A Mostra Ecofalante de Cinema traz, mais
uma vez, um programa de filmes voltados para as questões da tecnologia moderna:
nesta 10ª edição, são cinco documentários poderosos e multipremiados que versam
sobre o avanço da inteligência artificial e a era das fake news.
São temas especialmente urgentes
neste momento histórico – no conceito de Zygmunt Bauman, a tal modernidade
líquida, em que os saberes são relativizados pelo imediatismo do enorme fluxo de
informação. Sem manter uma consciência crítica, fica muito mais difícil
distinguir a verdade em meio a tanta insegurança e a essa instabilidade quase
patológica de desinformação. Notícias sensacionalistas são lançadas de forma
inconsequente como arma de confusão em massa, para dividir e dominar a
população; depois, volta-se atrás, sem maior responsabilização pelas suas eventuais
repercussões.
A junção da inteligência artificial
(IA) e do discurso perpassa os cinco filmes deste programa, a começar pelo divertido
curta-metragem O Debatedor, de Joshua Davis e Harry Spitzer
(2020), que, com toques de comédia e sátira, retrata uma inteligência
artificial que pretende vencer humanos em debates profissionais. A discussão
fica mais séria em dois outros filmes que abordam o uso de algoritmos para
influenciar movimentos sociais e até eleições: A Campanha Contra o Clima, de Mads Ellesøe (2020),
e Influence, de Diana Neille e Richard Poplak
(2020). Por fim, Feels Good Man, de Arthur Jones (2020), e Coded
Bias, de Shalini Kantayya (2020), racializam a discussão das questões
identitárias.A sétima arte é uma das formas de
concentrar mais poder dialético dentro de uma reflexão coletiva. Exatamente por
isso que o cinema possui o potencial de evocar nosso senso crítico, para ajudar
a entendermos como uma expressão audiovisual pode fortalecer o questionamento
de noções pré-concebidas ao provocar tensão entre várias perspectivas sobre um
mesmo assunto. Obras em estreito debate, como o curta-metragem O
Debatedor e o filme A Campanha Contra o Clima, são
excelentes pontos de partida para nos debruçarmos esteticamente sobre isso.Em O Debatedor, nos
vemos diante de uma inteligência artificial treinada para vencer debatedores
humanos e munida de um extenso acervo de argumentações e respostas cifradas
para todo tipo de ocasião. Ao discutir o quanto a racionalidade maquínica pode
ou não alcançar a nuance da emoção humana, o filme parece convidar-nos a
encarar a máquina mais como uma novidade tecnológica do que como uma nova
ameaça em potencial. Afinal, até aqui, ainda estamos falando do debate em sua
essência, do prazer de debater com bases bem-informadas e com paridade nos
meios de defesa de argumentos. A questão da suposta neutralidade de dados, que
será tema dos próximos filmes do programa, ainda não é apresentada.
De maneira inversamente proporcional,
A Campanha Contra o Clima vai abordar a diferença entre o debate
e o sofisma, no qual não importa a verdade das argumentações, e sim seu poder
de convencimento a qualquer custo. Na trama, acompanhamos o desenrolar, nas
décadas de 1980/90, da luta climática contra os efeitos devastadores da
poluição e do extrativismo predatório – que já indicava estatísticas
potencialmente apocalípticas para o futuro da vida na Terra... A diferença na
abordagem, aqui, é o foco nos indivíduos que propagaram desinformação e fake
news já naquela época, algo que o filme oferece sob a poderosa lente
narrativa da ironia.Eis que o paradoxo de convidarem
alguns dos maiores influenciadores que atacaram essa luta, desmerecendo a causa
ou desmentindo cientistas com pura retórica falaciosa, vira o pulo do gato para
distinguir este trabalho. Eles eram excelentes debatedores, decerto, graças à paixão
pelo calor do debate, mas não traziam qualquer fundamentação ou substrato para
o que afirmavam. Não passavam de pessoas dotadas de técnicas de esvaziamento do
discurso para minar a autoridade científica daqueles com quem se digladiavam
(algo assustadoramente premonitório em relação ao que estamos vivendo no atual
governo brasileiro).
Para rebater o cinismo e a soberba de
alguns desses convidados, a equipe do filme usa montagem e trilha sonora para
exercer o direito à réplica perante alguns dos argumentos mais estapafúrdios
elencados na tela: quebras rápidas entre planos médios e super closes,
desnudando o sarcasmo da cena e levando a edição para contra-argumentos visuais
do que está sendo dito são exemplos de tais expedientes.
O diretor traz para seu média-metragem
esse olhar dialético, levantando perspectivas que contrastam com o discurso
daqueles que se acharam vitoriosos por adiar em décadas um real plano de ação
contra as mudanças climáticas e seus efeitos destrutivos. E faz isso também ao
ampliar sua pesquisa e revelar os investidores desses mesmos agentes,
demonstrando o quanto a indústria do petróleo estava por trás de quem atacava processos
com comprovações científicas sérias, como o efeito estufa e o derretimento das
calotas polares (alguém se lembra do paradigmático filme de Al Gore, Uma
Verdade Inconveniente, de 2006?).
Já Influence dá um passo além
na retórica e demonstra como a publicidade e o marketing deixaram de ser uma
arte meramente comercial e, uma vez aplicados à política, passaram a contar com
critérios objetivos e validação científica, de modo a serem usados como uma
arma operacional de extrema precisão. Estatísticas passaram a dizer quais
gatilhos funcionariam ou não, quais revoluções influenciariam o tipo de governo
que se desejava instituir e a quem o povo ouviria para seguir feito gado. Tudo
através de algoritmos e estimativas de probabilidade testadas principalmente
nos países em desenvolvimento, para serem posteriormente adaptadas à realidade
daquelas poucas nações que governam o mundo – o que reforça o conceito de
Imperialismo Contemporâneo, de Michael Hardt e Antonio Negri. E muito disso com
a ajuda de firmas de relações públicas como a Bell Potinger, dirigida por
“Lorde” Timothy Bell, principal depoente deste longa-metragem.Diferente do filme anterior (A
Campanha Contra o Clima), repleto de entrevistados, Influence foca o olhar sobre Bell
enquanto testemunha predominante, que não deixa de exercer certo fascínio, pois,
mesmo sendo o responsável pelas crises retratadas ao longo da projeção, ele de
fato possui, como personagem, um carisma gigantesco. Essa ambiguidade é o lado
mais intrigante do filme, ao mesmo tempo que, como dramaturgia, não deixa de
ser deslumbrante, pois as inúmeras camadas complexas e inusitadas que são
operadas na realidade sugerem algo de ficção.
O mais curioso é que Bell não
demonstra nenhum remorso em relação a suas ações pregressas, falando com frieza
assustadora – e até com humor – de suas questionáveis façanhas: chama o ditador
Alexander Lukashenko, presidente que ajudou a eleger na Bielorrússia, de
Goldfinger, o vilão de James Bond. Bell só demonstra algum tipo de freio quando
amarga alguma derrota na escalada de poder global que sua agência ajudou a
construir para as pessoas mais perigosas que há.Ainda que se prenda menos fortemente
à muleta do formato “talking heads” (cabeças falantes), pois viaja para
todos os lugares do mundo através de imagens de arquivo dos fatos descritos, é
acompanhando as discrepâncias e incongruências dos entrevistados de perto que o
filme encontra seu forte. Começamos a entender que é nessas falhas,
intencionalmente registradas pelo documentário, que reside a intenção de esvaziar
o poder de influência do biografado. Muito além da pantomima sensacionalista de
figuras verídicas como Donald Trump, até o Brasil aparece como um dos países
afetados por essas manipulações golpistas, a desembocar nos atuais governos
extremistas elencados no filme.
De forma completamente diversa, Feels
Good Man aborda questões bem distintas a partir da mesma premissa. O
poder do algoritmo agora se manifesta através do meme. E o meme
em questão veio de um desenho, “Pepe, o Sapo”, dos quadrinhos “Boy’s Club”, que
foi cooptado como símbolo da mesma supremacia branca que apoia ativamente novos
governos de extrema direita atualmente no poder em muitos países ao redor do
globo.
O filme se filia a uma nova versão de
subgênero documental, os animadocs, que misturam várias técnicas de animação
com live action (filmes de carne e osso), contando uma história real
através de linguagens mistas. O desenho não altera a veracidade do conteúdo,
apenas incrementa a mise-en-scène. E como o objeto aqui é um desenho,
ele se torna o próprio meio da obra, e extravasa o tradicional, pois imerge na deep
web misturado com memética e redes sociais alternativas, como o 4chan.
Feels Good Man se desenrola
através de dois pontos de vista principais: o do artista, criador desse
simpático sapo chamado Pepe, Matt Furie, que tenta recuperar a motivação
original de sua autoria apesar das subversões e apropriações de terceiros; e a
perspectiva multifacetada da própria internet e de uma comunidade de jovens
vazios e revoltados, que projetaram no sapo todas as violências que gostariam
de infligir em suas vidas impotentes. Infelizmente, a visão do criador, meio
hippie, extremamente doce e ingênua, acaba engolida pelas piores distorções
possíveis, ampliando ainda mais o abismo entre os dois extremos.
Por fim, mas não menos importante,
devemos ressaltar que alguns dos filmes deste programa de Tecnologia
foram dirigidos por olhares plurais, com diretoras mulheres e não brancas. É o
caso do aclamado Coded Bias, de Shalini Kantayya (2020), que traz a questão
étnico-racial e de gênero como cerne na análise do preconceito refletido nos
algoritmos. Não é que os dados e metadados sejam intolerantes em suas
equações originárias, porém eles reproduzem um histórico muito longo de
disparidade e desigualdade do próprio ser humano.
A diretora convida um elenco de
pesquisadoras predominantemente mulheres para debater sobre o assunto sob
diversos ângulos. A própria linguagem do filme retira os depoimentos de lugares
fechados e coloca as pessoas nas ruas, onde poderão ser elas próprias
escaneadas, como exemplificação prática de suas teorias. Ao demonstrarem o
resultado da discriminação no exercício de seu próprio campo de atividades, mais
do que entrevistadas, elas se tornam a essência do filme em questão. Seus corpos,
seus rostos e suas palavras são colocados em movimento coletivo para
desmascarar e descolonizar esta opressão. Afinal, não é a tecnologia em si a
vilã destas histórias, e sim a forma como ela é usada por quem a cria, como
esses filmes tão bem exemplificam.