Eric Hobsbawn, historiador inglês, escreveu, em
seu livro Era dos Extremos – o breve
século XX, que “a destruição do passado – ou melhor, dos mecanismos sociais
que vinculam nossa experiência pessoal à das gerações passadas –, é um dos
fenômenos mais característicos e lúgubres do século XX ”. Essa condição estendeu-se
para o século XXI de forma radicalizada. Ainda segundo Hobsbawn, “quase todos
os jovens de hoje vivem numa espécie de presente contínuo, sem qualquer relação
orgânica com o passado público da época em que vivem.”. Tal situação não só foi
ampliada, atingindo todas as gerações, mas também se amplificou, incentivada
pelas novas tecnologias, que fizeram das redes sociais um alto-falante do “aqui
e agora”, sem qualquer compromisso com a história passada e presente. O
historiador inglês então alerta: “Por isso os historiadores, cujo ofício é
lembrar o que outros esquecem, tornam-se mais importantes do que nunca no fim
do segundo milênio”.
Ao que se pode acrescentar a contribuição de cineastas e artistas que buscam
mostrar a história do trabalho ontem e hoje, como é o caso na 8ª Mostra
Ecofalante de Cinema Ambiental. São três longas, dois médias e quatro curtas
que tratam de momentos históricos e locais diferentes, lembrando o que se
esquece ou desvendando o que não se consegue ver no mundo contemporâneo: um
processo de violenta precarização do trabalho, que combina revolução tecnológica
com uma regressão social sem precedentes em escala planetária.
E
o que explica essas transformações? A globalização que caracteriza o atual momento
histórico do capitalismo fundamenta-se na hegemonia da “lógica financeira”, que
ultrapassa o terreno estritamente econômico do mercado e impregna todos os
âmbitos da vida social, dando conteúdo a um novo modo de trabalho e de vida.
Trata-se de uma rapidez inédita do tempo social, que parece não ultrapassar o
presente contínuo, um tempo sustentado na volatilidade, efemeridade e
descartabilidade sem limites de tudo o que se produz e, principalmente, dos que
produzem – os homens e mulheres que vivem do trabalho. O curto prazo impõe
processos ágeis de produção e de trabalho, exigindo trabalhadores que se
submetam a quaisquer condições para atender ao novo ritmo e às rápidas
mudanças. O lema é aumentar a produtividade a qualquer custo, ou seja, produzir
mais em menos tempo, e aqueles que não se adaptam devem ser descartados. Os
homens modernos precisam ser ágeis e flexíveis. Estabilidade e longo prazo não
são compatíveis – no plano do emprego e do trabalho – com as novas exigências
do “capitalismo turbinado”. Prevalecem as formas de inserção de curto prazo,
por empreita, por consultoria, por produto, por atividade, por tempo
determinado (temporário).
No
plano ideológico, político e cultural o incentivo à individualidade
transforma-se no mais puro individualismo. A proposta de desregulamentação – pondo
fim ao controle social e público através do Estado – defende o reino absoluto
do mercado, como atestam as “reformas trabalhistas” em todo o mundo e no
Brasil. É um processo em que cada indivíduo é responsável por se dotar dos
meios e atributos exigidos pela reestruturação e pelas novas tecnologias para
ter “empregabilidade”. É convencido pela ideologia do empreendedorismo, é
pressionado pela “ditadura do sucesso”, numa clara apologia ao self-made man, bem a gosto do
neoliberalismo, que, insuflando a concorrência de todos contra todos, quebra os
laços de solidariedade de classe, criando diversas formas de discriminação.
Há
rupturas e permanências no atual capitalismo globalizado, financeirizado e
flexível. Dentre as principais mudanças, os estudos mostram uma nova morfologia
do trabalho e da classe trabalhadora, com um crescente processo de diminuição
do emprego na indústria e com o aumento do trabalho nos serviços, cujas precárias
condições de trabalho e de direitos conformam um novo proletariado dos
serviços, conforme denomina o sociólogo Ricardo Antunes. Tal movimento foi
provocado por uma radical reestruturação produtiva desde os anos 1980, com
enxugamento das fábricas através de inovações organizacionais inspiradas no
padrão japonês, no qual a terceirização ocupa lugar central, o deslocamento
industrial, com o fechamento de unidades e sua transferência para regiões com
menor custo do trabalho e maiores incentivos fiscais, e com o processo de
informatização e automação.
Essas
mudanças criaram desemprego estrutural e foram substituindo as relações de trabalho
da era fordista – em que o emprego de longa duração predominava, pelo menos nos
países mais desenvolvidos –, por uma miríade de contratos precários, pela
terceirização e pela informalidade. O que permanece no atual capitalismo é a
sua essência enquanto um sistema produtor de mercadorias – materiais e
imateriais –, movido pela lógica da acumulação e do lucro, que vive numa
permanente contradição quando, através da tecnologia ou do trabalho morto,
busca substituir e se desvencilhar do trabalho vivo, ao mesmo tempo em que
depende deste para extrair o mais valor. E, para tal, aprofunda a
mercantilização da força de trabalho, objetiva e subjetivamente, tratando os
trabalhadores como coisas, como robôs, e transferindo a eles os custos e as responsabilidades
pelo sucesso do capital. Trata-se de um processo em que a precarização social
do trabalho torna-se o centro da dinâmica do capitalismo a nível mundial. Como
disse o sociólogo francês Pierre Bourdieu, “A precariedade está hoje por toda a
parte”, e existe uma “estratégia de precarização” como modo de dominação, em
que a insegurança e instabilidade nos empregos, somadas aos altos níveis de
desemprego, impõem uma maior submissão do trabalho ao capital.
Os
filmes sobre a temática Trabalho
revelam essas rupturas e continuidades. Na cena francesa de Cinzas
e Brasas, temos o retrato de uma “banlieue” (região metropolitana) próxima
à fábrica da Renault, que empregava 21.000 trabalhadores nos anos 1960, e hoje tem
apenas 2.500 contratados diretamente e 1.500 temporários, subcontratados e
intermitentes. Naquele tempo, greves e lutas coletivas eram comuns, com
sindicatos fortes que comandavam as manifestações; hoje, frente à dificuldade
de juntar e reunir os que trabalham no mesmo lugar, mas em condições de
precariedade diferentes, eles atuam na defensiva. As novas gerações, filhas de
operários da Renault, não têm mais lugar nesse trabalho. E, com múltiplas
experiências de vida, protestam e se manifestam contra esse estado de coisas,
contra o preconceito, a discriminação, a perseguição e a repressão, e criam
formas de resistência individuais e coletivas.
Stratum
é uma narrativa sobre as velhas minas de carvão e suas greves, hoje
transformadas em museus ou cidades “mortas”. Faz referência à crise de 1929
para mostrar a anarquia do capitalismo, que leva os trabalhadores a viverem em
condições de miséria frente ao desemprego, aos baixos salários e a condições de
trabalho insalubres e perigosas, que adoecem e matam-nos. A pergunta que se
pode fazer é se o fechamento das minas de carvão acabou com essa situação de
precariedade ou se ela assume uma nova roupagem. Como se Forjou o Aço é
uma animação com imagens fotográficas, e expressa um saudosismo em relação às siderúrgicas
que foram fechadas. O vazio de pavilhões imensos, sem a alma viva dos
trabalhadores, simboliza a tristeza, a ausência de vida coletiva, em que pai e
filho solitários tentam retomar o trabalho. Resta saber se esse saudosismo se
justifica no capitalismo contemporâneo.
Sinfonia
Industrial é um ato de reconstrução da memória através de uma encenação
documental de ex-empregados de uma fábrica de tratores na Polônia – que empregou
20.000 trabalhadores, mas foi fechada com a crise do leste europeu –, na qual os
atores retratam como era o seu dia de trabalho, seu orgulho e as boas alegrias
na vida. Relembrando aqueles tempos, percebem o quanto, no atual momento da
história, aquela experiência está distante e quase apagada de suas memórias. É
mais uma referência às grandes fábricas, cuja sociabilidade operária fazia uma
vida com mais sentido. Hoje, com a reestruturação industrial, essa
sociabilidade se esgotou? Ou, qual era o sentido daquela sociabilidade?
Vale
refletir sobre o exercício que Bisbee '17 apresenta quando moradores
da cidade de Bisbee, próxima à fronteira com o México, encenam um evento ocorrido
em 1917, no qual 1200 mineiros, em sua maioria migrantes, fizeram uma greve e,
com o apoio dos moradores da cidade, foram deportados pela empresa mineradora e
levados para o deserto, na fronteira, para morrer. É uma história não conhecida,
ou reconhecida pela cidade, cuja versão oficial ocultava essa trágica
deportação. Apesar de ocorrer no início do século XX, época de grandes
coletivos de trabalho, como o trabalho nas minas, tipicamente operário, esse
evento já revelava o preconceito, a xenofobia e a violência de conteúdo fascista
que vêm se manifestando hoje no mundo.
Para
compreender o trabalho na atualidade à luz do passado histórico, é preciso considerar
os paradoxos e contradições do próprio desenvolvimento do capitalismo. Vive-se
um processo desigual e combinado em que o avanço da financeirização não anula a
industrialização. É o caso da Ásia e sobretudo da China, onde se combinam três
ou quatro revoluções tecnológicas ao mesmo tempo. Em Dedos Ágeis, a operária
da Canon no Vietnã, que saiu de sua aldeia no campo para a fábrica, relata o
seu trabalho robotizado e repetitivo, sob total controle, sem liberdade de
falar, de ir ao banheiro, com salários baixíssimos e vivendo em moradias
coletivas e precárias. São inúmeros os casos de suicídio de jovens operários em
fábricas desse tipo, que não sobrevivem à mudança cultural e social que o
trabalho fabril impõe, como tão bem descreve Leslie T. Chang, em seu livro As garotas da fábrica, sobre a migração
em massa do campo para a cidade na China.
O
avanço da robotização nas fábricas –, símbolo da terceira revolução industrial,
que destrói empregos e postos de trabalho na indústria e nos serviços e não
diminui a quantidade de trabalho, mas o intensifica – convive com a quarta
revolução tecnológica, ou “indústria 4.0”, baseada nas tecnologias de
informação, na “internet das coisas” e da “inteligência artificial” (algoritmos),
que comanda os processos produtivos. São inovações no campo tecnológico que
aprofundam o fetiche da tecnologia, como fica evidente no caso dos robôs
operando ao lado dos trabalhadores, em A Verdade sobre Robôs Assassinos, que
investiga um acidente de trabalho fatal, numa fábrica da Volkswagen na
Alemanha, provocado por um robô que esmaga até a morte um operário. As
manchetes dos noticiários acusam o robô de ter causado a morte de um
trabalhador; a justiça local, por seu lado, afirma dificuldade em julgar o
acidente, já que não pode processar um robô. Tais posições confirmam a inversão
entre sujeito e objeto do trabalho, inversão na qual a tecnologia assume vida
própria. A tecnologia não é neutra. É produto do trabalho humano, é parte da
relação social entre capital e trabalho, mas aparece como poder alheio e
estranho ao trabalhador e que atua sobre ele. É a alienação do trabalho revigorada,
separando e estranhando o trabalhador do seu processo de trabalho, do resultado
do seu trabalho e de si mesmo, como sujeito que se coisifica.
As
novas tecnologias digitais na forma de aplicativos, dentre as quais a mais
conhecida é a Uber, potencializam o fetiche e a alienação do trabalho. São
empresas de tecnologia sustentadas em capital de risco, sediadas, em sua
maioria, no Vale do Silício, que controlam e movimentam a economia gerada
através dos aplicativos. É uma forma de precarização inédita, na qual as
relações mercantis são mediadas pelos indivíduos enquanto consumidores de
serviços e transformam os trabalhadores em empreendedores, negando a existência
de relações de trabalho, ocultas sob a denominação de “prestadores de serviços”.
Sem regulação do Estado, as empresas proprietárias dos aplicativos não assumem qualquer
responsabilidade sobre as consequências sociais negativas decorrentes de sua
atuação, responsabilizando o indivíduo. É a era da escravidão digital.
O
capitalismo flexível e financeirizado cria uma instabilidade e uma vulnerabilidade
social permanentes. Num curto espaço de tempo, as crises financeiras destroem
economias, empresas, empregos, serviços públicos e a sobrevivência de famílias.
Foi assim com a crise de 2008 nos EUA. O curta CamperForce teve o nome
inspirado por um programa da Amazon no
qual as pessoas se associam, formando um exército de reserva à disposição do
trabalho temporário. O filme mostra a perversidade do uso do trabalho de
cidadãos empobrecidos, que perderam suas casas com a crise das hipotecas, de moradores
de trailers, velhos e aposentados, que se subordinam ao trabalho temporário nos
depósitos da Amazon, em condições precárias.
Assistir
a esses filmes nos ajuda a questionar as atuais formas de precariedade
banalizadas, normalizadas ou institucionalizadas, legitimadas pelas novas
tecnologias, diferentes da precariedade em outras épocas do capitalismo. À luz
da história – passada e presente – revelada em cada uma dessas obras, é
possível refletir sobre os limites do capitalismo e sua incapacidade de
garantir o direito ao trabalho como emancipação humana.