Todo ano escolhemos uma figura de relevância histórica da causa ambiental para prestarmos uma Homenagem. A 8ª Mostra homenageia Silvio Tendler (1950), cineasta incontornável para entender o passado e o presente do Brasil. De biógrafo-historiador de personalidades da segunda metade do século 20, ele passou a focar sua lente em questões ambientais como O veneno está na mesa (2011), O veneno está na mesa 2 (2014) e Agricultura Tamanho Família (2014).
Homenagem: Silvio Tendler
Cinema Político e de Resistência
de Luiz Carlos Merten
São poucos os documentaristas que, em todo o mundo, podem gabar-se de haver arrastado aos cinemas milhões de espectadores para ver seus filmes. Silvio Tendler fornece um desses raros exemplos.
Os Anos JK, em 1980, faturou 800 mil espectadores; O Mundo Mágico dos Trapalhões, em 1981, 1,8 milhão; Jango, em 1984, 1 milhão, e O Veneno Está na Mesa 2, de 2014, já exibido online, foi assistido por mais de 5 milhões de pessoas. Quando o Brasil emergia dos anos de chumbo da ditadura militar, que tanta gente hoje quer negar que houve, e vivia um processo de abertura democrática, Jango virou o filme das diretas já. Eu me lembro de como, nos cinemas, em Porto Alegre, a gente aplaudia durante as sessões, cantava e até chorava com Milton Nascimento.
Filmes
Cinema Político e de Resistência
São poucos os documentaristas que, em todo o mundo, podem gabar-se de haver arrastado aos cinemas milhões de espectadores para ver seus filmes. Silvio Tendler fornece um desses raros exemplos.
Os Anos JK, em 1980, faturou 800 mil espectadores; O Mundo Mágico dos Trapalhões, em 1981, 1,8 milhão; Jango, em 1984, 1 milhão, e O Veneno Está na Mesa 2, de 2014, já exibido online, foi assistido por mais de 5 milhões de pessoas. Quando o Brasil emergia dos anos de chumbo da ditadura militar, que tanta gente hoje quer negar que houve, e vivia um processo de abertura democrática, Jango virou o filme das diretas já. Eu me lembro de como, nos cinemas, em Porto Alegre, a gente aplaudia durante as sessões, cantava e até chorava com Milton Nascimento. “Coração de Estudante” virou um hino, como o Hino Nacional que Fafá de Belém cantava nos comícios que mobilizavam multidões.
Silvio Tendler! O que seria seu primeiro filme, sobre a Revolta da Chibata, depois que ele conheceu o lendário Almirante Negro, João Cândido, simplesmente desapareceu do mapa, porque o responsável pela guarda dos originais queimou o filme para evitar complicações com os milicos. Tendler viajou para o Chile, na euforia do governo da Unidade Popular de Salvador Allende, foi para a França, onde se ligou a Chris Marker e Jean Rouch, papas do cinéma vérité. Formou-se em História pela Universidade de Paris e fez seu mestrado na École de Hautes Études, com uma tese sobre Joris Ivens. Tendler já sinalizava que o cinema que queria fazer seria político.
Os Anos JK recriam a trajetória política de Juscelino Kubistchek, começando com a promulgação da Constituição de 1946. Surge esse jovem prefeito de Belo Horizonte, que contrata dois comunistas para erguer a igreja da Pampulha, que será sua plataforma para o governo de Minas. Arauto de uma ideologia desenvolvimentista que promete fazer o País avançar cinquenta anos em cinco, JK elege-se presidente do Brasil com a promessa de transferir a capital para o Planalto Central, criando Brasília. A indústria automobilística desenvolve-se, o som (internacional) do Brasil vira a Bossa Nova e Tendler põe na tela o que era o estilo, a maneira de ser e governar de JK. O novo populismo, pós-Getúlio. Mais ou menos na mesma época, Ana Carolina documentou, ou melhor, interpretou psicanaliticamente o mito de Getúlio (Getúlio Vargas, 1974) como o Pai, em Trabalhadores do Brasil: “Todo o povo brasileiro chorou/Morreu o presidente…”. JK, eterno otimista, tinha o espírito conciliador. Minimizava tensões sociais e conflitos partidários, fazia concessões.
Voltar a Juscelino, naquele momento, enfatizava o espírito de redemocratização. Com João Goulart, o processo democrático fora interrompido. Como, quando e por que se depõe um presidente? Tendler pega carona no documentarista cubano Santiago Alvarez, em seu filme sobre a execução do general Pratt, no Chile: Como, Por Que y Para Qué se Asesina a Un General? Como ministro do Trabalho de Getúlio Vargas, Jango assegurou direitos aos trabalhadores. Como presidente, defendendo a bandeira do desenvolvimento nacionalista, encaminhou as reformas de base que o Brasil necessitava, inclusive a agrária. Foi etiquetado como comunista – o fenômeno da Revolução Cubana era recente e alarmava as elites brasileiras –, e deposto. Herói injustiçado ou agente comunista inexperiente? O filme posiciona-se contra o golpe, adota a bandeira da legalidade, deixa implícito que é preciso retomar o processo democrático. Diretas já!
Quando Silvio Tendler fez esses filmes, os tempos eram outros. Em 1968, Stanley Kubrick já mostrara o super computador Hal-9000 assumindo o controle da nave de 2001 – Uma Odisséia no Espaço. Dois anos depois, Joseph Sargent já propusera Colossus 1980, em que, em plena Guerra Fria, os militares dos EUA entregam o controle do sistema de defesa do país a outro computador, que enlouquece. Não havia redes sociais, havia a desconfiança da máquina. Seria impensável imaginar presidentes como Donald Trump ou Jair Bolsonaro, governando pelo Twitter. O mundo mudou muito e, nesse processo, o cinema de pesquisa e investigação histórica de Tendler virou referência, inclusive universitária. Seus filmes viraram temas de estudo em universidades, e o próprio Tendler tornou-se professor de cinema. Hoje, quem pesquisa na internet descobre que lhe colaram a etiqueta de cineasta dos vencidos, ou dos “Sonhos Interrompidos”, por seus filmes sobre JK, Jango, Carlos Marighella ou Glauber Rocha.
Muito antes que Wagner Moura fizesse sua ficção sobre Marighella, Tendler já traçara o retrato falado do guerrilheiro, em 2001. Dois anos depois veio Glauber – O Filme, Labirinto do Brasil, e o título já deixa claro que, por meio do artista que estudou (e sonhou transformar) o País, o que ele está querendo é entender, ou pelo menos fazer uma proposta de discussão da nossa brasilidade. Seu recorte é sempre de esquerda, na contracorrente desse direitismo tacanho que se instalou no Brasil e transformou a caça aos comunistas inexistentes e o desmantelamento do que chama de marxismo cultural em pedras de toque do (des)governo vigente. Os títulos já revelam a intenção: Encontro com Milton Santos ou O Mundo Global Visto do Lado de Cá; Memória do Movimento Estudantil; Tancredo – A Travessia; Militares da Democracia – Os Militares Que Disseram Não; Os Advogados contra a Ditadura – Por Uma Questão de Justiça; Sonhos Interrompidos, etc.
No total, são mais de 70 filmes de longa, média e curta-metragem, em formato documental, além de 12 séries. Uma obra extensa e respeitável que tem valido a Silvio Tendler prêmios e homenagens pelo Brasil e pelo mundo afora. Ele recebe agora a Homenagem da Ecofalante, e, por se tratar de um evento ligado a questões ambientais, um outro aspecto da obra de Tendler ganha destaque. O que ele percebeu é que não basta discutir e tentar entender os grandes movimentos políticos, os golpes. Política e economia andam indissociáveis, e nunca pelo favorecimento das massas. O mundo é dominado pela desigualdade social e, em países como o Brasil, com escandalosa impunidade, o agronegócio tem prosperado às custas do desmatamento, do avanço sobre territórios indígenas e quilombolas e de quantidades colossais de venenos químicos, usados como fertilizantes agrícolas, a um tal ponto que uma parlamentar que tem sido porta-voz do setor tornou-se conhecida no Congresso brasileiro como ‘musa do veneno’. E surgiram Agricultura Tamanho Família, O Veneno Está na Mesa 1 e 2, Dedo na Ferida, que venceu a Competição Latino Americana da Mostra Ecofalante de 2017, e O Fio da Meada, último documentário do diretor, que estreia na 8ª edição do festival.
Completam-se em 2019 dez anos de Utopia e Barbárie. Não importa se Tendler fez filmes melhores, ou de maior sucesso de público e crítica. Esse é especial, de alguma forma, para o autor do texto: é a obra síntese do cineasta, o seu legado. Produto de uma pesquisa extensa que consumiu 20 anos, o filme vai ao pós-guerra (1945) para mapear e estudar as grandes mudanças que, no século 20, terminaram por moldar o mundo no século XXI. Como narrador, e comentando os acontecimentos, Tendler revisita as lutas pela independência das colônias africanas (e não apenas) e os golpes militares na América Latina. O Chile, tão importante para ele, rende alguns dos melhores momentos no filme. Chile esse que hoje virou avatar dos planejadores econômicos que querem voltar à Escola de Chicago para resolver os problemas do Brasil. O mesmo Chile que tem hoje mais gente catando lixo nas ruas de Santiago do que jamais teve em sua história – eu sei, eu constatei isso em janeiro de 2019. Mas o que isso importa para os que só querem governar e legislar em nome dos poderosos? Por mais imoral que seja, a desigualdade é um alimento para a autofagia dos que professam a lei do mercado.
O Chile também é um emblema para Tendler. A utopia de Allende, a barbárie do golpe do General Augusto Pinochet. A Guerra do Vietnã. Quando lançou seu filme, Tendler advertia que se tratava de um filme não acabado, ou melhor, inacabável. Intuía ele que a barbárie, que talvez nunca tivesse ido, voltaria com mais força – no Brasil, nos EUA, no mundo? Tendler percorre 15 países, entrevista intelectuais, filósofos, artistas, jornalistas, historiadores, economistas. A grande e a pequena história são revistas de diferentes ângulos e perspectivas. O próprio Tendler participa, como personagem. Letícia Spiller, Chico Diaz e Amir Haddad expressam seu pensamento. São impactantes – uma sobrevivente de Hiroshima narra cenas que, para ela, representam o inferno; Eduardo Galeano, o grande escritor de As Veias Abertas da América Latina, diz que sonhar é o papai e mamãe de todos os direitos, pois todos os demais derivam dele; e Pinochet, o monstro. Ao ser indagado sobre fossas comuns para seus opositores, retruca com cinismo: “que baita economia, hein?”.
O desprezo. Pior que isso, o ódio pelo outro. Narciso acha feio o que não é bonito – ele. Tendler, em Utopia e Barbárie, evoca movimentos populares, o povo na rua lutando por seus direitos. Não a massa insuflada pelo ódio que, a partir das redes sociais, sequestrou o poder no Brasil, nos últimos anos. Seu cinema é um testemunho de luta, de resistência. Glauber também bradava, em Deus e o Diabo na Terra do Sol: “Mais fortes são os poderes do povo!” Tendler nunca deixou de acreditar, de sonhar. Contra o agronegócio, defende a agricultura familiar (Agricultura Tamanho Família). “O Veneno Está na Mesa”, mas, na cadeia de produção, o agrotóxico atinge desde o trabalhador que aplica o produto até o consumidor que come o alimento. Tudo se encaixa com coerência na obra de Silvio Tendler, que é, toda ela, uma crítica às forças do reacionarismo, econômico e político. Resistir é preciso. A doença que pregou o diretor numa cadeira de rodas não paralisou sua capacidade de pensar, refletir, lutar. Tornou-o mais resiliente. A Homenagem da Ecofalante é, mais que justa, necessária.