Texto sobre os filmes da temática Trabalho do Panorama Internacional Contemporâneo
Por Ricardo Festi*
A crise sanitária causada pela pandemia da Covid-19 é global e totalitária. Ela atingiu todos os países e camadas da vida social, convertendo-se, em muitas regiões, em crises econômicas, sociais e políticas. Dentre as esferas que mais têm sido atingidas – e gerado incertezas sobre o nosso futuro –, está a do mundo laboral. Sendo o trabalho um elemento constitutivo do ser social e, portanto, estruturador da sociedade, a sua radical transformação poderá ter consequências incalculáveis. Fala-se de uma inflexão histórica e do surgimento de um “novo normal” no pós-pandemia. No entanto, tudo indica que se intensificarão as tendências de maior precarização do trabalho, transformando algumas exceções dos tempos viróticos em regras.
Antes da pandemia, afirmava-se que estávamos em pleno processo de uma quarta revolução tecnológica. Disruptivas, as novas tecnologias de informação e comunicação, assim como as novas máquinas automatizadas, passariam a ser incorporadas no mundo do trabalho e no cotidiano de nossas vidas. Um admirável mundo novo, ultramoderno, de máquinas que se autogovernam e se autocomunicam, era contemplado por vários setores da sociedade. No entanto, o planeta se viu obrigado, no início deste ano, a paralisar suas cadeias globais de produção, fechar suas fronteiras e submeter parcelas significativas da população ao isolamento social. Com isso, viu-se que o projetado era uma ilusão, trazendo à tona suas contradições.
Um impacto visível na vida das pessoas, ainda durante a pandemia, foi o salto qualitativo na necessidade de mediarmos as nossas relações sociais com os recursos virtuais. Exemplo disso é a excepcionalidade desta edição da Mostra Ecofalante, que acontecerá por via remota, com o auxílio de uma plataforma digital. No caso da seção sobre o mundo do trabalho, ela conta com quatro espetaculares filmes que abordam diferentes realidades e perspectivas sobre as condições de trabalho e sua exploração por parte do capital, assim como suas múltiplas formas de resistências.
Nas últimas décadas, o capitalismo em sua fase neoliberal globalizou sua produção, deslocando-a dos países ricos para os periféricos, em particular os asiáticos. Aqui, encontrou-se uma força de trabalho muito mais barata e disposta a altas jornadas de trabalho. Consequentemente, baratearam-se os produtos e acelerou-se o processo de desindustrialização dos países centrais. Essa é a realidade retratada em Botando pra Quebrar, filme de Lech Kowalski, no qual os operários da fábrica de autopeças GM&S, localizada em La Souterraine, no interior da França, viram-se obrigados a ocupá-la diante da possibilidade de seu fechamento e da perda de seus postos de trabalho, ameaçando explodi-la caso suas demandas não fossem atendidas.
Indústria Russa, documentário de Petr Horký, explora os conflitos e resistências ocorridos no interior da lendária fábrica de automóveis AvtoVAZ quando da chegada de um novo CEO, o sueco Bo Inge Andersson. Este promete tirá-la de sua aguda crise econômica e reestruturá-la sob a lógica do capitalismo. Famosa nos tempos soviéticos, com a fabricação do automóvel Lada, a fábrica está localizada na cidade de Tolyatti, à margem do rio Volga, e ainda hoje é uma das maiores empresas estatais da Rússia. O filme nos lembra o vencedor do Oscar Indústria Americana (2019) [American Factory], de Reichert e Bognar. Em ambos, os cinegrafistas puderam registrar várias das reuniões dos executivos e acompanhar as tentativas de implementação de uma nova cultura de gestão nas empresas. Na ótica de Andersson, a fábrica russa estava permeada por grosseiras ineficiências, empregos redundantes, vícios de gestão e falta de iniciativas na gerência. No entanto, sua proposta de reforma, que incluía demissões e a interrupção da compra de peças produzidas na região, não levou em consideração o fato de que a fábrica é a força motriz econômica e social da cidade e, por conta disso, a resistência ao seu projeto foi unânime. Como disse um engenheiro elétrico da empresa, “um humano morre quando seu coração para de bater. Quando uma fábrica morre, nossa cidade morre com ela!”.
O filme de Horký ilustra bem a Rússia dos tempos de Putin e a nostalgia dos tempos soviéticos entre sua população. Por isso, o diretor retrata muito bem o contraditório desejo dos operários de tornar a AvtoVAZ uma fábrica competitiva globalmente, sem, contudo, abandonar seus tradicionais hábitos e costumes locais. Como ressalta Svetlana Alexievitch, em seu clássico O Fim do Homem Soviético, “só um soviético pode compreender um soviético. Nós somos todos uma só e mesma memória comunista. Nós somos vizinhos de memória” (p. 19). Andersson não compreendeu isso e sucumbiu no posto.
Dispostos a defender os seus empregos a todo custo – e, consequentemente, um certo modo de vida ameaçado de desaparecer –, os trabalhadores da França e da Rússia, retratados nos documentários, insubordinaram-se por diferentes vias. No hexágono, os trabalhadores e trabalhadoras reafirmaram a tradição operária de maio-junho de 1968, quando milhares de fábricas foram ocupadas em todo o território francês. O filme de Kowalski, na perspectiva em que dá voz ao coletivo de trabalhadores e não a uma única “liderança”, lembra-nos os trabalhos do grupo Medvedkine, composto por Chris Marker e Jean-Luc Godard.
Assim, a ação radical de ocupar a fábrica e ameaçar sua explosão fez com que a GM&S se tornasse um problema nacional, obrigando até mesmo o Presidente da República a se pronunciar sobre o assunto. No entanto, diferente do contexto dos “Trinta Gloriosos” – como ficou conhecido o excepcional período de crescimento econômico da Europa ao longo do pós-II Guerra Mundial – de 1968, Botando pra Quebrar nos remete mais à situação da Argentina de 2001, quando o país foi brutalmente atingido pela crise do neoliberalismo, o que fez com que centenas de fábricas falissem e milhares de trabalhadores decidissem ocupá-las e colocá-las sob o seu controle.
Enquanto a economia concreta parece estar ruindo rumo a uma nova grande crise econômica, assistimos ao florescimento do capitalismo de plataforma e da economia digital. A revolução nesse setor acabou por borrar as barreiras tradicionais das fronteiras que antes separavam o trabalho intelectual do manual, o produtivo do improdutivo, a indústria do serviço, a esfera do trabalho da esfera do lazer ou do domicílio e, por fim, o trabalho pago do não pago. É esse último aspecto que a diretora Cosima Dannoritzer aborda em Ladrões do Tempo. Segundo o argumento central do filme, nos últimos anos passamos a ser cada vez mais trabalhadores de empresas de que antes éramos apenas clientes, sem que ganhemos nada pelas atividades exercidas. Se nos anos 1990 as jornadas de trabalho aumentaram por meio da flexibilização das legislações trabalhistas e da legalização das horas extras, agora, com o auxílio das novas tecnologias informacionais-digitais, o trabalho não pago estendeu-se para o nosso tempo livre. Assim, passamos de trabalhadores precários a consumidores precários.
Ladrões do Tempo problematiza uma série de atividades que os manuais empresariais chamam, desde os anos 1950, de “trabalho parcial” realizado pelo consumidor. Trata-se de uma estratégia do capital para diminuir os custos e aumentar os lucros. “Ao golpe de um like, não deixamos de fornecer os nossos dados, que se converteram em um negócio”, ressalta o documentário num dado momento. No mundo da mercadorização total, nunca a consigna liberal “tempo é dinheiro” fez tanto sentido. Mas o dinheiro é produzido para aqueles que nos expropriam o tempo e, com isso, perdemos o controle sobre ele.
Por fim, Ouro da Morte nos faz retornar para a ponta da cadeia produtiva, no caso, a extração de ouro na África Austral. O filme, produzido ao longo de três anos por Richard Pakleppa e Catherine Meyburgh, é baseado em uma sistemática pesquisa de arquivos e coleta de depoimentos na África do Sul, Moçambique, Lesoto e Suazilândia. Seu conteúdo denuncia como o racismo e o colonialismo, duas formas estruturantes da modernidade capitalista, construíram e enriqueceram uma sociedade pautada na supremacia branca, sob o regime da repugnante exploração de mais de 5 milhões de corpos negros ao longo de 120 anos da África do Sul. No documentário, uma voz em off lê as transcrições dos arquivos da Câmara de Minas, uma entidade empresarial criada no final do século XIX para fortalecer a competição de suas associadas no mercado mundial. Na ata da reunião de 1894, ficam explícitos dois objetivos fundamentais da instituição: a manutenção do suprimento e a redução dos salários.
O capital, em seus diversos contextos, precisa criar e recriar as condições para a reprodução social da força de trabalho. Em países ricos, com legislações protetivas consolidadas e arrancadas por lutas sociais, algumas concessões são fornecidas para uma melhor qualidade de vida dos trabalhadores. Já em países periféricos, principalmente aqueles marcados por uma história racista e colonial, as vidas (negras) não importam! Quando um trabalhador adoece por conta do trabalho nas minas, sendo obrigado a voltar para a sua comunidade, outros vêm para substituí-lo. Mas, para que esse ciclo interminável ocorra, o Estado atua litigiosamente criando leis – como os impostos sobre a terra – que dificultam a vida dos indivíduos e os obrigam a fornecer seus filhos saudáveis para trabalhar em outra localidade – no caso, retratado no filme, nas minas de ouro. Sela-se, assim, sob o comando de alguns homens brancos, o destino de milhares de seres humanos.
Os filmes escolhidos para esta seção da Mostra Ecofalante demonstram, por diferentes perspectivas, o papel central do trabalho na constituição da vida social. Ele é definidor na formação de subjetividades, na organização de economias locais e nacionais e na constituição das culturas. A depender de como é organizado, pode ser tanto um fator de coesão, como se evidencia nos filmes russo e francês, como de desagregação social, como fica explícito em Ouro da Morte. Nos primeiros casos, o fechamento ou a reestruturação de uma fábrica ameaçou a vida local e impulsionou seus operários e operárias a lutarem para manter um certo modo de vida. Já no caso africano, o trabalho nas minas de ouro é a ilustração cabal da degradação total do ser humano, semelhante à escravidão. Aqui, os corpos negros são reificados para alimentar a luxúria de alguns poucos brancos.
O título original do documentário francês é On va tout pêter, que pode ser traduzido como “vamos explodir tudo”. Trata-se da frase pichada no tanque de gás líquido, logo na entrada do prédio ocupado pelos trabalhadores, envolto por um dispositivo explosivo. No entanto, além de sua mensagem direta, a frase tem um outro sentido metafórico. Nas manifestações operárias francesas, recorrentemente se canta “Ça va pêter!” (Isso vai explodir!), em referência à disposição de luta quando parece não haver mais nada a perder diante da falta de perspectivas no atual sistema econômico e político, como pudemos ver recentemente com os Coletes Amarelos.
O mundo pós-pandemia tende a aumentar a exploração do trabalho, a desigualdade social e econômica e as formas mais precárias de trabalho. Num processo de desagregação da integração social, a sociedade capitalista tem intensificado as formas arcaicas de dominação, como o patriarcado e o racismo. Nesse cenário, há indicações de que muitas fábricas falirão e postos de trabalho serão fechados ou substituídos por máquinas automatizadas. Enquanto isso, o 1% segue aumentando as suas riquezas às custas da grande maioria da população. Resta-nos saber para onde irá a sociedade quanto tudo o que é sólido se desmanchar no ar.
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*RICARDO FESTI é Professor Adjunto de Sociologia na Universidade de Brasília. É autor da tese “O Mundo do Trabalho e os Dilemas da Modernização: percursos cruzados da sociologia francesa e brasileira (1950-1960)”, defendida em 2018 pela UNICAMP. Fez estágio de pesquisa na École des Hautes Études en Sciences Sociales, em Paris, em 2015-2016. Publicou artigos em revistas científicas e organizou dossiês sobre a obra de Michael Löwy e Alain Touraine. Tem pesquisado no campo da sociologia do trabalho.