Texto sobre os filmes da temática Trabalho do Panorama Internacional Contemporâneo
Por Arlene Ricoldi*
O mundo do trabalho vem se alterando drasticamente nas últimas décadas. Passamos da chamada sociedade industrial, que empregava mão de obra em larga escala, para um cenário de automatização e informatização, redução dos postos de trabalho e extinção de profissões. Os novos empregos são flexíveis e temporários, devendo se ajustar às “demandas do mercado”; devolvem, assim, um enorme contingente de trabalhadores a uma situação de insegurança, vulnerabilidade e estagnação (quando não queda) social. A dilapidação dos direitos trabalhistas no mundo, que tem no fenômeno da uberização uma de suas maiores expressões, é uma das marcas dessa nova era.
A família também vem sofrendo transformações. A sociedade industrial exigia jornadas longas e contínuas, e a família nuclear cumpriu o papel de fornecer o trabalhador masculino, que tinha por trás uma mulher cuidadora em tempo integral, dando conta da reprodução da família, e, por extensão, da própria mão de obra – a moral e os bons costumes se encarregavam da “cola simbólica” para manter tudo no lugar. Vieram as mudanças, e o vínculo entre gênero e cuidado se estabeleceu e passou a ganhar importância fora do âmbito familiar, principalmente nos países ricos, devido ao envelhecimento de suas populações, à redução da base de contribuição previdenciária, ao tamanho das famílias (pois o cuidado era antes provido por famílias extensas), ao aumento do consumo, do trabalho feminino e de famílias chefiadas por mulheres etc.
Paradoxalmente, é essa nova família (e suas mulheres) que atenderá às demandas crescentes do cuidado e da assistência aos incapacitados e dependentes, com a decadência da política social vinculada ao emprego industrial, cuja associação foi naturalizada e parecia eterna. É nesse novo mundo do trabalho, de poucos novos empregos, de profissões extintas e direitos dilapidados, que os filmes desta seleção se situam, tematizando questões que são intrínsecas ao nosso tempo e dramáticas para quem trabalha para sobreviver.
O documentário checo O Último Turno é uma continuação do curta-metragem O Último Turno de Tomas Hisem (2017), que mostrava o último dia de trabalho do protagonista em uma mina em vias de encerrar suas atividades de forma permanente. Já O Último Turno mostra os esforços de requalificação do personagem ao se inscrever em um programa nacional de treinamento em programação informática. Na casa dos 40, ele enfrenta, por parte de amigos e colegas, o preconceito – tanto etário como social – na transição de um trabalho braçal para outro no qual o exercício é inteiramente mental e onde imagem e apresentação pessoal importam. Apesar de viver em um país com alto desenvolvimento social, a falta de educação superior pesa e Tomas enfrenta dificuldades em se recolocar em um mercado cada vez mais exigente. O desfecho, no entanto, é surpreendente.
O momento atual também se caracteriza por grandes deslocamentos de migrantes dos países mais pobres em direção aos ricos, o que gera diversas hierarquias étnico-raciais, somadas às de gênero e classe. A Europa vem recebendo fluxos intensos de migrantes, os quais, apesar de não serem exatamente bem-vindos, garantem a mão de obra de diversos setores econômicos, ainda que provoquem a necessidade de políticas sociais que esses países não querem oferecer.
Tal é a realidade apresentada no belíssimo O Novo Evangelho, ambientado na cidade de Matera, no sul da Itália, uma das cidades mais antigas continuamente habitadas no mundo, com inúmeras construções históricas escavadas em pedras. Em razão disso, ela foi usada como locação para filmes bíblicos, entre eles O Evangelho Segundo Mateus, de Pasolini (1964), e A Paixão de Cristo, de Mel Gibson (2004). Assim como Pasolini, o diretor Milo Rau dramatiza a paixão e morte de Cristo, utilizando para isso os próprios habitantes de Matera, que hoje inclui uma população de migrantes africanos. O papel principal coube a Yvan Sagnet, camaronês radicado na Itália, escritor e ativista pelos direitos dos imigrantes. Em uma entrevista coletiva, Rau e Sagnet explicam que não se trata de produzir um filme, mas de contribuir para uma série de lutas a que pretendem dar voz a partir de sua realização. A vida miserável dos migrantes (em grande parte africanos), suas precárias residências e as cenas de ensaio e gravação, bem como a dos protestos por melhores condições de trabalho e direitos sociais, se intercalam. Os acontecimentos vão se acirrando, numa escalada emocionante.
É preciso fazer as devidas mediações entre o que acontecia nos países desenvolvidos e no restante do mundo. Muitos países mais pobres nunca chegaram a ter um Estado de Bem-Estar Social ou pleno emprego formal. No Brasil, a redução do tamanho das famílias ocorreu com políticas de controle da natalidade, mas, em países africanos e asiáticos, o número de filhos ainda permanece alto. A diferença é que, em face da pobreza, o recurso à família ainda é o único possível. São desses países da periferia do capitalismo, que sofrem os efeitos da colonização, que vieram (via escravização) e continuam a vir (via migração, interna ou externa) aqueles que irão desempenhar os piores trabalhos – entre eles, as profissões do cuidado doméstico, antes desempenhadas pelas mulheres, pelas famílias extensas ou pela política social.
Diversamente dos dois filmes anteriores, os seguintes desvelam todo um mundo interior, seja a partir da subjetividade, seja a partir do privado, possibilitando um olhar sobre os papéis do cuidado ou da subserviência, tradicional e massivamente atribuídos às mulheres. O curta Filipiñana mostra o cotidiano da tee-girl Isabel. Seu trabalho é, basicamente, limpar e organizar bolinhas num campo de golfe, além de permanecer sentada no ponto inicial do jogo (o tee), próxima ao chão, para colocar as bolas no ponto para a tacada do golfista. O espaço é exíguo, e o taco passa a poucos centímetros do seu rosto. Ao contrário do caddie, que é considerado um desportista, a tee girl sequer é mencionada nas regras do jogo. De fato, aparentemente essa ocupação não parece ser muito comum fora das Filipinas. O campo de golfe é um microcosmo da sociedade filipina, na qual há aqueles que podem gozar da boa vida, os profissionais de médio status, os capatazes – como a gerente que repreende Isabel por circular nas demais áreas do campo – e a base da pirâmide, as tee girls, com pouquíssimas alternativas de mobilidade, como os planos rente ao chão das meninas agachadas exemplificam.
Os documentários Cuidadoras a Caminho e Noite Adentro mostram diferentes faces das profissões do cuidado, tão necessárias quanto precarizadas. Cuidadoras a Caminho enfoca jovens mulheres em um Centro de Treinamento de cuidadoras de idosos na região de Java Ocidental, a mais populosa da Indonésia. O Centro também agencia mulheres para trabalhos em outros países. O serviço é privado e cobrado por meio de empréstimos assumidos pelas famílias. Cerca de 3,5 milhões de mulheres, dos quase 230 milhões de habitantes da Indonésia, foram enviadas como empregadas domésticas para países como China (Taiwan) e Malásia. Usualmente, elas prestam serviços em residências, com jornadas de 19-20 horas de trabalho e pouquíssimas folgas. Além disso, as exigências que têm de cumprir não são poucas: não podem ser muito magras – pois não poderiam carregar os idosos – nem muito gordas; devem estudar mandarim e inglês, apesar da sua pobreza, e realizar todo o trabalho doméstico (alimentação, limpeza), além do cuidado com o idoso. Apesar do trabalho árduo, os ganhos são atraentes – chegam a 6 vezes a remuneração em seu país natal. O documentário mostra as relações hierarquizadas entre homens e mulheres, as obrigações decorrentes dos casamentos, que são arranjos entre famílias, com pagamento de dote (ainda que modesto), e uma certa infantilização dessas mulheres, apesar da responsabilidade que carregam.
São apresentadas duas moças solteiras, Sukma e Meri, ambas na casa dos 20 anos. Suas diferenças mostram experiências – e expectativas – diversas em relação ao trabalho que irão enfrentar. Elas constituem a chamada Cadeia de Cuidado Global, na qual a mulher que trabalha nos países ricos deixa seus filhos sob o cuidado de uma mulher migrante de um país pobre, que, por sua vez, deixa seus filhos a cargo de outras mulheres de sua família no país de origem. Essa trabalhadora, não raro, pertence a grupos etnicamente subordinados.
Noite Adentro se passa em New Rochelle, a 40 km da cidade de Nova Iorque. Retrata a creche 24 horas administrada por Nunu e Pop Pop, casal que sobrevive do negócio e graças a ele obtém certa ascensão social. Nunu era uma dona de casa que vivia em um porão, onde começou a cuidar de filhos de vizinhos e conhecidos informalmente. O negócio cresceu e ela pôde comprar sua própria casa, onde vive e estabeleceu seu negócio. Lá, cuida de crianças racialmente diversas, a maioria negras e latinas, mas todas com mães que precisam trabalhar em diversos empregos, somando uma jornada laboral extensíssima. A organização do trabalho nos EUA acaba incentivando jornadas curtas e mal remuneradas para determinados empregos – o limite de 29 horas semanais permite o pagamento de menores benefícios. Nunu é sensível ao drama das mães, que vivem a culpa em meio à necessidade, muitas provedoras únicas de seus domicílios. Ela mesma, apesar da melhora de vida, não tem tempo para lazer ou cuidados com a saúde. Ainda que se possa pensar que ela pode conciliar suas atribuições maternas com a sobrevivência, podemos acompanhar o duro cotidiano do cuidado intercalado a imagens que remetem à contemplação, à qual essas mulheres não têm direito – nem tempo.
Mulheres de Farda mostra outra face dessa moeda: mulheres profissionais que exercem um ofício fortemente masculino, o trabalho policial. Neste documentário, que busca retratar os bastidores da polícia de Minneapolis pela perspectiva de quatro policiais femininas, testemunhamos como essas mulheres acabam envolvidas na política de segurança pública local, numa tentativa de torná-la menos violenta e discriminatória. A cidade é atravessada há décadas por conflitos raciais que não se resolvem, ao contrário, parecem estar se acirrando em uma espiral de violência – que culminaria, em 2020, na morte de George Floyd. A proposta do documentário, iniciado em 2017, não é, portanto, aleatória: a cidade foi considerada pela NAACP como uma das mais desiguais racialmente dos Estados Unidos.
Para enfrentar o problema da violência policial, Janee Hartreau havia sido nomeada chefe do departamento de polícia. É a primeira mulher a ocupar um cargo de chefia na instituição, que tem, pelo menos, 150 anos de existência. Janee se empenha em nomear tanto mulheres quanto homens – muitos deles, negros – em posições-chave de seu gabinete. Uma das policiais nomeadas é Alice White, que será instrutora de um novo programa de treinamento para melhorar as abordagens e diminuir a violência policial. Por ser mãe negra e, portanto, particularmente sensível ao racismo estrutural da sociedade norte-americana e à violência policial que dele decorre, fica evidente o impacto de sua atuação nessa instituição. O programa parecia ter dado resultados, com a queda do número de baleados pela polícia em cerca de 41%, entre outras estatísticas. Porém, a morte de uma mulher branca por um policial negro em julho de 2017 eleva novamente o tom dos protestos, agora turbinados por parcelas da população branca, o que causa a demissão de Hartreau. O documentário tem a qualidade de mostrar a complexidade da implementação de uma política pública ao lidar com estruturas sociais hierarquizadas a partir de raça, classe e gênero, além das disputas políticas em curso na cidade.
A seleção nos dá um panorama das mudanças do trabalho no capitalismo global através de suas beiradas, seja nos empregos da base da pirâmide nos países ricos, seja nos mais precarizados nos países pobres. Nessas beiradas, as mulheres são as protagonistas, responsáveis por manter a família, os filhos e os vínculos nas suas comunidades. Um exemplo de o quanto as mulheres estão culturalmente mais propensas a praticar o cuidado pode ser observado numa estatística da pandemia: cidades brasileiras governadas por prefeitas tiveram 44% menos mortes do que a média das cidades administradas por homens. A cultura do cuidado, disseminada entre as mulheres, não é um dote natural, mas fruto de atribuições de gênero. As empresas já vêm enxergando vantagens em incluir em seus processos seletivos parâmetros que privilegiam diversidades racial e de gênero. Poderá essa mudança gradual no mundo do trabalho enriquecer e tornar mais justas a política, o trabalho e a vida?
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*ARLENE RICOLDI é socióloga. Atua no movimento feminista, especialmente junto à União de Mulheres de São Paulo, que chegou a presidir. Fez mestrado e doutorado na Universidade de São Paulo (USP), estudando a mobilização de movimentos sociais por direitos humanos por meio da educação popular, especialmente em relação às mulheres. Foi pesquisadora da Fundação Carlos Chagas entre 2010 e 2016, na qual participou de pesquisa sobre trabalho das mulheres, divisão sexual do trabalho e indocumentação de mulheres trabalhadoras rurais. Durante a gravidez, ingressou, em 2016, na Universidade Federal do ABC (UFABC), na qual dá continuação à pesquisa, além de orientar pesquisas e lecionar sobre Cidadania, Direitos Humanos, Sexualidade, Política e Diversidade Cultural, sempre com enfoque da interseccionalidade, principalmente entre Gênero, Raça e Classe Social.