Texto sobre os filmes do eixo Emergência Climática do Panorama Internacional Contemporâneo
Por Marcos Buckeridge*
Se houvesse uma emissora de TV ou um jornal extraterrestre documentando o que acontece aqui na Terra com base nos filmes do eixo Emergência Climática da 11ª Mostra Ecofalante, uma possível chamada do programa seria: “Caminhando a passos firmes para a marca de 9 bilhões de habitantes, a horda de indivíduos da espécie H. sapiens continua mostrando sua capacidade destruidora sobre a biosfera do terceiro planeta do sistema solar, a Terra. No planeta há várias outras espécies sociais, como as formigas. Elas causam uma aura de efeito sobre o ambiente onde se instalam. Mas os mamíferos, até agora, estão ganhando de longe na competição por alterações deletérias ao seu planeta. É uma espécie formidável e com grande capacidade criativa. Mas será que conseguirá sobreviver em meio aos seus próprios impactos?”
Os filmes desta seleção poderiam dar continuidade à cabeça da notícia ilustrando o que vem acontecendo no processo destrutivo. Um deles é o filme Demônios Invisíveis, do cineasta indiano Rahul Jain, que mostra, através do que acontece em Nova Delhi, como um sistema consegue atingir um nível realmente alto de deterioração. No entanto, o pacote de notícias levaria os extraterrestres a uma visão parcial do problema. Ao olhar a origem e o foco dos filmes, eles veriam que não são todos que estão preocupados. Veriam que há continentes enormes que não se manifestam, apesar de abrigarem populações consideráveis da tal espécie H. sapiens. Comentaristas especializados em Terralogia explicariam que isso se dá porque o nome que a espécie deu a si mesma talvez ainda não seja lá muito apropriado. Uma parte merece sim ser considerada sapiens, mas há dúvidas quanto a uma boa parcela deles.
Consciência e Realidade
Em uma pequena vila na França, Emmanuel Cappellin, o diretor de Uma Vez Que Você Sabe, se inspirou na leitura, anos antes, de ninguém menos do que Donella Meadows e os demais autores do livro The Limits to Growth (“Os Limites para o Crescimento”). Atendendo a uma solicitação do Clube de Roma, Meadows comandou um grupo para responder à pergunta: é possível crescer continuamente? A resposta foi um óbvio NÃO. Mas ela não foi tão simplória. Para responder, Meadows e seu time desenvolveram modelos computacionais que permitiram avaliar diversos aspectos do crescimento.
O diretor declara que o fio condutor de seu filme é o trabalho de Meadows. Primeiro ele mostra as ideias revolucionárias de um ativista francês jovem (também fã de Meadows) que tenta convencer as pessoas a mudarem a forma de viver. O foco está na visão de um colapso iminente. O narrador inclusive fala da esperança de uma “ditadura verde” que force todos a viver de maneira mais sustentável. Cita a China como exemplo de um país que impõe a energia eólica sobre o seu povo, mesmo que ele não queira.
Comentarista: Ingênuo, pois muitos dos terráqueos já sabem dos problemas que a energia eólica produz nas pessoas (sombras, mudança local de ecossistemas, depressão etc.). Ou seja, mesmo que esse seja um custo, devemos impor uma ditadura verde? Que diferença há do capitalismo vigente agora em praticamente todo o planeta?
Em uma viagem que o leva a vários continentes, o narrador conversa com cientistas especializados em mudanças climáticas e que inclusive trabalharam no Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (o IPCC das Nações Unidas). Ele mostra a pobreza e a vulnerabilidade de Bangladesh, para onde decidiu ir de barco (um cargueiro) e depois viaja (agora de avião) para São Francisco e Massachusetts, nos EUA. Ele encontra um escritor ativista que, dirigindo um automóvel, vai criticando o excesso de automóveis e de consumo de petróleo. Depois, conversa com uma geógrafa que também teve experiência no IPCC e vê o caminho do desenvolvimento como rumo ao desastre. De volta à França, mostra cenas de ativismo e participa da Conferência das Partes (COP21). Termina com o retorno à vida comum, com uma visão de esperança – desde que a revolução ocorra –, com seu filho correndo nas ruas da pequena cidade francesa.
Nosso comentarista extraterrestre especialista em Terralogia poderia dizer: não dá para entender como, depois de revoluções sangrentas, alguém na França ache que simplesmente voltará à vida comum imediatamente após uma disrupção abrupta do funcionamento de um sistema tão complexo quanto a civilização sapiens. Como demonstrado pela história, as implicações de uma revolução abrupta são enormes e leva gerações para esse retorno à estabilidade. Desligar o uso do petróleo apertando um botão é uma ilusão. Não há como fazer isso sem causar danos irreparáveis à economia e à grande maioria dos sapiens. Os efeitos seriam um desastre de dimensões ainda maiores do que a própria mudança climática. Talvez seja sim possível controlar o crescimento, mas a palavra correta não seria “revolução”, mas talvez “transição revolucionária”.
Demônios Invisíveis é um choque de realidade. Pelo menos a realidade em alguns lugares do planeta. Com estrutura de roteiro similar ao filme Uma Vez Que Você Sabe, o diretor sai do conforto de sua casa em um bairro nobre de Delhi e ingressa nos horrores da vida dos miseráveis da cidade. Ao longo do filme, seguimos uma repórter de TV que vai entrevistando pessoas da megalópole indiana. O foco é nas altas temperaturas, nas enchentes e na poluição, que, além de causar doenças, interfere nos rituais religiosos, mas não impede que sejam realizados, mesmo em áreas nitidamente sem condições para tal, como rios cobertos por espuma. A TV informa, em um dado momento, que 2/3 do país está alagado e o roteiro vai atribuindo os eventos, direta ou indiretamente, às mudanças climáticas. Então, a poluição é colocada em contexto, com os materiais particulados produzidos pelos combustíveis fósseis e as queimadas como vilões principais. Aprendemos que 1,5 milhão de pessoas já morreram por causa do material particulado emitido para a atmosfera – um número superior às vítimas da guerra com o Paquistão. Trazendo imagens de vacas (animais sagrados para os indianos) vivendo em um dos lixões de Delhi, o filme provoca choque, mesmo em quem não é originário da Índia. Após empilhar uma coleção de problemas que Nova Delhi parece abrigar como poucos lugares no mundo, o filme finaliza com a pergunta: “como seria o mundo sem desenvolvimento?” E termina com vacas vivendo em um ambiente de floresta.
Comentarista: Os H. sapiens possuem um cérebro reptiliano, um vestígio biológico fundamental que lida com as emoções e é o que funciona muito bem quando os sapiens se sentem ameaçados. O mesmo vale para a maioria dos animais. Por isso, ao mostrar algo extremo, cria-se pânico e os indivíduos da espécie respondem rapidamente através de uma reação de fuga ou de ataque ao agressor. Os extremos mostrados são situações ambientais que a civilização sapiens não deve permitir em seu planeta. Provocar choque de realidade com ameaças, mesmo que seja em outra parte do mundo, funciona como um alarme. Só resta saber se os indivíduos da espécie que vivem em regiões do planeta onde essa não é a realidade irão responder ou não de forma emocional. Isso vale ainda mais para os tomadores de decisão.
Em sua visita aos EUA, o diretor de Uma Vez Que Você Sabe atribui os incêndios da Califórnia às mudanças climáticas. Ainda que o aumento descontrolado dos incêndios tenha a ver com as mudanças climáticas, pois as temperaturas mais altas combinadas com seca favorecem as condições para o fogo, há outras explicações naturais. Essa região é uma das zonas endêmicas de fogo no planeta. Tanto é que as populações indígenas nos EUA já controlam o fogo há séculos. Hoje, a população e os bombeiros dos EUA aprendem com elas.
Além do domínio do manejo do fogo, o documentário Primeiros Habitantes: Uma Perspectiva Indígena mostra como os indígenas conseguem plantar milho e feijão em meio ao deserto do Arizona. A produção de milho é tema de um dos personagens indígenas que defende, na Universidade do Arizona, a sua tese de Ph.D. sobre o uso do conhecimento tradicional. Entre outros pontos, ele menciona que o plantio do milho em longas curvas já era conhecido dos índios há 2.500 anos.
As tensões entre a cultura americana e a dos povos tradicionais é colocada em perspectiva em todo o documentário, que mostra que os indígenas já estavam adaptados ao ambiente na América do Norte quando os europeus arrogantemente invadiram e tomaram o espaço, causando uma “revolução” que custou perdas enormes de vidas e de cultura.
Primeiros Habitantes: Uma Perspectiva Indígena expõe a estratégia terrível dos colonizadores de dizimar os búfalos para acabar com os índios. Os colonizadores conseguiram: exterminaram praticamente toda a população de búfalos e de índios no país. Animais extremamente bem-adaptados ao inverno rigoroso no deserto, os búfalos são resistentes ao frio e à seca. Os europeus não entenderam isso quando chegaram à América do Norte. Se a população de búfalos era de centenas de milhões, hoje é reduzida a algumas centenas de milhares.
O documentário vai ao Havaí e mostra as “florestas de frutas” que eram cultivadas pelos nativos das ilhas havaianas e mantinham as populações perfeitamente bem alimentadas. Da mesma forma que com os búfalos, esse sistema foi simplesmente ignorado e substituído por agricultura tradicional.
No manejo das árvores e do fogo, os indígenas, cuja cultura resulta de milhares de anos naquela região, são imbatíveis. Dando um show de sustentabilidade, mostram uma madeireira conduzida por indígenas que só abatem as árvores mais velhas que vão de fato decair, ou então que apresentam alguma doença e vão morrer. Mantêm e protegem as árvores mais jovens, que serão a madeira do futuro.
O que é mostrado em Primeiros Habitantes: Uma Perspectiva Indígena está espalhado por todos os continentes. Os chamados conhecimentos tradicionais não são formas ingênuas de lidar com a natureza, como alguns pensam. Eles provêm de milhares de anos de experiência em lidar com o meio ambiente. Mesclar as tecnologias desenvolvidas pelo padrão europeu-americano de desenvolvimento com os conhecimentos tradicionais pode ser o caminho mais sustentável a seguir.
Comentarista: Às vezes é difícil de entender esses H. sapiens. Eles tinham tudo à mão, desenvolveram uma consciência até razoável de seu planeta. Tinham tudo, depois da experiência de milhões deles ao longo de milhares de anos. Porém, simplesmente ignoraram isso. Quando inventaram a ciência, tudo poderia ter ficado mais fácil. Mas eles passaram a dizimar as culturas que tinham acumulado um valioso conhecimento, equivalente ao conhecimento científico, só que mais lento de conseguir.
Consequências Reversíveis?
A reversão dos efeitos provocados pelo H. sapiens é a única salvação. Porém, as coisas não são nada simples. Em Por Dentro do Gelo, que tem imagens de perder o fôlego, uma das maiores especialistas mundiais em gelo ártico mostra que é possível, naquela região, ver literalmente as camadas de gelo depositadas durante o período glacial e também o interglacial. A dinamarquesa Dra. Dorthe, uma das líderes das escavações no gelo ártico, diz que ali se pode pisar com um dos pés em gelo de 11 mil anos de idade e ao mesmo tempo pisar com o outro pé em gelo recente. Ela quer saber o que vem acontecendo no planeta há milhares de anos.
Em aventuras geladas extremamente arriscadas, três cientistas escrutinam a superfície do gelo em busca de dados que permitam saber como o gelo do norte está se comportando. Com 20% a mais de neve desde 1840, a situação se agrava. Apesar da neve proteger o gelo, há também mais chuva, que destrói a camada protetora do gelo. Os pesquisadores concluem que a chuva parece estar ganhando a competição em sua luta contra a neve protetora. Os números obtidos pelos pesquisadores são importantes, pois serão usados nas equações para modelar o mecanismo de degelo e o aumento no nível do mar.
Uma aventura paralela verdadeiramente incrível é a do pesquisador Alun Hubbard, chamado de “caçador de Moulins”. Os Moulins (moinhos) são buracos que aparecem no meio do gelo e funcionam como escoadores de água líquida que vai atingir o mar, mas por baixo da geleira. Hubbard, em sua descida a 180 metros de profundidade, ajuda a produzir imagens verdadeiramente incríveis e inéditas dos Moulins. Com isso, é possível explicar melhor esse outro importante mecanismo de liquefação do gelo ártico.
Esses pesquisadores são verdadeiros heróis que buscam entender mecanismos que permitem aperfeiçoar os modelos matemáticos e calcular melhor o processo de elevação do nível do mar por causa das mudanças climáticas. Esse é um dos fenômenos com a menor reversibilidade entre os impactos das alterações climáticas. Devido à lentidão desses processos, o aquecimento global pode continuar elevando o nível do mar continuamente até 2100. Como 40% das cidades do mundo são costeiras e 80% delas estão a pelo menos 100 km da costa, a grande maioria dos seres humanos será afetada direta ou indiretamente pelos fenômenos que se dão nas geleiras. Com 220 milhões de pessoas vivendo a uma altura de menos de 1 metro do nível do mar, muita gente irá sofrer, pois, segundo a Profa. Dorthe, até o fim do século haverá uma elevação de 1,2 metro em Copenhagen, com tendência de piorar no século XXII. O trabalho desses pesquisadores é absolutamente fundamental para evitar sofrimento desnecessário.
Em Aasivissuit, um local a oeste da Groenlândia, nativos refletem sobre as mudanças na paisagem. Na tundra, a lama – cada vez mais volumosa devido ao derretimento da camada de permafrost – é retirada e exportada para a produção de fertilizantes. Os personagens mencionam que esse uso causa uma destruição do meio ambiente para aumentar a oferta de alimentos para o mundo, inclusive para o Brasil, que agora reclama da falta desse material por causa da guerra da Ucrânia. Esse é o tipo de processo que não tem reversão. O material retirado daquele ambiente circulará pelo planeta em outras formas, através dos alimentos, não havendo maneira de compensar as perdas da tundra, um ambiente com biodiversidade única e extremamente sensível.
Condenados a Ser Fósseis?
As crianças possuem capacidade para compreender fenômenos razoavelmente complexos, mas, se for complexo demais, não conseguem focar sua atenção. Sam, o personagem central do curta Sam e a Usina Nuclear, aparece explicando a um amiguinho mais jovem os possíveis efeitos deletérios da construção de uma usina nuclear nas imediações da região em que moram. A expressão facial do amiguinho diz tudo. Esse comportamento, compreensível em uma criança cujo cérebro ainda está em desenvolvimento, é mais difícil de entender em adultos, que se recusam a aceitar as evidências. Sam quer se tornar um cientista, um biólogo marinho, e faz perguntas a um pesquisador da área que vai explicar o impacto da usina na escola onde Sam estuda. A resposta é, obviamente, evasiva. Afinal, não há como as crianças fazerem perguntas tão profundas, certo? O curta é cínico (no bom sentido), hilário e imperdível!
Na tundra, Holgut – O Primeiro Mamute desenvolve uma trama interessantíssima que começa com um garoto vindo da cidade grande para aprender a caçar com o pai na tundra. Só que não há mais o que caçar, a não ser fósseis de mamutes, que são abundantes na região. Por vezes, corpos inteiros do animal são encontrados, inclusive com pedaços de carne, o que oferece uma chance de ouro aos pesquisadores de obter DNA e ambicionar clonar um animal completo. De fato, alguns pedaços de tecido já foram clonados, mas ainda não o animal inteiro. A trama se transforma na busca de um animal completo ou de pedaços de carne. Há um momento em que o cientista, que é o personagem central na história, conta que uma vez encontrou pedaços de tromba com vestígios de sangue e carne macia e preservada. Mas, ao retornar à Coreia, a espera pela burocracia para poder iniciar as análises acabou levando à perda das amostras, que rapidamente se deterioraram.
Será que a nossa burocracia e lentidão em agir levará alguma outra espécie, daqui ou de outro planeta, a encontrar vestígios de tecido humano preservado que permitam clonar esse animal peculiar, o H. sapiens? Nosso destino é nos tornarmos fósseis?
Comentarista: Não é possível conceber como o H. sapiens, no longo prazo, não vá desaparecer do planeta e dar lugar a alguma outra espécie que tenha melhor desempenho. Assim é a evolução, provavelmente em qualquer planeta no universo onde a vida se baseie em algum código genético, seja o DNA ou outra molécula. O ponto aqui não é “se”, mas “quando” isso vai acontecer. No entanto, a pergunta que se faz é: precisa ser agora? No século XXI?
Esperança
Perseverar é uma característica dos seres humanos. Sempre há uma parcela da população que persevera e consegue se adaptar. De uma beleza pungente, Caminhando sobre as Águas conta a história das mulheres de Tatiste, uma aldeia no meio do deserto no Níger onde a situação se agrava com a falta d’água devido à seca. Essas mulheres não conseguem manter seus filhos na escola porque têm que buscar água muito longe e praticamente todo o seu tempo é gasto nisso. Há água subterrânea e ela é a diferença entre o avanço da educação das crianças da aldeia e a migração.
A vontade política pode se unir à perseverança e abrir o caminho para educar. E a educação é a única porta para o ciclo virtuoso. Mas, para que o ciclo seja verdadeiramente virtuoso, é necessário que a cultura seja melhor compreendida e incorporada, como sugere Primeiros Habitantes: Uma Perspectiva Indígena.
Outro filme com um tema similar, mas em outro local da África, o Marrocos, também coloca a educação como foco central. Desta vez, em Escola da Esperança, uma nova escola é aberta em meio a famílias nômades que veem de maneira distinta a importância da educação. O problema central é o mesmo que em Caminhando sobre as Águas: a distância para se conseguir água em um momento de seca excepcional.
A dura realidade do dilema entre manter sua cultura ou ir para a escola é um ponto de tensão entre pai e filho. Em um choque de gerações, o mais jovem consegue perceber melhor que a educação pode ser um caminho para uma vida melhor, em um futuro em que seu modo de vida não será mais possível. O professor da escola é obstinado. Ensina as crianças com praticamente nenhuma infraestrutura, inclusive sem banheiro. É nessa situação extrema que se vê mais claramente como a mudança climática pode afetar a educação dos mais pobres. Em todo o mundo haverá condições desse tipo.
Comentarista: Esses animais H. sapiens são mesmo interessantes. Teremos que esperar para ver o que irá acontecer com eles. Talvez percam o controle de todo o sistema de organização que inventaram, mas não dão sinais de que deixarão de se levantar e começar tudo novamente.
Mesmo no ambiente mais inóspito, o ser humano tende a mostrar a sua capacidade adaptativa de formas inusitadas. Foi assim desde que a ainda desconhecida “faísca” levou o Homo sapiens a iniciar a evolução da linguagem, produzir arte, religião e ciência. A “faísca” (mutações, conjunção de fatores socioculturais?) possibilitou que a área pré-frontal do cérebro dessa notável espécie animal fizesse interações entre elementos de conhecimento de uma forma inusitada. Permitiu assim que o Homo sapiens se tornasse altamente adaptativo ao planeta. Há uma cena em Uma Vez Que Você Sabe que provavelmente é a mais importante de todos os filmes: numa roda de conversa, uma senhora mais velha faz um depoimento emocionado sobre como agora, com uma idade bem mais avançada, ela consegue perceber o mundo de forma sistêmica. Uma outra mulher na roda explode em lágrimas, pois compreendeu algo de uma forma não explícita ou objetiva, mas com a capacidade incrível que tem a área cortical de nosso cérebro de produzir interrelações proveitosas com o cérebro reptiliano e entre as coisas que experimentamos em nosso planeta.
Terralogia, uma Ciência Confusa
Fichamento da matéria: Entender esse planeta e essa espécie é realmente um desafio. Talvez a forma colocada pela senhora em Uma Vez Que Você Sabe seja a melhor para essa compreensão, ainda que tudo continue tão nebuloso e pouco objetivo como parece. O sistema terrestre é muito mais do que o H. sapiens e a sua consciência, ainda que não diretamente por meios evolutivos, como o escritor-educador entrevistado em Uma Vez Que Você Sabe coloca. A melhor forma de abordar a questão é através de uma concepção sistêmica do planeta como um conjunto de interações entre tudo o que é vivo. Uma biosfera imersa em matéria física e capaz de transformar e usar os grandes átomos criados a partir dos ciclos de vida das estrelas e galáxias. Alguns espécimes de H. sapiens já atingiram esse nível de compreensão, mas ainda são poucos. Sobra aí uma pergunta que pode fazer a diferença para o destino da espécie: quem convencerá quem de quê?
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*MARCOS BUCKERIDGE é Professor Titular da Universidade de São Paulo. É mestre em Biologia Molecular pela UNIFESP e Ph.D. em Plant Biochemistry pela Stirling University, na Escócia. Fundou e coordena o Centro de Síntese USP-Cidades Globais, que tem como foco o bem-estar do cidadão por meio de uma abordagem sistêmica e transdisciplinar. Entre 2018 e 2022, Buckeridge se tornou Diretor do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo. É Assessor Sênior do Reitor da USP e coordena o programa interdisciplinar Eixos Temáticos da USP.