Em seu magistral livro Orientalismo: o Oriente como invenção do
Ocidente, Edward
Said mostrou como, no âmbito do colonialismo europeu e, posteriormente, do
imperialismo norte-americano e ocidental em geral, o conceito de “Oriente”, tal
qual o conhecemos, foi uma longa e cuidadosa invenção do próprio Ocidente. Diz
o autor: “O Oriente é uma parte
integrante da civilização e da cultura material europeia (...) o lugar das
maiores, mais ricas e mais antigas colônias europeias, a fonte de suas
civilizações e línguas”, que “ajudou a definir a Europa (ou o Ocidente) com sua
imagem, ideia, personalidade, experiência contrastantes”. Porém, isso
não parece estar assimilado nas relações de poder, passadas e presentes, entre
Ocidente e Oriente, marcadas por dominação e violência. Para Said, o
“Orientalismo” criado pelo Ocidente sem a participação dos interessados ajudou
a estabelecer, na consciência ocidental, uma representação cultural e
ideológica do Oriente extremamente útil para, na história moderna, justificar e
consolidar tal dominação.
É certo que nós, na América Latina, aqui mais a oeste (ou ao sul, em
relação aos EUA), tivemos e ainda temos também nossa dose de dominação. Sem que
tenha havido, talvez, um “sul-americanismo” tão claramente definido, uma
constelação de autores, como Eduardo Galeano, Aníbal Quijano ou Florestan
Fernandes, para citar apenas três dentre tantos, brilharam ao apontar os
efeitos quase indeléveis do colonialismo cultural eurocêntrico e
norte-americano. Justamente por isso, talvez, tenhamos a tendência de olhar e
imaginar o Oriente nos moldes do que nos trouxe o “Orientalismo”. Na era do
consumo globalizado, liderado pela China como última fronteira da produção
industrial “com baixos salários”, o
Oriente parece cada vez mais próximo, mas ainda se perfila na nossa consciência
coletiva – bem ao sabor do “Orientalismo” de Said – como um mundo desconhecido
e cheio de mistérios.
Pelo menos no que diz respeito à temática das Cidades, a Mostra
Ecofalante tem sido profícua para romper esse isolamento. Ao trazer
reiteradamente filmes de cineastas “orientais”, ou que têm como objeto o urbano
no Oriente, a Mostra nos ajuda a decifrar os seus mistérios. E, na verdade,
chegamos à conclusão de que, apesar de todas as diferenças, as dinâmicas de
produção do espaço são muito semelhantes mundo afora, todas com o mesmo traço
dominante: o da exclusão, da segregação espacial e da violência do capital na
transformação das cidades em lucrativas mercadorias. No ano passado, tivemos
retratos de Camboja, Coréia, Líbano, Indonésia, China. Neste ano, passeamos
pela Turquia, Índia, pela distante Mongólia, Japão, Coreia e China, para
terminar aqui mais perto, no norte dos Estados-Unidos. Curiosamente, todos os
filmes, ou quase, fazem um diálogo mais ou menos direto entre o passado e o
presente.
Retrato Chinês, de Xiaoshuai
Wang , um documentário
silencioso, é uma janela aberta para a China, que nos leva da nossa sala
diretamente à alma tão diversa e complexa daquele gigante asiático. Passado e
presente convergem, neste caso, para compor retratos em cenas nunca menores do
que um minuto, que mesclam cenários os mais diversos, de altos-fornos em
efervescência a bucólicas plantações de arroz, de informatizadas torres de
controle de siderúrgicas a crianças de alguma escola em um frio e seco rincão
da China rural. Funcionários de empresas em poses coletivas, passageiros sendo
levados em algum trem a algum lugar, camponeses colhendo batatas em paisagens
de uma natureza incrível, cavalos, ovelhas, stands de vendas de torres
iluminadas, cenas domésticas de veraneio na praia, transeuntes fazendo rezas
taoistas na rua de algum vilarejo nas montanhas e obras, obras e mais obras. São
inúmeras fotografias não estáticas, que revelam sempre algum detalhe a mais,
sem que nunca se saiba onde é, exceto que é na China, e que ela não para. Assim,
é a imensidão, a diversidade e o crescimento intenso daquele país que se revelam
justamente nessa indefinição de cenas e lugares justapostos. Instiga a pose
imóvel dos personagens em muitas cenas, transmitindo desde um orgulho seguro à
inquietação, da resignação à disciplina do ato de posar. Um retrato de um país
que emerge na liderança econômica e industrial mundial apesar, ou melhor,
graças à exploração de sua gigantesca reserva de recursos humanos e naturais.
Mais do que nunca, o “moderno que se alimenta do atraso”, como nos mostrou
Chico de Oliveira, para desvendar a nossa própria formação nacional, mostra-se na
China em sua lógica implacável.
Uma narrativa também do Oriente, e também incomum, é a marca de Sonhos da Velha Delhi, de
Anamika Haksar, filme que retrata, em uma espécie de surrealismo fantasioso, que
se dá no limiar entre sonhos e realidade, as inquietações individuais dos
moradores de Shahjahanabad, ou Old Delhi, bairro pobre e movimentado no
coração de Nova Deli, a gigante de mais de vinte milhões de habitantes. Mais
uma vez, modernidade e atraso se mesclam no retrato da vida e dos sonhos de um
batedor de carteira, também trompetista, de vendedores ambulantes, carregadores
e trabalhadores de toda ordem. O “Orientalismo” aparece aqui na figura do
“exotismo” da pobreza mesclada às tradições culturais, vendido como atração
pelo batedor de carteira reconvertido em guia turístico para visitantes não só
ocidentais, mas também da própria Índia e Nova Déli. Mais uma vez se mostra
como o passado e o presente, tanto pelo lado da tensão entre atraso e
modernidade como também entre tradição e cultura globalizada se cotejam, no
capitalismo moderno, em qualquer lugar do mundo, através da história do irmão
espancado na prisão, da criança que caiu no poço, mas também das riquezas da
vida simples nos grotões urbanos, dependente da economia da informalidade e da
subsistência que, aliás, irá também aparecer em outro filme, sobre Istambul, na
Turquia. Tudo isso, entremeado de sonhos que mais revelam inquietações, de
choques culturais como o convívio natural com a morte nas ruas, mas também de
um certo humor ácido, forma os ingredientes deste surpreendente retrato urbano da
Índia atual.
Apesar do estilo diametralmente oposto, há muita similaridade entre
esse filme e Ecos de Istambul,
de Giulia Frati. Este, um documentário mais clássico, mas que retrata de forma
quase poética o papel cultural dos vendedores ambulantes de Istambul como
mantenedores de velhas tradições e verdadeiros costureiros do tecido social
urbano. Vítimas primeiras das ações de remoções violentas por parte do mercado
imobiliário associado às “políticas públicas” de renovação urbana, alvos reiterados
das ações violentas da polícia persecutória do comércio informal, portadora de
uma “ordem” ditada pela economia formal e pelos poderosos, que enxergam na
“limpeza urbana e social” um sinal de modernidade, os vendedores ambulantes –
que oferecem desde mexilhões recheados (que dão água na boca) a bagels
típicos frescos ou mesmo colchas e almofadas de algodão – são mostrados com
enorme ternura. A cidade popular, que lembra o cenário popular de Old Deli,
é acordada pela sinfonia dos cantos dos vendedores arengando para sua
clientela, cujas técnicas guturais tradicionais são passadas de pai para filho.
O filme trata, na verdade, da fantástica resiliência desses cidadãos que moram
onde trabalham e trabalham onde moram e, por isso, são diretamente afetados
pelas dinâmicas cruéis de expulsão no capitalismo urbano, sempre associadas ao
“legítimo” poder do Estado. Ao ter que sair de suas casas pela pressão do
mercado imobiliário e da força policial, são também privados de seu trabalho e
de sua sobrevida, ao mesmo tempo em que tradições são extintas. A cidade do
folclore, da história, dos mercados, dos hábitos locais é sumariamente substituída
pela urbe moderna e estéril, globalizada e “moderna”. Tempos passados e
presentes mais uma vez se misturam, em um retrato que, para quebrar de vez com
o “Orientalismo”, poderia ser filmado, quase que sem diferenças, em São Paulo
ou em qualquer outra grande metrópole latino-americana. E essa história cruel, que afeta sem dor as
novas gerações, nos é contada pela nova linguagem da juventude global, o rap.
Memórias do Oriente,
de Niklas Kullström e Martti Kaartinen, por sua vez, é um filme finlandês que
trata, ele também, do Oriente. Em uma ideia brilhante, os diretores recuperam o
diário de viagem de G.J. Ramstedt, intelectual, linguista, filólogo e diplomata
finlandês – ou melhor, Russo, no início da narrativa, e Finlandês após a
independência daquele país, em 1917 – , especialista da língua Mongol, que
serpenteou o Oriente nos efervescentes anos da virada do Séc. XIX para o XX.
Aqui, passado e presente não estão entrelaçados em cenas do presente, mas
sobrepostos de forma a estruturar a narrativa: os lugares narrados por Ramstedt
um século atrás são ilustrados por cenas dos mesmos lugares, só que hoje em
dia. A distante cidadezinha da Urga daqueles tempos é agora a vibrante e
moderna Ulaanbaatar, capital da Mongólia, com quase 1,5 milhão de habitantes.
O contraste se dá entre dois tempos singulares da história: de um lado,
os anos em que se construía o mundo moderno pós-Revolução Industrial, na Europa,
um tempo de verdades absolutas, do triunfo das máquinas e da modernidade, mas
também do fomento dos males da expansão capitalista e da concorrência entre
nações. Tempos em que se construía, justamente, na reorganização da divisão colonial
do mundo, a útil ideia do “Orientalismo” de Said. Tempos de inúmeros processos
independentistas – como o da Finlândia –, de revoluções marcantes, como a
Russa, e da Primeira Grande Guerra. Do outro lado, os tempos atuais, quando se
inicia um século em que as certezas daquela época transformaram-se em
incertezas de um sistema que, na escala do planeta, não parece ter dado conta do
recado. O “progresso” chegou ao “distante” Oriente (eufemismos típicos do Orientalismo)
com toda sua riqueza, mas também suas vicissitudes: a desigualdade, a
segregação, a insegurança, a falta de perspectiva para as novas gerações, que também
aqui expressam esses sentimentos, mais uma vez, por meio do rap, uma marca da
cultura global. Os tempos de hoje parecem retratar de maneira mais precisa do
que se imagina a narrativa centenária de Ramstedt. O “progresso” chegou e os
tempos mudaram, mas nem tanto assim.
O único filme dessa série que não se passa no “distante” Oriente é
A Cidade do Futuro, de Chad Freidrichs. Mas também trabalha no
registro “passado-presente” e talvez mostre justamente uma das origens do
pensamento “modernizador” que alimenta o “Orientalismo” e seria pautado, ao
longo do século XX e até os dias de hoje, pela expansão dominadora ocidental,
que tanto aparece nos filmes aqui comentados. Este interessante documentário,
com uma linguagem que já se torna frequente na produção norte-americana, retrata,
por meio de reconstituições de reuniões e narrativas de época, a epopeia de um
típico “sonho empreendedor” do apogeu do crescimento industrial dos Estados
Unidos, nas décadas do pós-Guerra. Como era de costume,
grandes projetos “modernizadores” eram alavancados a partir de iniciativas
individuais mais ou menos idealistas, saídas de mentes visionárias – no caso, o
físico e oceanógrafo, mas também empreendedor, Athelstan Spilhaus –, mas, por detrás, contando com o apoio
oficial e poderoso da máquina pública governamental, capaz de aportar os
imprescindíveis fundos públicos para tais projetos. Em uma dinâmica perversa
que se tornou prática comum no capitalismo atual, o poder do lobby empresarial
faz com que se “oficializem” como públicos grandes empreendimentos de interesse
quase exclusivo do setor privado. Da mesma forma, aliás, que se dão, atualmente,
as “renovações” urbanas retratadas em Istambul, no filme acima comentado, e em
todas as grandes cidades do mundo.
No caso, o elemento interessante é que o projeto inovador, lançado em
1966, era também uma resposta razoável aos desvios que a urbanização
capitalista já começava a apontar: a insustentabilidade do modelo urbano
baseado no automóvel, no hiper-consumismo, na produção exacerbada de lixo, na
destruição sistemática da natureza em nome da necessidade da urbanização. A “Cidade do Futuro” proposta por
Spilhaus seria construída no lugar de um pequeno vilarejo bucólico no estado de
Minnesota, e trazia todas as inovações possíveis, para a época, para enfrentar,
em um laboratório urbano experimental, as mazelas da urbanização desenfreada.
Carros automáticos (mesmo se a ideia do automóvel como modal de transporte
ainda fosse provavelmente a única possível de se enxergar naquele momento),
sistemas de tratamento de água e esgoto, logística urbana eficaz, etc.
Só que a ironia disso tudo é que a cidade “sustentável” seria
derrotada, em um rico processo de contestação política, também característico
do universo norte-americano à época, justamente pelos defensores .... do meio
ambiente! Por mais que fosse inovador e portador de uma modernidade desejável
pelo seu aspecto sustentável, o projeto sucumbia a duas contradições: primeiro,
disfarçava, no fundo, um empreendimento com o objetivo final do lucro
empresarial, algo, hoje sabemos, totalmente incompatível com o bem comum e o
interesse público. Segundo, os custos ambientais da implantação de uma “cidade
sustentável” tecnologicamente inovadora eram o da destruição de uma bucólica,
simples e preservada região natural no norte dos Estados Unidos. O que seus
cidadãos não deixaram acontecer. Ao longo de décadas, o projeto “visionário” de
Spilhaus não se “viabilizou”, para usar o jargão empresarial, politica,
economica e ambientalmente, sucumbindo aos protestos, ao avanço do tempo e à
própria modernidade que ele se propunha a trazer, que se encarregou de tornar
obsoletas suas ideias antes futuristas. O curioso é que Spilhaus foi vencido
por pessoas que defendiam os mesmos ideais de um futuro sustentável, mas por
outro ângulo, não o do “progresso” ditado pelo capital, e sim de uma visão mais
preocupada com o futuro do nosso mundo e de todos nós.
No fundo, é um pouco disso que se fala em todos estes filmes. De como a
ideologia do progresso, da transformação, da modernidade ditada pelos
interesses dominantes da reprodução do capital, assim como ocorre com o “Orientalismo”
de Edward Said, são implacáveis ao ditar as lógicas de produção do espaço
urbano, onde quer que se esteja, no Ocidente ou no Oriente. Mas também de como
essa ideologia hegemônica se confronta duramente com a realidade de um mundo
historicamente complexo, culturalmente diverso e, muitas vezes, resiliente.
Embora seja esta uma história de dominação e de violências, essa “modernidade”
que nos é imposta, mundo afora, na forma de uma urbanidade estéril e homogênea,
a serviço da reprodução do capital, nem sempre é a que vence. Estes filmes nos
trazem histórias de homens e mulheres que, no rap, nos sonhos ou nas ações
concretas de resistência, nos fazem crer que ainda podemos ter cidades
melhores, pensadas para o futuro e não para o lucro.