Quando se pergunta qual o sentido da palavra “biodiversidade”,
não é difícil se surpreender com a pluralidade de respostas e entendimentos que
este conceito encerra. No entanto, talvez a melhor resposta para essa questão
seja que a biodiversidade é a teia da vida na fina película que envolve o nosso
planeta – e é a partir dessa ideia que tentaremos pensar a série de títulos
apresentados na 10ª Mostra Ecofalante de Cinema sob o eixo temático da Biodiversidade.
Esses filmes nos colocam frente a alguns fatos irrefutáveis
que deveriam nos fazer refletir: somos, nós mesmos, integrantes desta teia;
aquilo que consumimos tem impacto sobre o meio ambiente; a despeito de todos os
males que isso já trouxe, somos uma espécie que tenta o tempo todo se sobrepor
à natureza: impusemos inclusive nosso próprio tempo.
Testemunhamos os últimos espaços onde a natureza ainda segue
o seu curso. São sopros de beleza de um planeta selvagem e próspero, onde a
interdependência é apresentada, revelando as conexões de todos os seres vivos,
mostrando que cada elemento tem seu espaço e encaixe na teia. Do mínimo ao
grande. Do micro-organismo ao grande urso marrom.
A velocidade imposta pela espécie humana à fina camada de
vida, onde estão animais, solo, plantas, florestas, águas e alimento, está
gerando transformações tão violentas que a era já tem até nome: Antropoceno, um
novo período geológico em que as ações humanas estão alterando o Planeta em
seus ciclos, clima e reações. Este ano se inicia a Década da Restauração de
Ecossistemas, movimento global liderado pelo Programa das Nações Unidas para o
Meio Ambiente e também pela FAO – Organização da ONU para Alimentação e
Agricultura. Este chamado, urgente e talvez o último, é para dez anos de ações
imediatas de regeneração dos solos, conexão e preservação das mais diferentes
formas de vida.
Superar a perda da biodiversidade, a poluição e a crise
climática, colocadas como os grandes desafios para a humanidade, será nosso
vale-permanência enquanto espécie. Os títulos aqui exibidos apresentam caminhos
necessários para a regeneração do solo, para a manutenção de culturas
tradicionais. São soluções baseadas na natureza, que sempre estiveram conosco, ainda
que passemos por tempos de cegueira. Os filmes desta edição nos levam por
reflexões de causa e efeito de uma economia predatória, em que os bens naturais
são tratados como recursos de produção, mas também nos mostram que existem
lugares onde a regeneração está em curso. Isso acontece em pequenas vilas ou
grandes campos, indicando que podemos resgatar nossas relações mais íntimas e
selvagens com uma natureza prístina. A hora é agora.
A
Exaustão das Formas de Vida
Era uma Vez um Lago, curta
alemão de 2019, mostra a morte do lago iraniano Urmia, que “veste uma mortalha
e espera a sua morte”. Intercalando registros fotográficos do passado, quando o
Urmia era o maior lago do Oriente Médio, com imagens de um presente cheio de
sal e secura, o que o filme mostra é uma triste realidade: hoje, o lago possui
apenas 5% do seu tamanho original. Sem demorar-se nas causas dessa tragédia
ambiental, o curta traz pensamentos e trechos de poemas para acompanhar cenas
de desolados visitantes que chegam com suas famílias às margens secas do lago.
O uso da natureza de forma intensiva também está presente em
O
Tempo das Florestas, documentário francês de 2018 que retrata o
processo de transformação de florestas em monocultura às custas da perda do
conhecimento tradicional e da biodiversidade. A tese principal do filme é
apresentada logo de início: afinal, o que faz uma floresta? Do campo às
florestas manejadas para a produção de madeira, passando por exemplos de como é
possível garantir a diversidade das espécies e do solo, o documentário
acompanha personagens mergulhando na silvicultura e em formas de produção
conectadas com os ciclos da natureza. Por enquanto as soluções, apesar de numerosas,
não são suficientes para reverter totalmente o processo de destruição. Esta,
aliás, é uma realidade que retorna em outros títulos desta seção, ao mostrar o
impacto da ação humana, que já degradou quase 25% de toda a superfície do
Planeta.
Estamos exaurindo a nossa casa comum, a terra e o oceano.
Moralmente, como lidar com o fato de que, se continuarmos com as mesmas
atitudes, perderemos, nos próximos 20 anos, uma espécie de baleia ? É o que se
pergunta uma pesquisadora em Baleias Enredadas. O documentário de
2020, que já ganhou diversos prêmios, denuncia o risco de extinção da
baleia-franca do Atlântico Norte – apenas cerca de 400 espécimes deste animal
ainda sobrevivem. Atualmente, o grande perigo são as redes, necessárias à pesca
de lagosta. O documentário traz dados: hoje, 85% das baleias têm cicatrizes
causadas por esses instrumentos. Antes da utilização das redes na pesca,
estima-se que existiam vinte mil baleias-francas no Atlântico Norte. O
documentário acompanha ainda o embate de pesquisadores e conservacionistas por
regulamentações mais rígidas na indústria da pesca de lagosta nos Estados
Unidos e Canadá. A questão em pauta não é de fácil solução, pois há, de um lado,
a sobrevivência de um setor produtivo e, de outro, o destino de uma espécie.
Coexistindo
e Regenerando
Dois documentários nos apontam caminhos para a regeneração
da biodiversidade ou soluções para tal transição. Em Solo Fértil, produção de
2020 narrada pelo ator e ativista Woody Harrelson, são apresentados exemplos de
pessoas em diversos países que transformaram a forma de plantar. A conservação
e a regeneração do solo, tal como apontado no filme, são a chave para a crise
climática, a alimentação global e o retorno a um equilíbrio do Planeta.
A produção apresenta o frágil equilíbrio das interações que
compõem o solo, o papel das plantas e da agricultura na retenção e liberação de
carbono e o impacto das alterações dos ciclos curtos, como os da chuva e das
águas interiores. O documentário é didático ao apontar que trabalhar na
cobertura do solo, devolvendo a ele o carbono, os microrganismos e a água, como
propõe a agricultura regenerativa, é uma questão econômica. É a economia da
regeneração.
Quando se fala em recuperação do solo, fala-se também de
agricultores que variam suas culturas e, desta forma, não precisam depender de
subsídios do governo para a compra de defensivos e de sementes mais
resistentes. Ao mesmo tempo, também se devolve a diversidade, a temperatura
mais amena da terra e a capacidade de produção de chuvas, alterando
positivamente o microclima.
A metamorfose da vida das borboletas, um dos ciclos mais
impactantes da natureza, trouxe uma alternativa econômica e de preservação da
floresta no Quênia. É o que mostra o curta As Borboletas de Arabuko, de 2020. O
terceiro estágio de uma borboleta, depois de sair do ovo e antes de virar
lagarta, é ser uma pupa, ou crisálida. A comercialização delas transformou um
pequeno inseto em uma das principais alternativas econômicas para evitar o
desmatamento, a caça e a perda de biodiversidade. Através da história de um
antigo caçador, o filme apresenta como as borboletas têm contribuído para a
manter a floresta remanescente mais importante da África Oriental.
O
Estado Pleno
Os dois últimos documentários trazem a celebração do Planeta
no seu estado prístino e o entendimento de que os humanos são apenas mais uma
entre todas as espécies que compõem a biodiversidade da Terra. Em O
Salmão Vermelho, filme russo de 2020, através de relatos de um guarda
florestal, conhecemos o Santuário do Sul de Kamchatka, no extremo oriente da
Rússia, um lugar de extensas áreas de florestas, montanhas e água, lar dos
ursos marrons e do salmão vermelho.
Filmado ao longo de muitos anos, o documentário traz cenas e
momentos primorosos, como a desova dos salmões e seu crescimento, a caça dos
ursos e o trabalho de conscientização da comunidade local para a manutenção desse
equilíbrio, o que contribuiu fortemente para a diminuição das caças furtivas,
deixando assim de impactar no equilíbrio do ecossistema “Kamtchaka carrega o
sabor da vida. Aqui precisamos valorizar cada ser”, diz o personagem central do
documentário, um apaixonado defensor de Kamtchaka e do estado natural e
selvagem do Santuário, onde os animais não temem os humanos. A partir de sua
reprodução, o salmão-vermelho demora de um a três anos para partir rumo ao
oceano. Por isso, conservar a área de crescimento é vital. O salmão também retém
na região os ursos, que, por sua vez, sustentam uma série de outras espécies da
floresta, mantendo intacto o ciclo da vida.
Um
Ambiente e um Lar para Partilhar
“Houve um tempo, milhares de anos atrás, quando a relação
entre homens e animais não era baseada em diferenças, mas na identificação. O
ser humano não se distinguia dos animais.” A indagação sobre essa relação milenar
dos seres humanos com os outros animais é a proposta de Res
Creata, documentário-ensaio italiano de 2019. Poético e filosófico, o
filme traz personagens solitários e reflexivos – pesquisadores dos cantos das
aves, pensadores, filósofos – em sua vida no campo.
O que guarda um canto de ave? O que podemos aprender da
relação simbiótica dos animais com a natureza? O que perdemos rumo a uma
sociedade mais “desenvolvida”? Compreender os animais – percebê-los como
seres inteligentes e sensitivos – e entender, através das histórias de
personagens, da filosofia e da contemplação, como fomos nos desgarrando do
mundo animal e natural é a proposta deste longa. Como os animais podem nos
ajudar a estar mais em sintonia com nosso planeta?
Em um ensaio de imagens e paisagens, este filme de extrema
sensibilidade nos mostra que algo nos aproxima e nos entrelaça no reino animal,
do qual fazemos parte. O filme, assim como o conjunto de títulos reunidos sob o
tema de Biodiversidade desta 10ª Mostra Ecofalante, nos propõe olhar
para a história destas relações e para o sentido da vida, em um caminho de
retorno, até sermos humildemente apenas mais uma espécie, a humana, “sem
acreditar que ocupamos um lugar privilegiado na mudança”.