O espectro de um fim, representado pelo
fogo que queima e destrói. A cena inicial do documentário Antropoceno: A Era Humana
anuncia a tese que se segue: o homem transformou-se numa força geológica, e os
impactos gerados no planeta por ele tornaram-se irreversíveis. Um mosaico de
imagens de grande escala revela a velocidade com que a apropriação dos recursos
naturais se dá: a mineração de potássio na Rússia, a extração de lítio no
Deserto do Atacama, no Chile, a maior plataforma de escavação do mundo na
Alemanha, as montanhas de lixo no Quênia, a retirada do mármore em Carrara, na
Itália. Se duas décadas atrás um trabalhador levava vinte dias para extrair um
bloco de mármore, hoje a retirada ocorre em menos de 24 horas. Sobre imagens
urgentes e chocantes, nos chega pela narradora a informação de que 85% das
florestas já foram derrubadas ou degradadas pelo uso humano.
O aquecimento global, o desmatamento, a
sexta grande extinção das espécies, a acidificação dos oceanos, as migrações de
populações, a poluição do ar e o envenenamento toxicológico generalizado de
seres vivos e biomas parecem comprovar o fato de que a interferência humana tem
alterado os fluxos naturais do planeta. No entanto, em meio a cientistas de
diversas áreas, há quem conteste a noção de Antropoceno. Afinal, quem responde
por tão grande interferência? Pensadores como o historiador ambiental norte-americano
Jason Moore e o historiador francês Christophe Bonneuil criticam o conceito e
direcionam o problema não ao “humano”, mas a uma específica classe de humanos,
em um específico sistema econômico. Fala-se, então, em Capitaloceno
e Ocidentaloceno.
Com efeito, se pensarmos que, segundo a
OxfanOxfam,
em 2017, a fortuna dos oito homens mais ricos do mundo somava um valor maior do
que possuía toda a metade mais pobre da população mundial, não parece razoável
socializar esse impacto da extração de riqueza com os tuaregues, pastores
nômades do leste nigeriano, ou com os Zo’é, índios da calha norte da Amazônia
brasileira.
Por meio do documentário A
Luta de Silas, deparamo-nos com esse debate. O filme mostra o apoio do
ativista liberiano Silas Siakor a comunidades expropriadas por grandes
empresas madeireiras e produtoras de óleo de palma, detentoras de concessões
florestais e terras na Libéria. A natureza, que sempre garantiu a sobrevivência
desses povos, torna-se alvo de exploração em escala industrial. Paradoxalmente,
o avanço sobre as florestas ancestralmente ocupadas é legitimado por uma
axiomática noção de “desenvolvimento”. Sob o discurso de erradicação da
pobreza, os governos sacrificam os interesses vitais das parcelas mais carentes
da população. Como estratégia de resistência, Silas implementou um projeto que
permite aos comunitários usar um aplicativo de celular para denunciar as
violações de direitos. Por essa via, comunidades tradicionais rompem com uma
invisibilidade política ao integrarem a divulgação de fotos, vídeos e
coordenadas geográficas à sua luta por reconhecimento. E, dessa forma, alçam a
outras esferas as denúncias do processo de apropriação privada das terras e
recursos de uso comum.
Na situação
retratada em A Luta de Silas, assim como na Amazônia brasileira, os
contínuos florestais, grandes ou pequenos, comumente são os nichos de
resistência de povos ou comunidades tradicionais. Contraditoriamente, um
discurso ambientalista que aliena a floresta de seus povos – como também se furta
de um olhar político sobre a questão – criminaliza esses grupos pelo uso que
fazem de seus territórios – áreas cuja integridade se deve, exatamente, ao
manejo secular ou milenar que ali se pratica e à resistência de seus ocupantes
contra o avanço da fronteira.
Situações desse
tipo colapsam quando a porção de floresta restante é insuficiente para
assegurar o modo de vida desses grupos. A comum estrutura de concentração fundiária
impele povos e comunidades tradicionais a relações de dependência, em um enredo,
aliás, pelo qual se formam máfias ao redor do mundo. Quando Cordeiros se Tornam Leões
levanta essa discussão ao mostrar a caça aos elefantes do Quênia para o
abastecimento do comércio ilegal de marfim. O documentário recorre a
personagens de campos antagônicos para revelar o conflito: de um lado, um
guarda florestal armado com fuzil e autorizado a atirar para matar; de outro,
um negociante de presas de marfim, acompanhado de um caçador que usa flechas
envenenadas para abater os animais. Uma das cenas iniciais de Antropoceno:
A Era Humana se repete aqui. Nela, pilhas de marfins,
oriundos de mais de 10 mil elefantes, são queimadas num espetáculo transmitido
ao vivo pela TV. “O marfim é inútil, a menos que esteja em nossos
elefantes” é a frase de impacto escolhida pelo presidente queniano Uhuru
Kenyatta para dar publicidade ao ato, enquanto mais de 150 mil dólares em
marfim transformam-se em fumaça. O discurso ambiental do Estado aparece
dissociado da realidade da população. E o antagonismo entre guarda e
contraventor acaba por se revelar cosmético, na medida em que as personagens transitam
pelos diferentes polos do conflito engendrado pelas relações de dependência.
As valiosas presas, muito usadas por escultores e conhecidas também como
“ouro branco” funcionam como uma espécie de leitmotiv
de três filmes que compõem o eixo temático Sociobiodiversidade:
Antropoceno:
A Era Humana, Quando Cordeiros se Tornam Leões e Genesis
2.0. Nesse último, as presas do extinto mamute são apresentadas como a
alternativa ao comércio ilegal. A opção, apesar de não promover a matança de
animais, também gera seu ônus socioeconômico: os caçadores que arriscam a vida
para encontrar os restos dos mamutes não compartilham dos lucros auferidos
nesse mercado. Nas ilhas geladas do norte da Sibéria, passam o dia cavando o
solo em busca de materiais de qualidade. Enfrentam a falta de comida, a
distância da família, as tempestades marítimas. Uma narrativa paralela, pautada
por outra chave ontológica, desenvolve um enredo sobre avanços tecnológicos. Os
arcos narrativos convergem no ponto em que são apresentados dois irmãos: Peter e
Semyon Grigoriev: o primeiro procura presas de mamute, o outro é cientista e
dirige um museu dedicado ao mamífero extinto. As concepções de profanação das
escavações, que atormentam os caçadores, confrontam-se, então, com a
perspectiva de clonar um mamute morto há 30 mil anos. Os irmãos figuram
como significantes de formas distintas e antagônicas de conceber o mundo e a si
próprios. O filme, que leva no título o nome do primeiro livro da Bíblia, o
livro da “Criação”, nos convida, ainda, a pensar a fé depositada na ciência e na
tecnologia como fonte inquestionável de prosperidade. Como uma nova religião
universal, remete-nos à imagem do cientista-Deus por meio da tecnologia, em
oposição ao homem que integra o mundo a partir de uma perspectiva horizontal,
não hierarquizada.
A ideia de dominação da natureza está
impregnada dessa relação de poder por meio do conhecimento científico. Um poder
que afasta o homem ocidental da natureza e faz com que ele creia estar no topo
de uma cadeia hierárquica, sobre os seres todos. É essa posição que autoriza o polêmico
uso de animais como cobaias, um dos temas tratados por A História do Porco (em Nós).
Aos que se opõem à ideia, lança-se mais uma vez a condenação, típica do
tecnocentrismo, de que estão contra o progresso, contra a ciência. A premissa
que autoriza essa prática científica em que se pode matar outra forma de vida
não é, ela mesma, científica, como afirma o geógrafo Carlos Walter
Porto-Gonçalves. Perde-se o paralelismo entre esses mundos, presente entre
muitos povos indígenas e comunidades tradicionais. A cena que mostra uma
indígena amamentando um javali, por exemplo, é reveladora da cisão aberta no
mundo ocidental. Os animais e a natureza deixaram de ser o “outro” do homem
para se transformarem em algo subalterno, passível de domínio e controle. Ao
falar do porco a partir de mitos, rituais, simbologia e do significado
histórico desse animal, o filme coloca em xeque a condição humana contemporânea.
Questiona, também, o mundo capitalista, que, desde seus primórdios, coproduziu
a transformação de uma natureza mãe, que dá vida e alimento, em uma matéria
inerte, sem vida e manipulável. Em uma interessante passagem de A
História do Porco (em Nós), descobrimos que, na China antiga, o mesmo ideograma
era usado para referir-se ao porco e à casa. Esse percurso nos leva ao encontro
da ecofeminista Carolyn Merchant, que explica de que forma a terra maternal atuou
como barreira cultural para os novos modelos de exploração da natureza: “não é
tão fácil assassinar a própria mãe, perfurar suas entranhas ou mutilar o seu
corpo”.
A dualidade homem/natureza comparece também
nas belíssimas imagens guardadas por mais de 50 anos nos arquivos da National Geographic e cuidadosamente
revitalizadas para dar origem ao documentário Jane, que mostra o primeiro
estudo dos chimpanzés em seu ambiente natural, feito pela primatologista Jane
Goodall em 1960. No Parque
Nacional de Gombe, na Tanzânia,
Jane se aproxima lentamente dos chimpanzés até ser aceita por eles, e nos confronta com o fato de que, sim,
também somos natureza. Aos 26 anos, sem diploma universitário, experiência
científica ou treinamento de campo, ela foi a primeira a relatar o uso de
ferramentas pelos chimpanzés, até então uma linha limítrofe a distinguir o
homem. Sua pesquisa desafiou o consenso dominado por cientistas (homens)
da época. Hoje, aos 83 anos, Jane Goodall é tida como a maior especialista em
primatologia no mundo e conta que foi enviada a Gombe “com a esperança de que
uma melhor compreensão do comportamento dos chimpanzés pudesse fornecer uma
janela sobre o passado humano”. Entretanto, a proximidade com os chimpanzés não
lhe diz apenas de um passado ancestral, mas dialoga com sua concepção de mundo,
e lhe proporciona até mesmo lições sobre maternidade, a partir da observação de
uma macaca que batizou com o nome Flo.
Memórias
pessoais e políticas e a necessidade de equacionar diferentes modos de vida,
presentes em todos os documentários
do eixo Sociobiodiversidade, retratam a dialética das relações entre a
terra e as pessoas, entre o passado e o futuro, de forma a romper com a ideia
de uma linearidade “evolucionista”. Esse conjunto de filmes nos convida a uma
reflexão: no colapso ambiental que se anuncia, possibilidades de vida e de
felicidade que parecem superadas para o senso comum seriam capazes de gestar o futuro?