladeira. Entre nós e a realidade da
violência exercida contra outros seres vivos, colocou-se o mágico
biombo, ou nós mesmos o criamos, para poder viver em paz. O pai comenta
com o filho, enquanto corta um músculo: é assim mesmo, meu filho, hoje
as pessoas estão na cidade, não têm ideia de como são as coisas. Na
escola, os meninos ostracizam o filho do açougueiro, mas comem a carne
com gosto. Volta aqui o tema que encontramos nos vários documentários:
em algum momento, teremos de ver a realidade como é, passar a pensar a
sustentabilidade das nossas vidas, o faz de conta das corporações e a
mentira global que constroem a publicidade e os meios de comunicação. A
grande mídia não usa fake news, constrói um fake world.
Não se trata simplesmente de ser
contra as tecnologias. Para já, ninguém pergunta se as queremos ou não.
Trata-se, sim, de enquadrá-las, de gerar o ambiente regulatório que
permita que aflore o positivo sem que se escondam os desastres.
Inclusive, podemos sim batalhar por tecnologias que são inibidas pelas
corporações. Inhibitum: Boicotados nos
mostra tecnologias que poderiam ter progredido, com exemplos que,
aliás, na minha opinião, não são sempre adequados. Mas o conceito é
correto. Em 1992, no quadro da cúpula mundial sobre o meio ambiente,
organizei o evento paralelo sobre tecnologias sustentáveis, no Parque
Anhembi. Tínhamos já naquela época dezenas de modelos de carros
elétricos. Mais de um quarto de século passou para que começássemos a
colocá-los no comércio. Entre o avanço científico e tecnológico e os
interesses das montadoras, das corporações do petróleo e de outros
grupos, a briga é desigual. Desenvolvemos as tecnologias que rendem para
os produtores, não necessariamente para o meio ambiente e para esse ser
humano tão inventivo e tão pouco sapiens.
LADISLAU DOWBOR é professor titular
de economia da PUC-SP e consultor de várias agências das Nações Unidas. É
autor de numerosos livros e estudos, entre eles A Era do Capital Improdutivo e O que é poder local?, todos de livre acesso online em http://dowbor.org.