O Panorama Internacional Contemporâneo apresenta obras, em sua maioria inéditas no Brasil, de vitrines prestigiosas como os festivais de Cannes, Sundance, Roterdã, Locarno, Berlim, Leipzig, IDFA – Amsterdã (considerada a “Cannes” do cinema documental), entre outros. A programação foi organizada pela curadoria nas temáticas Campo, Cidades, Consumo, Povos & Lugares, Preservação e Trabalho. Cada eixo é objeto de concorridos debates com especialistas e realizadores, uma tradição da Mostra Ecofalante.
Trabalho
O Futuro do Trabalho (No Presente): Imagens de Civilização e Barbárie
de Marco Aurélio Santana
Os filmes da temática “Trabalho”
tocam, cada um a sua maneira, em questões centrais não apenas para o mundo do
trabalho hoje, mas para a vida social como um todo. O trabalho passou e passa
por profundas transformações, atingindo todos os quadrantes do globo. Diferente
de épocas anteriores, vivemos em um mundo dividido entre contingentes enormes
de desempregados e vastas parcelas sob trabalho desprotegido e precário. Em um
cenário como esse, como lida com isso, individual e coletivamente, a classe
trabalhadora? Há saídas já indicadas no horizonte? Como pensar o papel das
tecnologias?
Filmes
Debates
O Futuro do Trabalho (No Presente): Imagens de Civilização e Barbárie
Os filmes da temática “Trabalho” tocam, cada um a sua maneira, em questões centrais não apenas para o mundo do trabalho hoje, mas para a vida social como um todo. O trabalho passou e passa por profundas transformações, atingindo todos os quadrantes do globo. Diferente de épocas anteriores, vivemos em um mundo dividido entre contingentes enormes de desempregados e vastas parcelas sob trabalho desprotegido e precário. Em um cenário como esse, como lida com isso, individual e coletivamente, a classe trabalhadora? Há saídas já indicadas no horizonte? Como pensar o papel das tecnologias?
Muito se fala em um novo tempo tecnológico. Nada mais será como antes, amanhã. Diante de um mundo praticamente todo conectado, em que o meio eletrônico assume (e quase substitui) ares de realidade – permeando todas as esferas da vida social, das mais íntimas às mais públicas – parece difícil negar este fato.
O sonho com os avanços tecnológicos e com mecanismos autômatos é anterior ao capitalismo, mas neste sistema ganhou foro de busca incessante, principalmente pelo fato de que se poderia substituir a classe trabalhadora. Ainda que seja vital ao capitalismo, como uma danação essencial sine qua non, extrair mais-valor do trabalho humano, este trabalho se torna insubmisso, resiste, lhe impõe obstáculos, se põe à frente e faz parar as máquinas. Sob a alegação de “um mundo melhor para todos”, com o trabalho autômato, o capitalismo poria fim ao tempo da rebeldia do trabalho. Trocando os trabalhadores por “robôs”, no sentido mais geral e popular do termo, o capitalismo sonha em extinguir sua contradição central – que, no limite, levaria à extinção de si próprio.
O desenvolvimento de novas tecnologias tem já produzido duros impactos sobre o trabalho e a vida de trabalhadores. Por outro lado, muitas das mudanças recentes são mais, e primeiramente, organizacionais do que propriamente tecnológicas. O importante é perceber que a questão central está exatamente no sistema que introduz estas mudanças e em quais os seus interesses em fazê-lo. Se o sistema é necessariamente, em si, produtor de desigualdades, todos os elementos que puser sobre a mesa terão esta característica e função. Pensar as mudanças no mundo do trabalho, o papel das tecnologias e o lugar do trabalho neste processo de forma “neutra e isenta” já é assumir uma posição política.
O mês de março de 2018 não foi um dos mais favoráveis para a introdução do que seria “o futuro”. Na Califórnia, base do Vale do Silício, centro nervoso da nova revolução tecnológica, ocorreu um acidente, que levaria à morte posterior do motorista, com um carro da indústria de automóveis elétricos Tesla, muitíssimo menos poluentes, enquanto se usava o mecanismo chamado “piloto automático”. No Arizona, um dos carros autodirigidos da frota da Uber, que tem apostado suas fichas nesta experiência que substituiria seu contingente massivo de motoristas, atropelou e matou uma pedestre. Nos dois casos as empresas buscaram explicar os motivos técnicos para tanto, chamar atenção para a etapa de “introdução” – do ainda “engatinhar” – deste processo, lamentar os acidentes, arcar com os custos e, no caso da Uber, por ora, puxar o freio de mão em muitos destes testes.
A chegada do futuro e seus defensores incondicionais precisam lembrar sempre que, independentemente de qualquer coisa, “tem gente na frente”. O sonho com o futuro, com as tecnologias, com o desenvolvimento científico nos acompanha não é de hoje. De alguma forma, este sonho parece ter sempre a dimensão emancipatória. E não há como negar que este desenvolvimento nos trouxe avanços fundamentais. Contudo, não há como negar, também, que o mesmo trouxe elementos que pouco ou nada têm de emancipatórios, ao contrário, têm servido para aumentar nossos sofrimentos. Todo documento de civilização é também um documento de barbárie, Walter Benjamin está sempre a nos lembrar desta dialética.
Sonhos e processos, individuais ou coletivos, passam necessariamente pela corporificação humana. O “futurista” Nikola Tesla representa bem isso. Ele trouxe em si mesmo e em sua trajetória as marcas do doce e do amargo da crença incondicional no futuro e do papel das “descobertas” científicas e tecnológicas. Muitas de suas “invenções” foram incorporadas pela indústria, o que garantiu sua intensa presença; outras tantas foram assombrosos fiascos, o que trazia penúria ao seu futuro. Tesla, representante da geração de virada entre os séculos XIX e XX, que deu sua contribuição particular para pavimentar nossa estrada para o futuro, terminou seus dias endividado e solitário em um quarto de hotel em Nova York.
O Iluminado Mundo de Tesla, sensível homenagem a este complexo personagem, trata da espera de recursos solicitados por ele a um de seus “mecenas” para a realização de seu maior e mais ousado projeto relativo à “conexão” do mundo pela via “sem-fio”. A Wanderclyffe Tower seria um transmissor intercontinental sem fio de comunicação e eletricidade. Tesla secou suas fontes de recursos antes de conseguir levar a cabo este seu ambicioso projeto. Seu nome entraria em ostracismo por muitos anos, até ser redescoberto por gerações posteriores, inclusive dando nome aos carros elétricos Tesla.
Apesar de todos os percalços em suas tentativas de implantação, se desenvolvem projetos com máquinas inteligentes em busca de uma força de trabalho para o futuro. O Futuro do Trabalho e da Morte apresenta o que seria o sonho deste futuro, mas que já teria sua emergência em nosso presente. Há uma apresentação das mudanças que ocorrerão nos mais diversos campos do trabalho com a introdução das novas tecnologias em campos que vão desde os motoristas de táxi/uber até a medicina. Vai se dando a ideia de que, com isso, homens e mulheres estarão livres para desempenhar outras tarefas sociais que não aquelas ligadas ao trabalho, ao menos a este trabalho que conhecemos até aqui. Interessante como as tomadas em close e a cromática ajudam na ideia do tema tratado.
Contudo, já nas próprias falas dos que prognosticam isso, vai surgindo a indicação dos pesados impactos sociais (ainda que sem mencionar os ambientais) trazidos por esta nova era. Além disso, e é um tema pouco tocado, mas aparece de forma impactante na fala de um médico de Uganda, estes processos não são uniformes, lineares e inclusivos, como, aliás, em nenhum momento da história deste sonho ele o foi. Nos dias atuais, diante de tantos avanços na ciência e medicina, por exemplo, o médico diz que, por completa falta de acesso, tem de tratar doenças com medicamentos prévios à penicilina. Enquanto isso, nos países do capitalismo central, os impactos se dão tanto no mundo do trabalho quanto no mundo da vida. Muitos esforços têm sido feitos no aumento da longevidade e, até mesmo, na direção da busca da “imortalidade”. Mas mesmo aí novas tensões e contradições vão sendo geradas.
Diante do quadro em que vive a maioria da população do planeta, produzido exatamente pelo sistema global hegemônico, como pensar que todos terão acesso a estes esforços? Como acreditar que sua realização não produzirá, como sempre, incluídos e excluídos? Sabemos que em um sistema baseado na exploração e na desigualdade, ainda que se fale em nome de todos, a condição de inclusão de alguns vem sempre apoiada na exclusão da maioria, que acaba sustentando o sonho de uma minoria.
Como diz a canção, “a vida é real e de viés”, e sob a aura de um mundo clean, conectado, de mobilidade total, se pode ver um outro mundo, para a larga maioria global, que oscila entre o desemprego, o trabalho precário e o desalento. A vida se dá na precariedade social. Em Dinheiro Amargo temos a exata medida sombria (como a cromática das cenas) disso. Levas e levas de trabalhadoras e trabalhadores na sempre superlativa China migram para regiões onde podem obter trabalho. Regiões incham repentinamente abrigando estas levas em moradias e condições insalubres, assim como as sweat shops de confecções nas quais vão trabalhar por mais de dez horas por dia em busca de dinheiro. O que encontram é o “dinheiro amargo”, que percorre todo o seu tempo e marca indelevelmente todas as suas relações, dentro e fora do trabalho. Todas/os atrás de atingirem um número ideal de peças confeccionadas, pegar o seu “dinheiro amargo”, quando o pegam, e voltarem para suas regiões de origem.
A modernidade e avanço dos celulares, usados intensamente por trabalhadoras e trabalhadores, contrastam com um cenário digno de Blade runner, com espaços escuros, chuva constante, moradias amontoadas, ruas cheias de lixo… Aliás, no clássico que nos demonstrou, já nos anos oitenta, que o futuro não seria mais como era antigamente, os “robôs” – criados para o trabalho nas colônias e que se rebelaram – defendem mais o “viver” do que nós mesmos.
Nestes espaços de produção e trabalho na China, mas que poderiam ser filmados em qualquer outro quadrante do globo, trabalhadoras/es são expostas/os a condições degradantes, nas quais extensas horas de trabalho transformam horas livres em horas de afastamento social no sono ou no álcool. Há fratura das sociabilidades, como no marido que espanca sua esposa, a ameaçando de morte, e ela, sem dinheiro nem lugar para ficar – ela já estaria em um não-lugar, pois ser coreana –, diz passiva que “ao menos eu morro na minha casa”.
Os personagens andam para lá e para cá sem saírem do lugar, sobem e descem escadas conectando trabalho e moradia, compram comidas na rua, que, segundo dizem, os adoecem. Mesmo saindo dali, não veem muita saída. Uma trabalhadora, ao saber que um colega iria para outra região, diz “o gosto do sal é o mesmo em todo lugar do mundo… o do trabalho também”. Ao fim se tem o fechamento com o resultado de seu trabalho, em alguns parcos fardos comprimidos de roupas. Simbolicamente, uma das trabalhadoras busca repentina e ansiosamente, em um desses fardos fechados, não se sabe o quê, talvez ela mesma e sua vida.
Mas, por vias tênues, por entre as costuras que são obrigadas/os a confeccionar todo os dias, se pode perceber como trabalhadores/as vão buscando dar sentido ao (novo) mundo em que vivem. E nunca foi diferente, independente das épocas e contextos. Novas Palavras mostra como isso se deu em outro contexto, recuperando de forma singela a experiência dos/as trabalhadores/as coreanos/as ao longo do processo de industrialização dos anos 1980, época em que os chamados Tigres Asiáticos avançaram sobre os mercados de todo o mundo, e como isso foi apreendido pela linguagem. Como um dicionário, alguns termos usados pela classe trabalhadora em seu vocabulário vão sendo apresentados, mostrando a dor e a delícia do trabalho naquele contexto.
Diante de um mundo contemporâneo prenhe de contradições, que traz sempre em seu desenvolvimento, desigual e combinado, muitos mundos articulados em um só, várias têm sido as experiências de se buscar alternativas, seja para melhorar o sistema, seja para ultrapassá-lo. Hoje, quando o mundo do trabalho passa por profundas transformações, algumas que indicariam inclusive ser possível supostamente viver sem trabalhar, não só trabalhadoras/es vão buscando lidar cotidianamente com estas novas condições, mas coletivamente também se busca.
Corre o ditado econômico de que não haveria almoço de graça. Se você não paga, alguém terá de pagar por você. Sociedade do Almoço Grátis analisa várias e possíveis propostas ao redor da ideia de uma renda mínima que não se prenda ao trabalho. Todo cidadão receberia um montante “básico” de recursos a partir do Estado.
Ao longo do filme desfilam figuras militantes de associações pela renda básica, economistas liberais como Milton Friedman e bilionários como Warren Buffet. Uns defendendo a possibilidade de algum tipo de proteção e garantia dentro de uma sociedade que vai querendo se deslindar das proteções ao mundo do trabalho; outros que veem nesta renda uma possibilidade de se livrar do que seriam erros e excessos do Estado de bem-estar social, e outros ainda que veem nisso uma possibilidade de dar ao individuo a chance de, ao ter acessos a estes recursos individualmente, decidir soberanamente o que fazer deles. Aqui se pode perceber claramente como estas medidas se abrem para apropriações tanto progressistas como conservadoras no espectro político.
No campo da organização coletiva, as cooperativas têm um lugar destacado. Deve-se dizer, as verdadeiras cooperativas, já que este tipo de organização foi também utilizada pelas empresas para burlar a legislação trabalhista, obrigar trabalhadoras/es a se desligarem dos vínculos formais e retornarem contratados pela via de uma cooperativa, que arcaria com todos os encargos no lugar da empresa central que, agora, não contratava mais o trabalho, mas o serviço. Em muitos casos, as cooperativas serviram para dar força ao processo de terceirização, auxiliando no avanço da precarização do trabalho.
Cooperativa Park Slope apresenta a experiência concreta da Park Slope Food Coop, uma cooperativa no sentido histórico da palavra. Organizada em torno da distribuição de alimentos, a cooperativa está centrada, desde sua fundação, em 1973, no rastro dos movimentos alternativos dos anos sessenta nos Estados Unidos, na premissa de que para ter acesso aos alimentos vendidos ao menor preço, é necessário que se seja associado, e para ser associar é preciso que se trabalhe na cooperativa por cerca de três horas mensais.
Assim, o trabalho é um ponto fundamental de toda a organização. E isso é muito valorizado. Caso você não cumpra seu turno necessário, há sanções às quais se tem de submeter. A cooperativa é um sucesso, tendo associados que muitas vezes atravessam Nova York, em três conduções, para fazer suas compras. Entre os associados encontramos os/as mais variados/as profissionais que, uma vez por mês, por um curto período de tempo, se transformam em caixas, arrumadores, supervisores etc. A cooperativa atua em um ramo central da vida social, cumprindo papel importante no acesso, barato porque baseado no trabalho de cada um, à alimentação. Além disso, produzindo efeitos em cadeia, há toda uma relação com fornecedores pequenos ou grandes. Há também um papel importante cumprido com o entorno, que vem sendo gentrificado e ficando menos diverso do que era, servindo como ponto de encontro e diversidade social, econômica, cultural, racial etc. Uma experiência como essa não se dá sem que um conjunto variado de problemas floresça e o filme os apresenta, bem como as medidas para a sua superação.
Através destes filmes se pode pensar o ponto em que estamos e as encruzilhadas que temos pela frente em termos do mundo do trabalho e seus impactos na vida social como um todo. Os desafios não são poucos. Resta saber como e se conseguir-se-á lidar com eles, levando em conta efetivamente a melhoria das condições de vida e trabalho da maioria esmagadora da população, no interior de tão restrita e excludente nova ordem global. Disso dependerá o futuro de todas/os.
MARCO AURÉLIO SANTANA é professor do Departamento de sociologia e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da UFRJ. Foi presidente da Associação Brasileira de Estudos do Trabalho e atualmente é visiting scholar na University of California in Berkeley. Publicou, entre outros títulos, Trabalho e educação: centrais sindicais e reestruturação produtiva no Brasil (coautor) e Trabalho e tradição sindical no Rio de Janeiro: a experiência dos metalúrgicos (coorganizador).