“As crianças que morrem afogadas
no mar Mediterrâneo são filhas dos produtores rurais arruinados pela
concorrência dos produtos agrícolas europeus subsidiados”. O diagnóstico de
Bokah, animador de uma cooperativa leiteira do Senegal, não aponta, por certo,
a causa única da crise migratória que assola o norte da África desde o início
dos anos 2000. Sabemos que ela é movida também pelos conflitos pós-coloniais
alimentados pelos interesses das grandes potências nas terras e nas riquezas
minerais daquele continente. Mas essa explicação mostra-se muito pertinente, se
considerarmos as imagens e os depoimentos do conjunto de documentários da sessão
Economia da Ecofalante.
A Indústria do Leite
mostra como as grandes corporações leiteiras se apropriam dos ganhos de
produtividade da pecuária familiar europeia, maximizando seus próprios lucros
na comercialização dos excedentes. Recorrendo à estocagem em massa de leite em
pó, por exemplo, ao mesmo tempo que estressam o trabalho dos agricultores
europeus, estimulam, nos países periféricos, o consumo de laticínios
industrializados, eliminando qualquer possibilidade de concorrência por parte
da produção camponesa da África, Ásia e América Latina. O fato de a agricultura
europeia ser fortemente subsidiada para atingir ganhos de escala e
produtividade crescentes não resulta em ganhos para os produtores familiares
europeus, mas, sim, em maiores lucros para as grandes corporações. Em nome do
“imperativo de combater a fome e assegurar direitos humanos à alimentação no
mundo”, executivos das grandes corporações agroquímicas pressionam por
desregulações que permitam reduzir seus custos e elevar suas margens de lucro,
ao mesmo tempo em que desestruturam os padrões alimentares tradicionais
baseados no leite in natura nos
países importadores. Em uma cena antológica, uma promotora de produtos lácteos
pretende explicar os benfeitos das corporações agroalimentares pelo fato “de o
leite in natura conter ingredientes
que podem ser úteis para o crescimento de chifres em bezerros, mas não para os
seres humanos, enquanto outros ingredientes nutritivos faltam e são agregados
pela indústria”.
Em crítica a essa estratégia discursiva
empresarial, Os Despossuídos mostra como a dita “ineficiência” da
agricultura camponesa não é mais do que o resultado da aplicação –
etnocêntrica, diriam alguns – de um cálculo simplório que compara insumo e
produto em termos exclusivamente monetários, não considerando a produção social
da fertilidade do solo, da biodiversidade, da água limpa e dos demais recursos
ambientais de que necessita a produção de alimentos, como sempre ensinaram os
saberes tradicionais do mundo rural. “A agrologia foi esquecida”, declara Paul
Ecoffay, camponês suíço: “o solo é composto de 50 milhões de bactérias e 50
milhões de fungos”. Ao não se considerar sua complexidade, décadas depois da
chegada da agricultura químico-mecanizada trazida dos EUA para a Europa, “vemos
os sintomas do estrago”. Segundo Jadeep Hardika, jornalista indiano, “os
subsídios dos EUA ao algodão lançam no desespero os produtores da África e
Ásia. Dizem que os camponeses são ineficientes, mas são as grandes corporações
que recebem terras e isenções fiscais do Estado.” “O fundamentalismo de mercado”,
completa ele, “é o mais perigoso de todos, pois é o meio pelo qual serão
recrutadas pessoas para os demais fundamentalismos. As milhões de famílias de
produtores rurais que são desestruturadas alimentam as ondas de outros
fundamentalismos.” E, também, os fluxos
migratórios.
Eldorado, que documenta o resgate de
refugiados no Mediterrâneo, se constrói pelo contraponto entre o sofrimento
coletivo dos imigrantes clandestinos provenientes das antigas colônias europeias
na África e o sentimento individual de perda que marcou a vida do diretor suíço
Markus Imhoff. A proximidade com a experiência dramática destes “condenados da
terra” ativou a memória do diretor a respeito da morte de sua companheira de
infância, Giovanna, uma refugiada italiana acolhida por sua família no imediato
pós-guerra. Poderia o adoecimento de Giovanna ter sido evitado se ela tivesse
podido permanecer na Suíça em lugar de ser enviada de volta à Itália? Os laços
afetivos que o ligavam à menina não parecem, a Imhoff, em nada se manifestar
hoje no modo como os refugiados são acolhidos na Europa do liberalismo
econômico. É simples para um europeu ir da Europa para a África, pensa o
diretor, mas não há caminho legal dos imigrantes da África para a Europa. As
imagens que sua câmera registra deixam claro que, para os refugiados chegarem à
Europa, “têm que pagar caro e arriscar a vida”. E, quando sobrevivem a travessias incertas e perigosas, têm de
enfrentar as políticas restritivas, os acampamentos insalubres e as
dificuldades de legalizar suas situações de vida e trabalho. Ao buscarem um
lugar melhor, tentando deslocar-se no interior do continente, são parados por
guarda-fronteiras que lhes mostram pedagogicamente os marcos da fronteira entre
Estados que não os querem acolher: os refugiados percebem-se destinados a um
não-lugar, a um lugar nenhum. Sem documentos, resta-lhes o trabalho ilegal na
agricultura, sob o controle de máfias, e a prostituição. Os tomates plantados
na Itália com seu trabalho semi-escravo irão para o norte da Europa, mas também
para a África, onde certamente concorrerão com a produção local. Por vezes,
poderão mesmo ser comprados por consumidores africanos com o próprio dinheiro
que os imigrantes enviam para suas famílias.
Mas, mesmo
quando alguns aceitam receber dinheiro para voltar a seus países de origem, o
cerco parece se fechar. No mesmo momento em que o camponês Ba Yero era
reencaminhado ao Senegal com a intenção de aplicar na compra de duas vacas o
dinheiro que lhe foi entregue pelo governo suíço em troca de seu retorno ao
país de origem, um novo acordo comercial estava sendo assinado entre a Europa e
a África Ocidental. Os impostos de importação sobre o leite europeu foram então
eliminados para facilitar o escoamento do excedente leiteiro da Europa e o
leite importado ficou mais barato do que aquele que seria obtido das vacas do
camponês retornado. É assim que as conexões locais das políticas globais em
favor das grandes corporações ameaçam dramaticamente a sobrevivência do campesinato
das economias periféricas.
Como
explicita Golpe Corporativo, para o caso dos EUA, as transformações na
esfera política que se seguiram à implantação das reformas neoliberais
configuraram aquilo que o escritor canadense John Rolston Saul chamou de um
“golpe de Estado em câmara lenta”, fazendo com que elites não-democráticas
passem a ocupar a máquina pública. Como sustentara este autor, em 1995, em seu
livro The Unconscious Civilization, ao
longo de poucas décadas cresceu o poder das grandes corporações, levando a que
a sociedade fosse sendo cada vez mais governada segundo as prioridades do mundo
empresarial. Seguindo a linha do escritor George Orwell, Rolston sustenta que a
linguagem é o campo de ação do crescente poder das corporações, dado o emprego
de uma sintaxe e de expressões que ocultam e afastam as pessoas de uma
percepção mais aguda da realidade. A retórica e a propaganda “normalizam a
inverdade”, podendo fazer coexistir o poder das corporações com regimes
não-democráticos. As coalizões de poder esforçam-se em convencer as pessoas de
que o sistema democrático seria um simples subproduto do livre mercado.
Enquanto isso, parques industriais são destruídos, tornando-se “zonas de
sacrifício”, atravessadas por enormes viadutos do alto dos quais as áreas e as
pessoas abandonadas não são mais visíveis. O projeto democrático, na
perspectiva dos mais despossuídos, beneficiou até aqui apenas as elites, ainda
que a globalização tenha sido apresentada como boa também para os
trabalhadores. Firmas transnacionais tornaram-se, assim, as verdadeiras nações
de hoje. Em se falando de cinema, uma tal substituição da nação pela corporação
nos faz lembrar a cena do filme Forrest
Gump, de enorme difusão, em que o personagem central, portador de
“deficiência”, carregava, em marcha acelerada, as marcas-símbolo das grandes
corporações norte-americanas em uma competição metafórica pela superioridade
daquelas empresas e em testemunho de um “patriotismo empresarial”
implicitamente enaltecido pelos próprios promotores do filme.
Um momento marcante dessa
“virada empresarial” foi, nos EUA, a formulação do Memorando Powell, em 1971.
Segundo esse antigo advogado da indústria do tabaco, conhecido por enfrentar as
crescentes evidências científicas sobre os males à saúde causados pelo fumo,
não se deveria ter “a menor hesitação em pressionar vigorosamente as arenas
políticas para apoiar o sistema empresarial”. O estímulo à difusão de uma
filantropia conservadora levou, assim, à criação de think tanks de direita que buscaram alcançar crescente influência
no discurso político, na mídia e nas universidades.
Um
mundo político tornado “burlesco” se instala com Trump: corte de impostos
requerido pelas firmas, aumento do orçamento militar, esvaziamento das agências
ambientais, judiciário crescentemente amistoso com relação às corporações. Ou
seja, um sistema em que os cidadãos não são mais a fonte de legitimidade, mas,
sim, os interesses de grandes grupos econômicos privados que configuram uma
democracia representativa das corporações.
Sintoma
da crise democrática é o fato de que um governante autoritário como Trump pôde
receber apoio das próprias vítimas da globalização, que se sentiram traídas
pelas promessas incumpridas do sonho americano. Ao lado da euforia das elites,
jazem as áreas abandonadas, com sem-tetos, bens públicos degradados e
devastação ambiental, num encontro entre coisas fora do lugar e homens fora do
lugar. Menos fábricas e mais prisões. Em nome da primazia do mercado,
reduziram-se os impostos, enquanto os acordos de livre comércio favoreceram a
saída de indústrias para países com menores salários. Corporações se
beneficiaram com o livre-comércio, mas o povo ficou sem trabalho, aumentando a
distância entre ricos e pobres. Enquanto parte do eleitorado de baixa renda de
áreas economicamente deprimidas transferiu seu apoio para a direita, em nome da
criação de empregos, governantes diminuíram os direitos e a proteção do bem
público. Tanto Trump como seus seguidores em outros países repetem a mesma
ameaça: “a proteção ao meio ambiente destrói empregos”. Os agentes fortes no
mercado conseguiram, assim, um poder suplementar para dividir os despossuídos:
as ameaças de fechamento de fábricas tornaram-se uma tática eficaz nas
estratégias empresariais de dividir os trabalhadores.
Mas a força das empresas é
também empregada para ganhar mercados, tendo por base estratégias de
modernização ecológica. Segundo A Mentira Verde, há uma tendência
a que uma maquiagem verde do capitalismo venha a enganar os consumidores. Não
basta, segundo seu diretor, agir através das escolhas individuais de consumo
para mudar o padrão ambiental do capitalismo. É que alguns produtos ditos
ambientalmente benignos, como o óleo de palma, embora apresentados com uma
roupagem ambientalizada, são produzidos através do desmatamento e de queimadas
em países distantes dos centros consumidores. Além de assumir um distanciamento
crítico em relação à grande produção de mercadorias “esverdeadas”, o
documentário questiona, junto com o professor Patel, da Universidade do Texas, as
razões pelas quais se deveria achar que a solução virá por nossas escolhas
individuais: “por que temos que escolher entre um café produzido com trabalho
escravo e um café correto?”. É pela organização da sociedade e pela mudança das
leis, respondem eles, que serão alcançadas mudanças, que surgirão através de
conflitos e da eliminação de privilégios. Isso não exclui, poderíamos
acrescentar, que aqueles que decidam politizar seus atos de consumo –
notadamente através de uma dinâmica coletiva – também venham a dar sua
contribuição, induzindo mudanças.
Ainda no campo da ação pelo
consumo, Superalimentos procura investigar como funciona a cadeia
produtiva dos superalimentos – aqueles que a mídia difunde como bons para a
nutrição humana, como a quinoa e o teff, alimentos típicos da tradição rural da
Bolívia e da Etiópia, respectivamente. Qual é o impacto que a difusão de seu
consumo gera sobre os produtores familiares que os cultivam há séculos? O
documentário mostra que quando se forma um mercado consumidor para esses
produtos, as grandes corporações começam a produzi-los, fazendo com que seus
preços de mercado caiam. Isso implica em eliminar do mercado a produção em
pequena escala de origem tradicional: a vida dos camponeses “vira de cabeça
para baixo” – dizem seus representantes – em razão dos preços internacionais,
que não são mais capazes de cobrir os custos de produção. Quando não são
inviabilizados por preços que não os remuneram, os produtores se verão
ameaçados por pressões fundiárias dos grandes proprietários, como no caso do
coco na Tailândia, ou da sobrepesca comercial, no caso do salmão canadense.
Para ir além da mera ação pelo
consumo, os diretores de Utopia Revisitada sustentam a
necessidade de se quebrar o anonimato na relação produção-consumo e encontrar
formas de organização do consumo que deem segurança aos pequenos agricultores,
liberando-os das incertezas dos preços internacionais. Essa estratégia orientou
a experiência de cooperativas da Coréia do Sul, em que produtores e
consumidores, em assembleias conjuntas, decidem sobre a produção e a
distribuição, de modo a substituir o lucro monetário por um ganho de qualidade
compartilhado por todos. A mudança no modelo de desenvolvimento, para ativistas
do comércio justo, significa não só economizar recursos naturais, mas promover
justiça global, construindo-se novas relações sociais e enfrentando os desafios
de combater o consumismo e a obsolescência programada. A experiência de
autogestão de uma fábrica ocupada por seus trabalhadores na França é exemplo da
possibilidade de se mudar, ao mesmo tempo, a relação entre os trabalhadores e a
relação deles com o produto e com as comunidades próximas. Emblema dessa lógica
social é a nova imagem da marca da empresa, expressa pelo número de dias que os
trabalhadores precisaram lutar para manter a fábrica aberta.
Nos distintos documentários, vários
testemunhos sustentam que a crise ambiental é uma crise estrutural do
capitalismo, que faz naufragar os mais despossuídos e, ao mesmo tempo, corrói
as próprias bases ecológicas de sua reprodução. Fica em suspenso, porém, o modo
como se dará a transição para outro modelo de sociedade. Alguns se perguntam
sobre como mudar comportamentos e encontrar formas de ação a partir de sua
condição de cidadão e de consumidor. Outros consideram que se trata de uma
questão de organização e de ação coletivas sobre o plano das políticas que
modelam as leis e a ordem econômica global. O desafio maior que se coloca para
todos é o de dar efetividade à ação política, quando a própria forma democrática
encontra-se em crise, sob o ataque de coalizões de interesses que se apoiam no
poder do dinheiro e em mecanismos de degradação da palavra, através dos quais,
nos termos de Rolston Saul, alguns buscam “normalizar inverdades”.