Será que a canoa lembra que já foi árvore? Será que singrando as águas do mar se esquece da terra úmida da floresta? Talvez inventar esquecimentos seja a única forma possível de lidar com o fim de tantos mundos que desaparecem a cada dia. Aqueles que têm seus mundos destroçados inventam esquecimentos para poder seguir vivendo nesse mundo que se quer hegemônico. Os que conseguem resistir, porém, também precisam inventar esquecimentos para acreditar na luta e na possibilidade de vitória.
Fazer uma canoa é uma arte. Exige técnica, claro, mas é a arte que promove o encontro da floresta com o mar. A canoa é uma árvore que se estende a partir da floresta e funde seus mistérios com os encobertos pelas águas salgadas do mar. Escolher a árvore certa, esculpir nela o espaço onde os pescadores vão respirar, procurar, se angustiar e comemorar é tarefa grande. Dar acabamento à canoa, garantir que ela não perca o prumo mesmo quando seus ocupantes se desnorteiam é trabalho de paciência. Pintá-la, enfeitá-la, dar um nome a ela, para que conquiste sua identidade, ainda que seus usuários já não saibam mais quem são, é o sal da vida.
Fazer tudo isso coletivamente, encarar cada etapa como uma celebração, reconhecer no encontro entre a floresta e o mar um mundo de possibilidades e fazer desse encontro uma união entre pessoas, suas artes, suas habilidades e seus sonhos, tudo isso faz a vida infinita, por mais breve que seja. Afinal, quem pode esquecer que a alegria é a prova dos nove... Nada disso, porém, parece encontrar lugar neste mundo em que vivemos. Um mundo onde existe cada vez menos espaço para a diversidade: a pluralidade de formas de viver desaparece rapidamente sob as dobras de aço do colonialismo combinado com o capitalismo, e a singularidade é alvo de incompreensão, repressão e violência pelas mãos dos que ali enxergam formas de subversão do que acreditam ser o único modo correto de estar no mundo.
O tema Povos e Lugares da 10ª Mostra Ecofalante é uma cunha neste mundo. Ajuda abrir uma fresta neste muro de certezas aparentemente inevitáveis e nos leva a pensar no diverso e na persistência da diferença. Os filmes exibidos permitem ver, por essa fresta, vários mundos. De alguns, apenas restos onde o caminho parece ser inventar maneiras de esquecer para enxergar algum devir. Outros, onde se sente a tensão da existência que pende por um triz. E, ainda, aqueles que já inventaram o esquecimento e agora lutam para rebrotar.
Do primeiro caso, de um mundo onde apenas vemos as ruínas, vem o filme Pesca Roubada, mas que poderia se chamar, como bem diz um de seus personagens, “uma pesca muito maldosa”. A pesca maldosa cujo fruto é roubado – de peixes a sonhos, de camarões a futuros – se desenha em duas frentes cruéis. A primeira, traduzida nas traineiras chinesas que pescam incessantemente a cada noite, com redes em cujos furos “não passam sequer dois dedos”, levando tudo que há no mar. E a segunda, sob a forma de uma fábrica de farinha de peixe também chinesa, cuja produção se torna ração animal para abastecer a China e a Europa. Peixes que eram pescados para subsistência não existem mais e os poucos que são pescados com dificuldade acabam vendidos para a fábrica de peixe. O resultado é a desestruturação de um mundo onde todo sonho passa pela travessia do Mar Mediterrâneo e por uma mudança para Europa.
A “pesca muito maldosa” é mais uma tragédia que se abate sobre o povo da Gâmbia. Um dos menores países da África, cercado pelo Senegal, sua economia depende do rio Gâmbia, da agricultura e da pesca. Já no século IX, a região onde está a Gâmbia era alvo de um comércio “muito maldoso”, de pessoas escravizadas, ouro e marfim. Desde então, portugueses e ingleses herdaram esse comércio dos árabes e seguiram com a exploração das pessoas, como escravas, e dos recursos existentes. Se não há mais hoje comércio de pessoas escravizadas, há uma espécie de acordo tácito no qual a Europa lucra com essa mão de obra desesperada por esquecer seu mundo e inventar um futuro, ao mesmo tempo que se assegura a persistência dos mecanismos que mantêm a África subalternizada.
Em Morning Star, um filme que se passa em Madagascar, a “pesca muito maldosa” dos chineses também está presente. O filme mostra a luta de uma comunidade de pescadores, os Masikoro, já afetada pela diminuição dos peixes, em consequência das atividades dos gigantescos e numerosos barcos chineses, para evitar que uma empresa de mineração australiana construa um porto. Além de considerarem a praia Andaboy, objeto da cobiça dos australianos, sagrada, o porto impediria o acesso aos lugares onde esse povo pesca. É a situação de um mundo que pende por triz, basta que o governo malgaxe, que não tem escutado os Masikoro, autorize a construção desse porto para que esse mundo rua. Não apenas oito mil pescadores serão afastados de sua fonte de subsistência, mas também os Vezo, povo que faz canoas para os pescadores, perderão sua fonte de renda.
Mesmo diante de forças poderosas, esses povos não pretendem desistir de sua luta. Resistir para manter sua forma de estar no mundo, mas também para persistir no mundo. Essa resistência se releva em várias dimensões, desde movimentos populares que se organizam para debater a questão com os governantes até no nome de uma canoa nova dos pescadores: Aza kivy, “não desistiremos” em malgaxe. É em Morning Star que vemos um mundo diverso do nosso, ainda íntegro, onde as relações entre a floresta e o mar são como um abraço; mas é também ali que pressentimos o perigo e sentimos o cheiro da morte.
Essa morte, vemos acontecer cotidianamente, bem perto de nós. Aconteceu na construção da Hidrelétrica de Belo Monte, no rio Xingu, na região de Altamira, no Pará, por exemplo. Múltiplos mundos tiveram fim com essa obra. Ribeirinhos perderam seus modos de vida e foram afastados do rio. Povos indígenas, como os Juruna, perderam suas fontes de subsistência. Acontece todos os dias, pode acontecer na construção da Base de Alcântara, no Maranhão, desalojando as comunidades que ali vivem; pode acontecer com os índios isolados do Vale do Javari, no Amazonas; pode acontecer com as inúmeras comunidades locais deslocadas pelo agronegócio. Em cada uma dessas situações é preciso inventar o esquecimento, sem o quê não é possível continuar no mundo, mesmo que já não seja possível chamar de vida o que restou.
Não de forma tão ostensiva como vemos no Pesca Roubada, ou como pressentimos em Morning Star, ambos na África, o filme português Hálito Azul também retrata o fim de um mundo. A comunidade de pescadores de Ribeira Quente, nos Açores, encontra cada vez menos peixes diante da exploração predatória da pesca industrial. Hábitos e costumes se tornam raros, os pescadores envelhecem, mas, ainda assim, a angústia que emerge nos filmes que se passam na África aqui é substituída por uma vaga tristeza. Como ele, o filme Até o Anoitecer, desperta a nostalgia de um mundo que vai ficando no esquecimento, um jeito de ser que não encontra mais lugar. O silêncio das duas mulheres que compartilham esse mundo, nesse filme, mostra que aqui o esquecimento já foi inventado e que as ruínas se avizinham.
O conjunto de filmes nos dá a certeza também de que a influência do nosso mundo e suas consequências chegam a todos os lugares, mesmo às comunidades mais isoladas e aos territórios mais longínquos. Chegam à praia de Andaboy, no sudoeste de Madagascar, e chegam também à ilha de Sapelo, no estado da Geórgia, nos Estados Unidos, onde vive uma comunidade remanescente Geechee. Os Geechee, também conhecidos por Gullah, são afroamericanos, descendentes das pessoas escravizadas levadas à força para os Estados Unidos, que mantiveram um relativo isolamento e preservaram alguns hábitos culturais. Sapelo, filme que leva o nome de uma ilha ainda mais isolada do que os outros territórios ocupados por essas comunidades, conta a história da luta de Cornélia, uma das últimas representantes dessas comunidades, para criar seus filhos na interface entre seu mundo Geechee, que desaparece, e o novo mundo que ali aporta, por intermédio de pesquisadores dos ecossistemas da ilha e dos novos moradores. Aqui também é preciso inventar o esquecimento para assim achar algum equilíbrio possível entre mundos.
É a invenção do esquecimento, porém, encenada no filme Omelia Contadina (Homília camponesa) que mostra que dessa invenção, a resistência pode brotar. A resiliência dos camponeses e da agricultura familiar por toda parte é proverbial. Não apenas porque não querem abandonar seus modos de vida, mas porque sabem que o futuro da humanidade está em suas mãos. A soberania e a segurança alimentar dependem de suas sementes e de suas variedades. Sem elas, sucumbiremos todos.
A pluralidade de mundos se espelha na diversidade de formas de resistência. Algumas são lutas frontais, outras apostam na resiliência. Em todos os casos, porém, é preciso inventar esquecimentos. Como se fosse possível fingir que esquecemos, fingir que nos conformamos, para talhar um desvio, talvez uma espécie de figura de Leminski: “distraídos, venceremos”. Não distraídos no sentido de sem atenção, mas sim distraídos das dificuldades da luta, distraídos da pretensa impossibilidade de vitória, distantes dos que dizem que nada adianta e que a guerra já está perdida, esquecidos do imenso poder do opressor. Prontos para brotar nas frestas, como uma contramola que resiste, ainda que no olho do furacão. Aza kivy!