Sempre foi sobre os corpos. Sobre o controle dos corpos. Não quaisquer corpos, porém. Mas o daqueles que são chamados de minorias. Os não brancos, os não homens, os não heterossexuais, os não cisgêneros.
“A guerra contra a Terra começa na cabeça dos homens. E eu quis dizer homens, especialmente homens que controlam o poder e o capital”, diz Vandana Shiva em As Sementes de Vandana Shiva (EUA, Australia, 2021), documentário de Camilla e James Becket. Vandana Shiva, conhecida também como o “pesadelo da Monsanto”. Vandana, a indiana que enxergou antes da maioria qual era a guerra do nosso tempo, aquela que não é mais travada entre países, mas entre corporações transnacionais. A guerra travada contra a natureza, contra o planeta-corpo. “Quando você vende armas reais, você controla exércitos. Quando você controla a comida, você controla a sociedade. Quando você controla a semente, você controla a vida na Terra”, ensina Vandana, e grita. É então atacada pela máquina de desqualificação das corporações que denuncia.
Agora que as gerações dos vivos têm diante de si o maior desafio da trajetória dos humanos neste planeta, a catástrofe climática, cavada pelas máquinas da minoria dominante que comanda as grandes corporações, os governos e os parlamentos torna-se explícita. O sistema e a lógica que destroem o corpo das minorias são os mesmos que destroem o corpo do planeta. Primeiro coisificam. O rio, a montanha, as árvores viram objetos. Passam a ser chamados de “recursos”. E então colonizados, civilizados, enformados, subjugados, domados. Dos corpos coisificados tudo o que pode virar dinheiro é arrancado, e não há limite, porque já não é preciso ter quando o ser já não é – ou nunca foi. É a coisa-commodity. Depois de esgotados, os corpos são então abandonados, a coisa-coisa, a coisa-lixo, a coisa-dejeto, a coisa-rejeito que cobriu Mariana e Brumadinho. Tudo o que morre em cadeia, ao redor, abaixo e acima, é dano colateral, é sacrifício necessário, porque com o corpo dos outros – o sacrifício do capitalismo é sempre para o outro, com o corpo do outro. O corpo do outro é a carne mais barata do mercado.
Como o corpo das mulheres dalits, as “impuras”, a casta que não é, no documentário Escrevendo com Fogo (Índia, 2021), dirigido por Rintu Thomas e Sushmit Ghosh. Como o corpo da natureza, o delas também pode ser invadido, violado e esgotado. Em brutal literalidade, o filme inicia com a editora-chefe, Meera Devi, filmando com seu celular outra mulher, que diz: “Eu fui estuprada no dia 16 e depois no dia 18 e depois...” E ela segue desfiando dias e entendemos que, para uma dalit, todo dia é dia de estupro.
Meera e um grupo de dalits riscam trincheiras nessa guerra criando um jornal. “Acredito que o jornalismo é a essência da democracia”, ela diz. “Quando as pessoas clamam por seus direitos, somos nós, jornalistas, que levamos sua reinvindicação ao governo. É assim que se luta por justiça em uma democracia. Cabe aos jornalistas usar seu poder com responsabilidade.” E alerta: “Se não for assim, a imprensa se torna só mais um negócio qualquer.”
O corpo devastado da natureza é o cenário persistente desse documentário em que corpos devastados de todas as maneiras de mulheres – e também de homens – dalits se sucedem no horror da violência convertida em normalidade. As repórteres dalits avançam empunhando seus celulares, tecnologia de ponta em casas onde algumas delas nem mesmo têm energia elétrica. A guerra é fora, a guerra é dentro. Depois de 14 anos de existência e um número crescente de leitores, o marido de Meera ainda diz: “Não acredito que (o jornal) vá durar.”
Se os corpos se insurgem, resta então destruí-los. Como mais de 90% dos povos originários exterminados durante os séculos 16 e 17. Como os milhares de pretos escravizados naquilo que os colonizadores chamaram África. Como as mulheres queimadas como bruxas pela Inquisição dos católicos na Idade Média. Como os refugiados que não chegam à praia, vindos de territórios em guerra causada pelos de dentro dos muros, em fome causada pelos de dentro dos muros, em seca causada pelos de dentro dos muros. Como os migrantes separados de suas crianças e encarcerados ao tentarem furar o bloqueio dos muros. Como os institucionalizados nos manicômios, os confinados nas prisões pela “guerra às drogas”. Como Marielle Franco, que ousou ocupar o centro vinda da Maré, vindo preta, vindo lésbica, vindo mulher.
Anita Chitaya habita o corpo esgotado do continente invadido, violado, escravizado e dividido na mesa dos colonizadores europeus, em As Formigas e o Gafanhoto (Malawi, 2021), documentário dirigido por Raj Patel e Zak Piper. A agricultora Anita quer entender por que a carne da terra secou ao seu redor. Ela descobre que quem come a sua paisagem e condena seu povo à fome é branco e está do outro lado do mundo, nos Estados Unidos. Anita enfia suas roupas coloridas em uma sacola e viaja para lhes contar o que está acontecendo no Malawi, porque, se eles souberem, certamente vão parar de engolir o mundo dela. Se engolem, é porque não sabem. Do contrário, como seriam capazes?
Anita descobre primeiro que aqueles que ficaram de fora do banquete têm cor. “Os pobres aqui são como eu”, ela diz, melancólica, enquanto o carro que a carrega avança por ruas de restos humanos. Em seguida, ela descobre o pior. Agricultores como ela, mas brancos, sabem, mas não acreditam. Ou pensam que o aquecimento do planeta é um plano de Deus, como afirmaram a ela, porque vale tudo para não ser obrigado a mudar velhos hábitos. Anita volta para seu mundo esgotado, e agora ela sabe: “Esse país (os Estados Unidos) tem tudo e eles acham que é um direito adquirido. Como seres humanos, eles deveriam saber que nada dura para sempre.”
De dentro da barriga do monstro engolidor de mercadorias, o maior emissor global de carbono, junto com a China, o algoz do mundo de Anita Chitaya, a jovem estadunidense de ascendência latina Alexandria Ocasio-Cortez e milhares de outros jovens tecem a rebelião em Até o Fim (EUA, 2022), documentário dirigido por Rachel Lears. Eles não tampam o nariz ao conviver com os políticos e os financistas que há décadas, séculos manipulam os destinos. Sentem seu fedor, é preciso sentir o fedor. “Política tem a ver com quem comparece. Então, se você não comparece, as pessoas piores, eu juro, elas vão comparecer e vão estipular os termos”, diz a jovem mulher que disputou e conquistou uma vaga no Congresso dos Estados Unidos em nome da justiça climática. AOC avisa: “Não é sobre painéis solares, é sobre uma batalha espiritual.”Para alguns corpos, como os de Anita Chitaya, Vandana Shiva, Alexandria Ocasio-Cortez e os das mulheres dalit, só haveria dois destinos no mundo comandado pelas corporações comandadas por homens: ou o controle, ou a destruição.
Haveria. Só que não. Os corpos tratados como restos resistem. E resistem para existir – rexistem.
Os povos originários rexistem há mais de cinco séculos contra todas as políticas de extermínio, da assimilação à bala. Os descendentes de escravos africanos, mesmo submetidos a um processo de genocídio persistente durante quatro séculos, tornaram-se a maioria da população do Brasil, último país das Américas a abolir a escravidão. As mulheres vão às ruas dizer “meu corpo, minhas regras”, “nenhuma a menos”. Corpos rebelados contra o gênero determinado pela biologia desafiam as normas em manifesto encarnado. Os restos se insurgem, sublevam-se.
Os restos recusam-se a restar.
É essa rexistência que habita a frase brutal do jovem líder Bitaté ao seu avô, em O Território (Brasil, Dinamarca, Estados Unidos, 2022), documentário dirigido por Alex Pritz. É noite e eles estão na floresta-casa do povo originário Uru-eu-wau-wau, enclave de natureza cercado por invasores por todos os lados, encurralado por grandes grileiros, por posseiros desesperados, por pistoleiros e por bois, por concreto e por motosserras de Rondônia. Após serem tocados pelos brancos, nos anos 1980, dois terços dos Uru-eu-wau-wau foram exterminados. Varridos junto com a floresta, varridos como a floresta. Sobram pouco mais de duzentos. Bitaté então pergunta: “Vovô, você se preocupa que todo nosso povo possa desaparecer?” Essa é a conversa de família na guerra contra a natureza perpetrada pelos comedores de planeta.
Bitaté escolhe lutar. Se sua casa-floresta virar cinzas ou pasto, como tudo ao redor, é como afirma Ivaneide Bandeira, que se coloca ao lado dos indígenas na luta: “Uru-eu-wau-wau é uma barreira à destruição. Se rompida, acaba a Amazônia.” Por dizer e por fazer da sua palavra gesto, Neidinha é ameaçada de morte, foi tornada alvo, um corpo insurgente a ser destruído.É sobre isso, como dizem as novíssimas gerações, estas que entraram em pânico ao perceberem que os adultos seguem sentados, em estado de anestesia permanente, enquanto a casa-planeta pega fogo. Perceberam que os adultos foram tão coisificados pelas coisas que consomem que perderam o instinto mais básico entre os vivos, o da sobrevivência, perderam o que moveu milhões de anos de evolução e adaptação, perderam o que está presente no organismo mais primário. E então os jovens muito jovens, as crianças, ocuparam as ruas do mundo para gritar: “Eu quero que vocês sintam o mesmo pânico que eu sinto porque a casa está em chamas.”
É sobre isso. É sobre restos que se recusam a restar esta 11ª edição da Mostra Ecofalante de Cinema. Ativismo, o único gesto ético no momento-limite em que vivemos, é o tema que atravessa os cinco documentários em que as mulheres são protagonistas. Desde que perceberam que o corpo da natureza é o seu corpo, elas atuam e lideram a guerra mais longa e difícil de vencer: a guerra climática, a guerra movida pela minoria dominante contra a natureza e os povos-natureza. Nas palavras da Neidinha: “Estou cheia de vontade de fazer um monte de coisas, e a gente não tem tanto tempo. Mas, nesse pouco tempo que tenho, eu vou perturbar muita gente, ó... Tá louco. Coitados deles. Se eu viver mais 20 anos, pode ter certeza absoluta, serão 20 anos perturbando quem destrói a Amazônia.”
Há tantas formigas, mas só algumas delas conseguem carregar um gafanhoto, ensina Anita Chitaya. É essa, afinal, a definição de ativismo. Ativistas são formigas dispostas a carregar um gafanhoto, para que o devorador de mundos seja enfim devorado. Como formigas implacáveis, Meera e suas companheiras avançam com seus corpos dalits para barrar a construção de ruínas ao contar histórias que não eram contadas e, assim, fazer com que corpos que não contavam passem a contar.
Se basta 3,5% da população lutar ativamente por uma causa para existir um movimento efetivo de transformação, como mostram pesquisas realizadas nos Estados Unidos de Alexandria Ocasio-Cortez, é fácil concluir que as formigas dispostas a comer gafanhotos ainda são poucas demais. Fossem mais numerosas, o planeta não seguiria sendo devorado. As formigas, porém, estão se multiplicando. E aprenderam o que o pai de Vandana Shiva ensinou a ela na primeira vez em que foi ameaçada de morte: “Nenhum poder construído pelo homem é digno do seu medo.”
Eliane Brum é escritora, jornalista e documentarista. Autora de Brasil Construtor de Ruínas, um olhar sobre o país, de Lula a Bolsonaro e de Banzeiro òkòtó – uma viagem à Amazônia Centro do Mundo, além de outras sete obras. Vive em Altamira, na bacia do Xingu, na Amazônia.