O escritor
polonês naturalizado britânico Joseph Conrad tinha 32 anos quando subiu o rio
Congo e conheceu a degradação humana diante da exploração do marfim. A experiência
o levou a escrever “Coração das Trevas”, o livro que, por sua vez, inspirou
“Apocalypse Now”, de Francis Ford Coppola. Ao narrar o que viu no Congo de
Conrad ou no Vietnã de Coppola, Kurtz, o enigmático personagem de ambas as
obras, expressa o que se aplicaria também ao epicentro do documentário Bem-Vindos
a Sodoma, um lixão de equipamentos eletrônicos erguido sobre uma fétida
lagoa em Gana: “O horror! O horror!”.
Agbogloshie
encarna essa forma contemporânea de horror. O nome difícil do maior depósito de
restos de eletrônicos do mundo torna-se inesquecível para quem vê e escuta o
que está retratado na produção austríaca Bem-Vindos a Sodoma, um dos filmes
mais impactantes do eixo temático Povos
& Lugares da 8ª Mostra Ecofalante. Fica a noroeste de Accra, a capital
de Gana. Em seu terreno cinzento, o solo está contaminado, o ar também, e a
água é vetor de cólera. Mosquitos transmitem malária. Pessoas dormem, cozinham,
rezam e carregam bebês em ambiente envenenado. Bem-vindos a Sodoma.
Imagina-se que
ali vivam seis mil homens, mulheres e crianças, que se organizaram para catar
metais no chão cinza, desmontar tudo o que funcionou algum dia, comer guisados
cozidos ao lado de pilhas de pneus velhos, respirar fumaça de cabos queimados,
erguer montanhas de monitores e ver a vida passar ao lado de latões, maçaricos
e urubus. De vez em quando aparecem uns boizinhos magros de chifres pontudos,
que não se sabe a quem pertençam e por que circulam em um lugar assim. Um
celular que ainda funciona faz com que jovens do lixão acessem a vida dos
outros pelas imagens de desconhecidos que vão à praia, têm flores em casa,
passeiam com seus cachorros e tiram fotos coloridas. Agbogloshie tem chão
cinza, lagoa cinza, céu cinza. A única cor que sobressai é a dos restos de
plásticos azuis esmagados no chão. É um pedaço do inferno.
Na última
reunião do Fórum Econômico Mundial, em Davos, agências das Nações Unidas
soltaram um relatório no qual se diz que a produção anual de lixo eletrônico
chega a 50 milhões de toneladas e apenas 20% disso é reciclado. O consumo e o
descarte de itens, que vão desde painéis solares a celulares inteligentes, se
dá hoje em escala sem precedentes.
Alguns têm mais
responsabilidade do que outros sobre o insensato volume de lixo que soterra um
pedaço de Gana. Em 2017, consumidores de países de alta renda usaram em média dez
toneladas de materiais primários que foram extraídos em outros lugares. O mundo
industrializado explora recursos, produz a partir deles, usufrui dos bens e se
desfaz de itens, que, por sua vez, são incinerados ou levados às escondidas a
cantos mais pobres do planeta.
No lixo,
memórias e desejos surgem em camadas. “Isto é a África. Temos que ser como
leões” é o grito de resistência de um dos que vive das sobras do excesso de
outros. Geladeiras, computadores, monitores e televisões voltam a ser alumínio,
cobre e zinco. “Na Europa, quando algo quebra, jogam fora. Nós somos os
melhores recicladores. Eles deveriam mandar mais”, diz um personagem.
Agbogbloshie é o
lado sombrio da economia circular que ainda engatinha. O uso intensivo dos
recursos está colocado de forma indireta nas várias narrativas de Bem-Vindos
a Sodoma. A produção e o consumo insustentáveis, que colocam o planeta
em risco, são o desconforto do documentário onde não há sangue nem violência
explícita. O modo de vida daquelas pessoas é o que assombra. São protagonistas
de um extrativismo sem natureza, de separar o sujo do enferrujado. Mas também,
de surpreender ao transformar o descarte em arte, em poesia, em música e em
alegria.
O senso de
felicidade coletiva transborda em vários momentos da produção indiana Pra
Cima, pra Baixo e pros Lados: Cantos de Trabalho. Somos transportados
para algum lugar na fronteira da Índia com Mianmar, no estado de Nagaland. Phek
é um vilarejo onde vivem 5.000 pessoas que plantam arroz para o próprio
consumo. Seria igual a muitos outros, se os Naga não cantassem o tempo todo.
Cantam quando os homens preparam os terraços para o cultivo, quando as mulheres
sobem para as roças, quando usam a enxada, quando levam a produção em grandes
cestos. Cantam quando chove, cantam quando estão irritados.
É um canto muito
particular, o “li”. Não funciona em solos, mas como uma conversa de várias
vozes que falam de amores e saudade, de amizade, trabalho e da morte. Há um
esforço comunitário em não perder a tradição e não esquecer as canções, em não
submergir à força da igreja que ergueu um templo gigante no centro do humilde
vilarejo. Pra Cima, pra Baixo e pros Lados: Cantos de Trabalho é poético
até nas falas dos velhos que recordam o longo conflito com a Índia:
“Fomos buscar lugares onde fantasmas e tigres se escondem. Estávamos com
medo dos seres humanos”, conta um deles. A luta pela independência Naga marca
um dos mais longos confrontos armados existentes. O exército indiano continua
presente na região.
O desequilíbrio
de forças no mundo, a desigualdade de renda, a concentração de poder e de
informação afeta povos em muitos lugares. Na Polinésia Francesa, 30 anos de
testes nucleares franceses fracionaram a existência dos Ma’ohi, como bem
descreve a sinopse de Ma’Ohi Nui. As cenas idílicas do
início da produção belga são interrompidas bruscamente por uma aterradora
explosão atômica no oceano. “Fomos levados em barco”, conta um ma’ohi, “Olhamos
para trás antes de sair do atol. Foram momentos sem palavras”.
A radiação que
degradou a vida no atol Moruroa persistirá por um tempo desconhecido, além de
esgarçar a vida da comunidade. “A explosão no Pacífico trouxe a palavra contaminação para a nossa língua”, conta
um deles. Foram 193 testes nucleares na Polinésia, de 1966 a 1996. A frágil
economia local foi inundada pela hegemonia francesa. De uma hora para outra,
comunidades começaram a ganhar em uma semana o que faziam em três meses. “O
dinheiro comprou o silêncio. Fechamos nossos olhos, nossos ouvidos”, conta
outro.
A interferência
tóxica na vida ma’ohi teve outras dimensões. Ao deixar de pescar e de plantar,
destruiu-se a maneira ancestral de subsistência, o jeito de subir nos
coqueiros, a espera pela lua cheia para plantar bananeiras. Hoje, gente carente
constrói casas de noite, clandestinamente, para acrescentar mais um casebre
acanhado num corredor de palafitas bem ao lado da pista de um aeroporto
internacional.
O resgate das
lendas, da língua, de lançar-se novamente ao mar e do retorno ao campo sugere
algum alento neste contexto. O pensamento ma’ohi está contido na linda
descrição do que pode representar uma tatuagem: “Na tua pele você escreve a
história do teu nome, a história dos teus ancestrais. A história da tua terra.
Na tua pele você escreve teus ritos de passagem. E os momentos que marcaram a tua
vida. Na tua pele, você traça os sinais que te protegem contra forças
invisíveis. E você desenha os caminhos que te ajudam a atravessar o oceano.”.
A resistência
aos anos de colonização aparece em momentos simples, quando velhos acendem
cigarros e mostram aos mais jovens como se amarram anzóis, e eles escutam. Há
alguma mágica nesses costumes.
Encontramos a
mesma delicadeza no retrato das memórias da japonesa que sobreviveu à bomba de
Hiroshima em Obon, palavra que remete ao ritual budista de cultuar
antepassados. Na animação alemã, Akiko Takakura relembra a infância com o pai
rígido e a mãe, “para quem era importante perdoar os outros”. O traçado simples
dos desenhos movimenta as lembranças da protagonista enquanto ouvimos sua voz.
É o bastante para comover. Durante um diálogo banal, o ritmo da vida se corta e
se transforma, e nada mais é como antes.
Um desastre
também muda para sempre o cotidiano de uma aldeia nas montanhas do norte do
Paquistão. A comunidade sofre com o deslizamento de terra que bloqueou o rio e
inundou casas e plantações. A Ausência dos Damascos é
contaminado pela melancolia do que se perdeu e de quem retoma a vida como pode.
Em contraponto, em O Botanista, um botânico autodidata que conhece mais de 300
plantas e vive com a família no montanhoso Tajiquistão cria a partir do nada. É
da mente engenhosa desse homem das cordilheiras do Pamir que surge uma pequena
hidrelétrica ou uma engenhoca para fazer fogo num lugar onde não existem
fósforos. O talento de criar com poucos recursos faz de Raïnberdi um daqueles
seres humanos excepcionais que encontram (ou inventam) saídas na crise.
O fio condutor
da seleção de Povos & Lugares
aponta para a diversidade e também para as convergências entre comunidades
remotas. A dança coletiva dos Naga na Índia lembra a de povos indígenas do
Xingu, no Brasil. O consumo insensato provoca náuseas ao espectador confrontado
com o desperdício ao ver o lixo depositado em Gana, mas é a culpa que
estabelece a conexão. Em cada documentário, o que vem de dentro é o que
individualiza os povos e se manifesta em cantos, desenhos e danças.
Não se conta fim de filme, mas um deles termina com a corrida de um
jovem para a frente da lente. A voz muda dos excluídos carrega muitas
intensidades – em sua expressão há desespero, revolta, ameaça e talvez também
alívio, esperança e força. A cena é perturbadora porque não é ficção. Está
acontecendo neste momento, em algum canto do mundo.