A sequência de filmes que
compõem esta seção de “Povos & Lugares” da 7ª Mostra Ecofalante tem vários
elementos em comum.
De um lado, os filmes apontam:
raízes em uma cultura e tradições locais, respeito e valorização da
diversidade, uma relação de cuidado com a natureza, com o meio ambiente, mostrando
as identidades de povos muito ligados ao território em que vivem e trabalham,
suas formas particulares de tirar seu sustento em uma relação respeitosa com a
natureza.
De outro, os filmes mostram a
avassaladora mercantilização da vida, isto é, a transformação de todas relações
sociais em relações de mercado, de compra e venda, de busca do lucro, de
pasteurização de todas as diferenças, de acumulação de riquezas às custas da
penalização e mesmo espoliação das maiorias. Também mostram que novas
tecnologias podem ser devastadoras tanto da natureza quanto dos seres vivos e,
especialmente, dos seres humanos.
À medida que vão se
introduzindo nessas culturas a “modernidade”, o “progresso”, a mecanização,
aumenta a capacidade dessas comunidades retirarem da natureza não só seu
sustento, mas também um excedente. Nessa nova condição, vai se introduzindo
também uma mentalidade capitalista, competitiva, que busca aumentar cada vez
mais essa produção excedente, porque a motivação agora é outra. Não se trata
mais de produzir para o sustento, se trata de ganhar a maior quantidade de
dinheiro possível, mesmo que isto implique na pesca predatória, no extermínio
de espécies. Podemos ver isso nos filmes A
Ilha e as Baleias e em Pulso.
E as novas tecnologias ajudam
este projeto. As próprias comunidades vão se transformando, a sociedade se
configura de outra forma, pautada pela competição, pelo individualismo,
valorizando especialmente a meritocracia e o consumo, em torno do qual tudo
passa a se organizar.
Na atualidade, pleno século
XXI, esta lógica predatória dos recursos naturais – da fauna e da flora, das
águas, das terras, dos recursos minerais, de toda esta riqueza que sempre se
afirmou como bens comuns para as populações tradicionais – ameaça o planeta e
todas as formas de vida, inclusive a humanidade. Este é o período em que
vivemos: o antropoceno.
Os atores deste processo
deixaram de ser os membros das comunidades em que se exploram as riquezas
naturais, passaram a ser grandes companhias de mineração, do agronegócio, do petróleo,
grandes empreiteiras de obras públicas que não têm nada a ver com as
comunidades em que atuam.
A disputa pelos recursos
naturais e pelo controle e exploração destas riquezas dá margem a muita
violência, a guerras, massacres de populações tradicionais, ou dos “pueblos
originários”, como se identificam as populações autóctones em espanhol. Congo em Guerra trata de um país
maravilhoso, com natureza exuberante, que sofre com guerras e todas suas
consequências, transformando-se num lugar de fome e miséria.
As migrações que daí decorrem
são um fenômeno cada vez mais importante. Populações são expulsas de suas
terras por força da escassez de recursos naturais, como a água, ou pelas
guerras que disputam estas riquezas.
Ao se tornarem massivas, essas
migrações geram disputas, discriminações, atos hostis da parte de quem se vê
ameaçado pela chegada do estrangeiro, por uma língua e uma tradição cultural e
costumes distintos dos seus. Sangue
Sami, com beleza e sensibilidade, aborda este tema.
A escassez do emprego, por
exemplo, leva a que a população local se oponha à chegada de novos
trabalhadores em busca do que fazer e passe a discriminar e combater culturas e
costumes distintos dos seus.
Não importa se falamos da
Guatemala, do Congo ou de uma comunidade dos países nórdicos, todos eles estão
submetidos à mesma lógica do capitalismo, de organizar a sociedade para atender
aos interesses do lucro de poucos, em detrimento dos interesses das maiorias. E
por que não dizer, também, em detrimento das gerações futuras?
Esta é a globalização que
vivemos, a globalização do poder das grandes empresas que se impõe sobre os
governos e determinam o modo de vida das pessoas, o posicionamento de governos,
os conflitos da atualidade. Não se trata mais de buscar o melhor para as
comunidades e cuidar que as fontes de seu sustento se mantenham íntegras, isso
ficou para trás.
Para impulsionar a acumulação e
facilitar os negócios, prevalece o espírito predador, não importam os danos.
Como a tecnologia permite o aumento de escala, é preciso lançar mão de mega obras
como hidrelétricas na Guatemala ou mesmo um canal transoceânico, como o que se
está construindo na Nicarágua, acontecimentos tratados nos filmes A Terra Não Pôde Falar e N-Água, que abordam estes temas e mostram, com
delicadeza, as reações humanas frente a esses atos de violência e empreendimentos
que desequilibram todo o meio ambiente no território e expulsam violentamente
as populações que aí vivem.
O aumento da capacidade de
destruição pelo uso de novas tecnologias não é de hoje. Lembremos do uso da
bomba atômica em Hiroshima e Nagasaki e, mais recentemente, do terremoto e
tsunami que atingiu e danificou a usina nuclear de Fukushima. A denúncia deste
rastro de devastação e as reações da sociedade estão tratadas em O Dia em que o Sol se Foi.
Há também exemplos e tradições
que mostram que outro mundo é possível. Desde como se conduzem populações
indígenas na sua relação com a "Mãe Terra”, algo que hoje deveríamos olhar
com mais atenção e respeito, até a vida em Cuba, um país pobre, socialista, que
vive sob um permanente bloqueio econômico imposto pelo principal país
capitalista, mas que garante, apesar de todas suas dificuldades, uma excelente qualidade
dos serviços de saúde pública e de educação para sua população, especialmente
os jovens. Essa vida, cheia de limites e de conquistas, está expressa em Habaneros,
um filme que merece ser visto.
A visão de conjunto destes
filmes traz sensações contraditórias. Impacta todos nós a enorme destruição das
próprias condições de vida do planeta, e a imposição pela violência, pelas
guerras, pelos massacres, do modo de produção e de vida do capitalismo
globalizado.
Mas estes filmes nos trazem
também um alento, nos permitem conhecer referências de que a população que
sofre a destruição de suas condições de vida também se defende, preserva
valores e tradições, constrói sua capacidade de resistência e de produção do
novo.
Aprendemos que o controle do território
pela população que ali vive é uma condição necessária para se enfrentar o
avanço predatório da globalização. Nessas lutas, muitas vezes os moradores
perdem, mas o sucesso de algumas de suas lutas, como a “Guerra da Água”, em
Cochabamba, anima a todos, mostrando que vencer é possível. E as vitórias
populares dão novo ânimo a todos que se enfrentam com a globalização.
Os filmes nos mostram como
viviam as comunidades antes da globalização e como a globalização transforma
suas vidas. Mas não apresentam uma visão saudosista, no sentido de se buscar
voltar ao que era. Eles mostram os limites de um modelo de sociedade que, se
não atentarmos para os riscos implícitos no seu fazer, podem levar a humanidade
a um beco sem saída. E é por isso que tanto esta sequência de filmes quanto a
própria Mostra Ecofalante no seu todo dialoga com a necessidade de buscarmos
novos paradigmas, novas formas de viver em sociedade, novas formas de produção
e consumo.
SILVIO CACCIA BAVA é sociólogo e diretor do jornal Le Monde Diplomatique Brasil.