A crise de 2008 criou, para alguns, a esperança de que seria o fim do neoliberalismo. A explicitação das contradições de um regime de acumulação que apenas vinha adiando a resolução de seus problemas, transferindo-os para novas esferas, teria acabado com a crença ideológica no modelo de mercado como panaceia capitalista. Essa crise de legitimidade teria se manifestado nos protestos de massa que se seguiram à crise, conhecidos como “movimento das praças” (Primavera Árabe, Indignados, Occupy Wall Street, Nuit Debout, Gilets Jaunes, o movimento da praça Taksim, as revoltas populares na Grécia e as jornadas de junho de 2013 no Brasil). Esse mosaico de manifestações sinalizava que à crise econômica havia se somado a crise política, formando uma conjuntura histórica excepcional que se aproxima da noção de “crise orgânica” de Antônio Gramsci. Em The Mask and the Flag: Populism, Citizenism and Global Protest (Oxford University Press, 2017), o sociólogo italiano Paolo Gerbaudo explica “[A crise orgânica] é uma situação na qual, segundo Gramsci, como o antigo regime está morrendo, desligando-se de sua base social e, consequentemente, tornando-se incapaz de encaminhar suas demandas, sua morte permite que as sementes de uma alternativa brotem”.
Mas o fato é que, na década que se seguiu, essa alternativa não brotou. Ao invés disso, o neoliberalismo se apoiou na crise econômica e de representatividade política para radicalizar o seu modelo em nome da urgência e da necessidade econômica. Como notou o historiador e filósofo da economia norte-americano Philip Mirowski, “não apenas a percepção da crise passou sem nenhuma tentativa de retificar as falhas que quase levaram a economia à paralisia, mas inesperadamente a direita política emergiu do tumulto mais forte, sem se desculpar e ainda menos contida em sua rapacidade e credulidade do que antes da quebra”. Além de ter feito evaporar o sentido de uma virada progressista, a crise global preparou uma nova contraofensiva neoliberal:
"As reformas de regulação das finanças logo cederam lugar a políticas de restrição fiscal e de austeridade que promoveram cortes nos serviços públicos; os gastos estatais de emergência para salvar o mercado financeiro foram interrompidos assim que os lucros foram restaurados, embora o desemprego e a execução de hipotecas continuassem a crescer; os riscos e as responsabilidades foram novamente transferidos pelo governo central para administrações locais, diretorias escolares, autoridades de saúde, entidades filantrópicas e famílias; e os custos da insegurança e da reestruturação foram mais uma vez pagos pelos pobres e vulneráveis." (Peck; Theodore; Brenner, 2012b, p. 266)
Politicamente, os movimentos de contestação, em vez de provocar a derrocada de governos e elites neoliberais, tiveram o efeito inverso. Como admite o próprio Gerbaudo: “A maioria desses movimentos confrontou governos socialdemocratas de centro-esquerda de vários matizes (nos Estados Unidos, no Brasil, na Grécia e na França), cujas políticas de direita e corrupção afastaram algumas de suas bases tradicionais de apoio.” O problema é que o fim desses governos deu lugar a políticas que aprofundaram em ritmo inédito o neoliberalismo.
As consequências da crise, seguida por medidas de austeridade e por reformas neoliberalizantes, são bem conhecidas: falências, desemprego (atingindo drasticamente os jovens), redução de salários, precarização do trabalho, endividamento público e privado, perda de direitos sociais, desmonte de serviços públicos, aumento da desigualdade social, dificuldades econômicas e sofrimento social. A crise de 2008 converteu-se, assim, em uma crise crônica. Esses indivíduos atomizados pela competição, frustrados pelo fracasso econômico e decepcionados com a política aderiram desesperadamente ao discurso superficialmente antissistema proposto por populistas de extrema-direita, canalizando seu ódio de maneira catártica contra supostos inimigos internos. Culparam imigrantes, classes subalternas, populações minorizadas, movimentos sociais e partidos de esquerda por suas mazelas. Mas as saídas nacionalistas autoritárias tampouco são capazes de oferecer resposta à maneira como o neoliberalismo se alimenta de suas próprias crises.
A questão que se coloca, então, é como o neoliberalismo foi capaz de capturar e esvaziar a democracia de modo a perpetuar o seu modelo. Os filmes da Mostra Ecofalante examinam essa questão, ao mesmo tempo que buscam explicar o funcionamento histórico do neoliberalismo e como ele vem aprofundando a desigualdade social, espremendo as camadas médias, desfazendo a estabilidade política e criando ameaças autoritárias. A busca por alternativas progressistas é também o seu mote, visando a redemocratizar a democracia e permitir a escolha política de novos modelos econômicos que diminuam a desigualdade e/ou desfaçam as contradições atuais.
Uma primeira forma de captura da democracia é a transferência das decisões relativas à política econômica para instâncias supranacionais, colocando suas diretrizes fora do controle da escolha popular. Nesse sentido, pode-se dizer que houve a passagem para uma fase propriamente autoritária do neoliberalismo, desde que se entenda por autoritarismo não apenas o uso da força bruta coercitiva (golpes militares, policiamento de manifestações, retórica política racista etc.), mas também “a reconfiguração do Estado e do poder institucional numa tentativa de insular certas políticas e práticas institucionais do dissenso político e social”. Os exemplos aqui podem ser diversos: o desenho legal e institucional do espaço econômico internacional de modo a salvaguardar o capital e blindar os mercados das demandas democráticas por justiça social e igualdade redistributiva; a definição de “boa governança” dos Estados por organismos internacionais (FMI e Banco Mundial) e agências de rating privadas, constituindo critérios conforme os interesses dos grandes investidores financeiros que, se contrariados, disparam fugas de capital e a constituição de zonas de integração transnacional, que transferem o poder político em decisões econômicas para aparatos tecnocráticos supranacionais.
Esse é o tema do interessantíssimo filme de Costa-Gavras, Jogo do Poder. O longa dramatiza o livro de Yanis Varoufakis, ex-ministro das finanças da Grécia no então recém-eleito governo de esquerda do partido Syriza. No contexto da crise de 2008 e do resgate das dívidas dos bancos privados pelo Banco Central Europeu, transferindo-as para os cidadãos, o ministro grego busca renegociar a dívida grega e propor um plano de recuperação econômica do país contra o plano de austeridade imposto pela Troika (Comissão Europeia, Fundo Monetário Internacional e Banco Central Europeu). Apesar da incapacidade da política econômica de austeridade de viabilizar o controle da dívida pública, essas instituições internacionais e supranacionais impõem-na contra a escolha democrática do povo grego, referendada inclusive por meio de plebiscito. O filme ilustra perfeitamente o esvaziamento da democracia pelo neoliberalismo, realizado por meio da transferência das decisões econômicas para instâncias supranacionais e do insulamento tecnocrático das políticas do dissenso político-social. O caso grego é fundamental por duas razões: porque demonstra com toda clareza que as medidas de austeridade em resposta à crise transformaram-na em uma crise crônica, ao invés de promover a retomada econômica, e porque ele operou como propaganda global de modo que a dívida contraída para salvar o setor privado fosse traduzida ideologicamente como despesas públicas descontroladas.
A crise colocou, assim, tanto a economia como a democracia em risco. Segundo o sociólogo econômico alemão Wolfgang Streeck, depois de 2008, com os Estados assumindo os créditos podres privados a fim de evitar a desintegração do sistema financeiro global, houve um aumento da dívida pública e da dívida privada de famílias e empresas. Com medo da insolvência dos Estados, os investidores financeiros globais pressionaram os governos a convencerem seus cidadãos a aceitar cortes de gastos sem precedentes, distanciando-os cada vez mais das decisões políticas. Esse sequestro da democracia pela pressão dos mercados financeiros é tratado no filme Oeconomia, de Carmen Losmann. Documentário denso, ele procura deslindar o sistema monetário moderno e a relação entre crescimento da produção econômica, oferta de dinheiro e de crédito, crescimento da dívida pública e privada e, consequentemente, das desigualdades. Dialogando implicitamente com a Moderna Teoria Monetária e com os modelos de crescimento zero, o filme mostra a insustentabilidade lógica do capitalismo contemporâneo no médio prazo, colocando riscos também para o ecossistema. Outra contribuição é mostrar como os governos democráticos ficaram impossibilitados de decidir livremente quais projetos financiar, restringindo-se a apresentar orçamentos com propostas do que teriam intenção de financiar, que passam a ser aprovados por credores de capital privado com vistas à sua lucratividade.
A captura da democracia por uma elite oligárquica também aparece no filme O Capital no Século XXI, de Justin Pemberton e Thomas Piketty. Inspirado no livro homônimo de Piketty e contando com a sua participação, bem como a de outros intelectuais e jornalistas, o documentário traça uma história das formas de regulação e das crises do capitalismo desde o século XVIII até o presente. A ênfase da narrativa recai sobre a crescente desigualdade criada pelas formas recentes de desregulamentação financeira, que favorecem a concentração econômica e de poder político, levando a uma polarização crescente na sociedade e à adesão ao autoritarismo contra falsos inimigos.
Por fim, o filme A Nova Corporação, de Joel Bakan e Jennifer Abbott, realiza uma continuidade interessante do conhecido primeiro filme da franquia, A Corporação. Nesse longa, mais duas formas de esvaziamento da democracia pelo neoliberalismo são discutidas. Primeiro, o filme remete à ideia de pós-democracia, ou seja, “uma organização política na qual, embora todas as instituições democráticas continuem a funcionar, a energia da ação política mudou-se para outro lugar, em particular para uma pequena elite simultaneamente política e econômica”. Esse declínio da capacidade democrática seria devido à penetração do poder corporativo no interior da própria formulação da política, o que ocorreria por meio de lobbies, da permeabilidade do new public management a interesses privados, da definição de normas de comércio e legislações por corporações transnacionais e da terceirização de serviços públicos para grupos empresariais especializados em ganhar contratos. Além disso, o filme trata também da ideia de “economização”, com as técnicas de controle social desenvolvidas pelas corporações (e também pelos Estados colonizados pelas corporações), promovendo um agressivo imperialismo econômico que impõe valores, linguagem, formas de conhecimento, métricas, práticas e técnicas de mercado para avaliar toda e qualquer instituição ou conduta humana, desfazendo assim a separação entre as esferas econômica, social e política. Trata-se da construção política e normativa da sociedade de mercado, o que não significa que o mercado devore toda a realidade, mas que a norma do mercado se imponha além do mercado. Com isso, os indivíduos são moldados exaustivamente segundo a racionalidade típica do homo oeconomicus, sendo despolitizados e reduzidos à esfera privada comercial.
Mas os filmes da Mostra não se restringem a traçar um diagnóstico pessimista do presente. Dependendo da maneira como cada um estabelece a relação entre neoliberalismo, desigualdade e captura da democracia, eles propõem também alternativas políticas para os impasses contemporâneos: a retomada da soberania popular e nacional em matéria de política econômica (Jogo do Poder); a assunção pelo Estado do privilégio dos bancos privados, de modo que a sociedade possa decidir democraticamente que tipo de gasto deve ser feito para além da busca incessante de lucro, emitindo dinheiro para isso (Oeconomia); a regulação do capitalismo internacional, taxando de maneira mais efetiva as multinacionais e criando impostos progressivos sobre o capital e sobre as heranças, de modo a reduzir as desigualdades (O Capital no Século XXI) e a repolitização da sociedade, a organização da resistência contra as grandes corporações e a disputa de eleições com projetos alternativos (A Nova Corporação).
Essas alternativas podem ser debatidas, e pode-se concordar ou não com elas, mas o fato de a imaginação política estar refletindo e construindo novos caminhos já é um bom sinal.