Além do polegar opositor,
da posição bípede e do poder de raciocínio, o ser humano se distingue dos
outros animais por uma capacidade única de criar maneiras de se autodestruir. É
impressionante a quantidade de vezes que as mais variadas ameaças afetaram a
vida de milhões de pessoas, muitas delas inocentes e sem nenhuma capacidade de
defesa. Exemplos não faltam: guerras, epidemias ou o simples descaso das
autoridades com as políticas públicas aparecem todos os dias nos noticiários de
jornais, nos programas de TV e nos portais da internet.
Essa gana maluca de
extinção é um dos fios que une os cinco documentários do eixo temático Saúde da 8ª
Mostra Ecofalante de Cinema Ambiental. Ao mostrar realidades
assustadoras e quase distópicas, as obras audiovisuais selecionadas suscitam
diversos estágios de indignação e mostram como todos somos vulneráveis a
diversos eventos e fenômenos que podem simplesmente aparecer em nossas vidas e
mudá-las para sempre.
O longa-metragem Vizinhança
Radioativa, dirigido por Rebecca Cammisa, acompanha o drama dos
moradores da cidade de Saint Louis, no estado americano do Missouri. Durante os
anos 1940 e 1950, o município foi palco do enriquecimento e do processamento de
urânio, substância química utilizada para a produção das bombas atômicas que
deram fim à Segunda Guerra Mundial e ditaram o ritmo de temor durante a Guerra
Fria nas décadas seguintes.
O problema é que boa
parte dos dejetos que sobraram dessa corrida armamentista foram simplesmente
largados em grandes bolsões subterrâneos. Com o passar do tempo e a ação da
natureza, esses produtos altamente danosos à saúde caíram num rio, que passa
pela região e impregnou a terra de parques públicos. Como se não bastasse, o
principal depósito desse lixo tóxico começou a apresentar um comportamento
estranho: o aparecimento de grandes rachaduras na terra e o escape de urânio,
rádio e outros elementos para a atmosfera.
Em paralelo, os moradores
passaram a estranhar o aumento do número de casos de doenças relacionadas à
radioatividade, especialmente alguns tipos de câncer. Alarmadas, algumas
mulheres fundaram um movimento popular que cobra ações concretas do governo para
estancar essa sangria. Nomeado de Just Moms[1], o grupo é o grande foco do
documentário, que registra as reuniões e os protestos. No meio do caminho,
chama a atenção o drama diário de cada uma das mães e esposas, preocupadas com
o bem-estar de seus filhos e de suas famílias, enquanto tentam sensibilizar
burocratas e especialistas capazes de implementar alguma solução.
A bomba atômica também
dita o ritmo de Soldados Atômicos, de Morgan Knibbe. O curta-metragem dá voz
aos soldados sobreviventes dos testes com armas nucleares a partir da segunda
metade do século XX. Durante anos, eles foram proibidos de falar sobre a
experiência aterrorizante pela qual passaram ao lado de mais de 14 mil recrutas
treinados pelas forças armadas americanas. Infelizmente, poucos sobreviveram
até hoje para finalmente compartilhar seus relatos. Esses homens recebiam
orientações de se protegerem em campo aberto, com as mínimas condições,
enquanto bombas atômicas eram detonadas nas redondezas. Eles eram feitos de
cobaias e sentiram na pele e na mente as reações terríveis dessas experiências
desumanas. Aqueles que não sumiram ou morreram quase que num passe de mágica
tiveram que levar daí em diante uma vida de sofrimento físico e psíquico.
Durante a entrevista,
vários não aguentam e vão às lágrimas diante das câmeras. Outros seguem
tentando responsabilizar o governo pelo fato de terem desenvolvido doenças,
como o câncer, por causa da radiação. Será que algum dia esses danos serão
reparados e essas pessoas verão a justiça? Eis a dúvida indignada que fica
enquanto assistimos atônitos aos créditos do filme.
Mas é importante
mencionar o fato de que a ganância e a vilania não estão restritas às
instâncias do poder público. Muitas empresas colocam o lucro à frente do
bem-estar e da saúde de seus clientes. Essa é a conclusão que podemos tirar do
longa-metragem Operação Enganosa, de Kirby Dick. Ao contrário dos remédios,
que passam por uma avaliação criteriosa antes de sua aprovação, muitos dos
dispositivos médicos são liberados para a comercialização sem a exigência de
estudos com seres humanos. Aparelhos como próteses, robôs cirurgiões,
marcapassos e métodos contraceptivos de longa duração chegam ao mercado com o
aval da Food and Drug Administration
(FDA), a agência regulatória americana equivalente à ANVISA brasileira, sem nenhum teste que comprove a sua
segurança e eficácia.
O grande perigo é que
muitas dessas novidades, vendidas como disruptivas e revolucionárias, provocam
as mais severas reações quando inseridas no organismo dos pacientes. O caso
mais emblemático de todos é o Essure,
um pequeno dispositivo de metal que impede a gravidez e ajudaria a fazer um
planejamento familiar mais seguro e duradouro. Fabricado por uma gigante
farmacêutica, ele era implantado nas trompas das mulheres por meio de um
procedimento minimamente invasivo feito no próprio consultório do ginecologista
em menos de 45 minutos.
Parece simples e prático,
não? Pois a história mostrou justamente o contrário: milhares de mulheres
sofreram complicações após seu uso e convivem hoje com dores fortes e
incapacitantes. O filme segue a sua luta para proibir a venda do Essure e todas as barreiras que
encontram no meio do caminho — incluindo o lobby das empresas e a falta de
interesse das autoridades em ouvir e atender as demandas da população.
Se, como vimos nas três
produções mencionadas anteriormente, a situação é caótica diante de problemas
previsíveis e evitáveis, o que esperar quando o alarme soa do nada, sem que
ninguém esperasse uma emergência tão grave? Pois este é o retrato de Sobreviventes,
de Arthur Pratt, uma abordagem nua e crua sobre o ebola, uma doença grave
provocada por um vírus que causa hemorragias intensas, falência de órgãos e
morte. Apesar de serem registrados surtos da enfermidade desde os anos 1970, a
epidemia que assolou Libéria, Serra Leoa e Guiné-Conacri a partir de 2014
deixou o mundo todo assustado por sua velocidade e mortalidade — em pouco
tempo, foram registrados mais de 4.200 casos, com 2.200 óbitos.
O longa-metragem coloca o
trabalho de enfermeiras e motoristas de ambulância em contraponto à própria
experiência de Arthur Pratt, aterrorizado diante da ameaça invisível que coloca
em risco a vida de sua própria mulher, grávida do primeiro filho do casal. Ao
longo das cenas, fica clara a falta de uma estrutura básica de saúde capaz de
dar conta de tantos casos. Campanhas de saúde veiculadas em rádio, televisão e
outdoors tentam orientar a população para adotar medidas básicas de higiene e de
cuidados com o corpo daqueles indivíduos que acabaram de morrer em decorrência
da infecção.
No meio de todo o
alvoroço, a história de Mohamed Bangura é a que mais sensibiliza o público:
motorista de ambulância, ele flerta com o ebola desde o início da epidemia e
faz tudo que está ao seu alcance para transportar os pacientes até a unidade de
saúde mais próxima — nem que para isso seja necessário subir o morro e trazer o
doente nas costas. Admirado por seus colegas de trabalho, Bangura é vítima de
seu próprio heroísmo e vira o epicentro de um conflito entre os profissionais
de Serra Leoa e os especialistas estrangeiros, que vieram para ajudar e muitas
vezes acabam desrespeitando hierarquias e costumes locais.
A emergência do ebola
pode aprender significativamente de outra epidemia que assolou o planeta num
passado recente: a AIDS, provocada pelo vírus HIV. Quando os primeiros casos
começaram a ser relatados, entre o final da década de 1970 e o início de 1980,
a doença foi caracterizada pejorativamente de “peste gay”, pois a maioria dos
acometidos eram homens que faziam sexo com outros homens. Durante muito tempo,
a moléstia esteve atrelada somente a esse perfil e ignoraram-se outros grupos
que também eram profundamente afetados pela condição, especialmente as
mulheres.
O média-metragem Mulheres contra a AIDS, de Harriet Hirshorn,
faz uma justa homenagem às ativistas que, desde o início, lutaram para que as
mesmas condições de tratamento da AIDS fossem oferecidas à parcela feminina acometida
pelo vírus. Parece surreal, mas, por longos anos, os remédios e toda a rede de
cuidados e assistência só eram oferecidos aos homens infectados. A
justificativa (absurda) era de que os estudos iniciais haviam sido feitos com
eles.
A obra viaja por diversos
pontos do planeta — de Burundi e Nigéria ao extremo sul dos Estados Unidos — e
conta a história de diversas mulheres HIV positivo que fizeram diferença na
sociedade. Graças ao esforço delas, muitas coisas foram modificadas para melhor
e ajudaram a salvar milhares de vidas. Porém, isso não significa que o trabalho
está concluído: a taxa de infecção vem aumentando no público feminino. Para ter
ideia, elas atualmente já representam 51% dos casos em determinadas regiões do
globo.
Como todos os
documentários selecionados nos provam, a lista de ameaças à saúde é vasta e
precisamos ficar atentos o tempo todo para que nossos direitos mais básicos não
sejam atacados e violados. Mais do que apenas nos alarmar e deixar paranoicos,
os cinco filmes são fontes de inspiração: por mais que esses perigos existam e
estejam à nossa porta, nós temos o poder de lutar contra eles.
Ora, se o ebola afetou (e
afeta) muita gente na África, aqui no Brasil temos dengue, zika, chikungunya e
febre amarela em plena expansão — e isso sem mencionar o HIV, que segue em alta
em todos os continentes. Se os americanos ainda sofrem com os desdobramentos
dos projetos de bombas atômicas, em nosso país tivemos o acidente com o
Césio-137 na cidade de Goiânia em 1987. Por fim, muitas das empresas que vendem
dispositivos médicos nos Estados Unidos também atuam livremente por aqui.
O que podemos aprender e
modificar por meio das experiências internacionais e, claro, de nossa própria
vivência? Resta a nós arregaçarmos as mangas, sairmos às ruas e cobrarmos as
autoridades por políticas públicas mais rápidas e efetivas. Um viva ao cinema como
uma das mais poderosas ferramentas de reflexão e aprimoramento da sociedade!
[1] O nome do movimento, em inglês, traz um jogo de
palavras, uma vez que “just” pode querer dizer tanto “apenas” (Apenas Mães) quanto "justas” (Mães Justas).