Texto sobre os filmes do eixo Economia do Panorama Internacional Contemporâneo
Por Ladislau Dowbor*
Vimos, em outros eventos da Ecofalante, filmes de grande impacto sobre, por exemplo, a destruição das abelhas no mundo pela indústria dos defensivos agrícolas para que tenhamos nossas deliciosas amêndoas, ou sobre o encadeamento que leva a que crianças trabalhando em condições penosas no Gana no processamento do cacau nunca vejam o luxo (e os preços) dos chocolatinhos belgas ou suíços. Ao filmar as diversas etapas dos ciclos econômicos, documentários ambientalistas permitem ver o ciclo completo do processo, o drama da exploração e da destruição ambiental em uma ponta, em países mais pobres, e a pujança das prateleiras nos supermercados em Londres ou em Bruxelas. São circuitos econômicos desiguais que resultam na ruptura entre os interesses financeiros corporativos e os objetivos sociais e ambientais da humanidade.
Documentários sobre os sistemas econômicos são fundamentais, pois o que é a miséria na origem simplesmente não é visto pelo consumidor final, enquanto o produto que nos apresentam em lindas embalagens e com publicidade cheia de vozes macias e amorosas – “dedicação total a você” – é desconhecido por quem planta e colhe cacau. O mundo real tem de ser apresentado no seu ciclo completo, e esses documentários sobre economia juntam as pontas. Não se espera que Hollywood ou a TV comercial empreendam algo nesse sentido: querem que vivamos na fantasia. Mas apresentar a vida em suas nuances pode ser muito mais rico, e comove.
Os oito documentários do eixo Economia que são apresentados nesta 11ª Mostra Ecofalante são diferentes, no sentido de que constituem menos análises dos ciclos econômicos e que se concentram em imagens do nosso cotidiano, um tipo de pintura impressionista de como as pessoas vivem o mundo da economia, nas suas diversas dimensões. São mais retratos de vida do que análise de ciclos, e, curiosamente, geram um impacto poderoso. Pois, ao vermos esses diversos cotidianos, da China à Venezuela, da Rússia à Colômbia e à Grécia, nos damos conta do mundo surrealista que estamos construindo.
A China aparece com força, o que é positivo, dado que se trata já da primeira economia mundial, de quase 20% da população e de uma dinâmica de transformação extremamente poderosa. Em A Rota do Mármore, de Sean Wang, vemos o nosso cotidiano planetário simbolizado na produção de mármore, bruto ou em estátuas e diversos subprodutos, fazendo a ponte entre a Grécia, com as suas esculturas maravilhosas, e o cotidiano moderno da reprodução em massa. Executivos e técnicos equipados de computadores e de linhas de produção automatizadas circulam entre as cadeias de produção de Vênus de Milo e de David, alternados com bonecos de Papai Noel, tudo em mármore de alta qualidade, com perfeito acabamento. Até o nosso Cristo Redentor carioca aparece em diversos tamanhos. “You dream it, we do it”, declara um empresário: o que você sonhar, nós fazemos. A partir da China, uma visão do world stone market, o mercado mundial da pedra. E não é qualquer pedra. O que somos nós, consumidores, nisso tudo? Bem, posso ficar olhando para uma Vênus de Milo, aqui na minha prateleira, em vários tamanhos, enquanto trabalho no computador. A cópia é perfeita; de onde, então, vem o meu mal-estar?
O filme de Jessica Kingdon, Ascensão, também se debruça sobre essa sociedade em pleno avanço econômico, com capacidade espantosa de produção automatizada, mas com cidadãos à procura de rumos e modelos. Uma civilização que é projetada, em duas gerações, das tradições e do cotidiano rural, para um universo dramaticamente diversificado de consumo de massa, em que todos buscam encontrar os seus rumos e, em particular, as suas identidades. As escalas são prodigiosas: a China precisa produzir 4,2 bilhões de refeições por dia. Mas também produz o que há de mais moderno e frequentemente de mais fútil na sociedade mundial, e em particular ocidental. Com a inundação de produtos cosméticos rebuscados, de antessalas luxuosas nas empresas, de busca permanente por se distinguir em uma sociedade de massa, surgem comportamentos que frequentemente se espelham diretamente nas elites ocidentais, que Jessica Kingdon foca em particular. Como ser alguém em uma sociedade anônima, com modelos de comportamentos para tudo? A economia é importante para assegurar o essencial. Mas quando inunda o nosso cotidiano com mensagens de como devemos ser, os resultados podem ser patéticos. Estamos querendo “ascender” para onde?
Ainda sobre a China, o curta Se Você A Vir, Mande Lembranças, de Hee Young Pyun e Jiajun Oscar Zhang, nos projeta em um universo poético de lembranças, fazendo, de certa maneira, a ponte entre um passado mais duro, simbolizado por uma zona de exploração de petróleo, e o cotidiano moderno cheio de luzes e publicidade, mas despersonalizado. O vai e vem das imagens entre os muros sombrios das refinarias, mas que ao protagonista lembram uma jovem que conheceu em outros tempos, e a ofuscante cidade trazem de forma poética a dimensão da perda de referências humanas, a confusão entre o real e o imaginário. Aqui também, essa estranha busca de nos situarmos no universo que se transforma, mas nos desorienta. E o lindo, no filme, é que a conexão com a realidade vem através da lembrança de uma amizade de infância, tênue vínculo humano em um universo de relações funcionais.
Os outros filmes reforçam esse denominador comum – como a humanidade, pessoas concretas, tenta encontrar o seu lugar em uma máquina econômica e social que parece ter traçado a sua rota própria de produção de massa e de exploração desenfreada, coincidindo apenas em pequena parte com as aspirações reais do bem-estar das pessoas, quando não impondo modelos artificiais de sucesso em que as relações humanas e a riqueza do convívio perdem a sua riqueza e autenticidade. De certa maneira, estamos a serviço da economia e dos seus modelos, em vez de a economia estar a nosso serviço.
Esse sentimento de despersonalização aparece com força no filme O Grande Vazio, de Sebastian Mez, levado ao extremo em imagens estáticas, e belíssimas, da solidão de montanhas, de desertos, de estradas e avenidas vazias, alternadas em alguns momentos com movimentação em uma rua comercial repleta de gente, de luzes e de sons, mas na qual circulam as pessoas de forma anônima – a mesma solidão, mas no meio da multidão. O interessante nesses filmes é a ausência de trama, de uma história, de buscar no espectador a vontade de ver o resultado de acontecimentos: como nos quadros de pintores impressionistas, uma imagem estática nos traz um universo de projeções sobre a nossa realidade mais ampla. E, aqui, em cada imagem, a imensidão do vazio humano.
Um Céu Tão Nublado, de Álvaro Fernandez-Pulpeiro, título que podemos traduzir como “Um Céu Tão Poluído”, nos leva para o cotidiano do universo do petróleo na Venezuela, nas suas diversas dimensões. Chamas e fumo das refinarias, no semiescuro das madrugadas, tendo como pano de fundo um céu imenso onde rondam urubus em círculos intermináveis, nos trazem para a realidade do que estamos construindo como sociedade. Um país rico em petróleo, que alimentou uma oligarquia que viveu de rendimentos de exportação, aliada às multinacionais americanas, e que nunca investiu no uso da riqueza natural para desenvolver o país mostra toda a fragilidade de sociedades latino-americanas: não se consegue viver com o desastre que geram as oligarquias, nem construir um país decente contra elas. O resultado é o submundo de comercialização clandestina de combustíveis, de tráfico de dólares na fronteira com o Brasil, a reprodução absurda de uma pré-história econômica erigida em cima de uma imensa riqueza. No centro do filme, imagens de pessoas que tentam sobreviver.
Parêntese: o mundo econômico não é pobre. O que produzimos de bens e serviços em 2021, 90 trilhões de dólares, equivale a 20 mil reais por mês por família de quatro pessoas. O que produzimos é suficiente para assegurar o bem-estar de toda a população mundial, bastando para isso uma redução moderada da desigualdade. Nosso problema não é econômico, é de organização política e social. Neste planeta de 8 bilhões de pessoas, temos 800 milhões passando fome, 2,3 bilhões em situação de insegurança alimentar. Só de grãos, o mundo produz mais de um quilo por pessoa por dia, o Brasil produziu 3,7 quilos na última safra. O chamado Ocidente, com 14% da população, tem 73% da renda, enquanto o resto do mundo, 86% da população, tem apenas 27%. As migrações ultrapassam 100 milhões de pessoas. Apenas 26 pessoas, os maiores bilionários, têm mais riqueza do que a metade mais pobre da população mundial. A falta de água já atinge bilhões, cerca de dois bilhões não têm acesso à eletricidade, que dirá à internet. Dizer que vivemos um caos generalizado não é exagero, ainda que pareça mais digno falar de “neoliberalismo”: permite dar um verniz teórico para o que é simplesmente um sistema desenfreado de exploração e de destruição ambiental.
Trazemos aqui este parágrafo de pano de fundo econômico, pois é sobre este pano de fundo que se desenham as vivências concretas de pessoas de diversas partes do mundo que os filmes do eixo Economia retratam, na sua miséria, solidão, luxos ridículos, busca desorientada de identidades e, sobretudo, fragilidade.
Olho de Peixe, de Amin Behroozzadeh, é uma genial reconstituição do nosso universo, do pequeno planeta econômico, através do cotidiano em um navio moderno de pesca industrial no oceano Índico. Nesse vasto mar, muito bem captado em belíssimas tomadas, uma tripulação constituída principalmente por africanos é reduzida ao isolamento por meses, mas com celulares para se comunicar com as famílias, uma barbearia a bordo, serviço médico, abastecimento periódico no alto mar, supervisão de asiáticos, tudo a serviço de uma prática destrutiva da vida no mar: redes quilométricas, localização moderna de cardumes, gigantesca massa de peixes recolhidos no que sabemos hoje constituir um dos maiores desastres ambientais do planeta, a perda de biomassa e de biodiversidade. Ninguém pergunta a esses trabalhadores, ou aos seus supervisores, qual o sentido do que fazem, a quem estão servindo, como nenhum cliente de peixaria questiona o sistema do qual está participando. Ninguém pergunta nada, é um sistema.
Pescadores também, mas na outra ponta econômica e social, aparecem neste filme igualmente repleto de imagens de grande beleza, Ostrov – A Ilha Perdida (ostrov quer dizer ‘ilha’ em russo), de Svetlana Rodina e Laurent Stoop. O mar Cáspio está morrendo, por pesca industrial, mas em particular por poluição da indústria petroleira, e há grandes esforços por parte dos países ribeirinhos em reduzir a catástrofe através de políticas ambientais. A proibição da pesca atinge as empresas, mas também as poucas dezenas de famílias que sobrevivem em ilhas no meio do mar, e que há gerações vivem da pesca artesanal, em pequenos barcos, essencialmente para consumo próprio. O desastre da sobrepesca foi causado pela pesca industrial, mas a lei é igual para todos; é uma lei igual, para pessoas desiguais. O filme apresenta o cotidiano das famílias, com imagens de uma humanidade que toca, contrastadas com as saídas noturnas de pesca clandestina e as atividades policiais que vêm destruir as redes e prender os pescadores. Aqui, como nos outros filmes, a beleza é grande, tanto nas paisagens como no rosto das pessoas. E o drama é poderoso.
O filme Desperdício Vol. 1, do finlandês Jan Ljäs, é particularmente impressionante: viajando para Zimbábue, Gana, Nova Iorque ou a ilha italiana de Lampedusa, a equipe filmou o que acontece com os nossos restos, subprodutos ou, simplesmente, lixo. A humanidade olha pouco para o dreno de riquezas naturais, se impressiona com os processos modernos de fabricação e ignora intencionalmente o que acontece com o que descartamos. No Gana, milhares de pessoas trabalham na reciclagem do lixo eletrônico de diversas partes do mundo, separando as peças, queimando, derretendo, recuperando materiais em condições de trabalho sub-humanas, produzindo outro tipo de poluição nesse e em outros países utilizados como depósitos de lixo dos países ricos. Em Lampedusa, ilha a meio caminho entre a África do Norte e a Itália, entulham-se barcos abandonados de migrantes que tentaram conquistar outra vida: peças dos barcos ou imagens coletadas por habitantes locais ou por turistas. Contam-se as inúmeras mortes dos que naufragaram nas tentativas, descarte de uma sociedade injusta. Mais impressionante ainda, o cemitério público de Nova Iorque, destinado a pessoas não identificadas que morrem nas ruas ou em asilos e que terminam em fossas comuns na ilha de Hart, enterradas por prisioneiros que ganham 50 centavos por hora de trabalho. Já há mais de um milhão de corpos anônimos enterrados na ilha. Descarte…
Neste mundo em busca de rumos, vivemos uma articulação caótica e aberrante de fantásticos progressos técnicos com comportamentos e formas de organização violentos e destrutivos, envolvendo não só miséria, mas também formas de exploração que permitem a acumulação de fortunas como nunca conhecemos. O enriquecimento econômico e a utilidade social e ambiental, no sentido de gerar bem-estar efetivo para a humanidade, estão profundamente desgarrados. Estamos todos à procura de novos rumos. Não hesito em ver, nestes filmes de vivências de seres humanos reais, uma crise civilizatória.
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*LADISLAU DOWBOR é economista e professor titular de pós-graduação da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Foi consultor de diversas agências das Nações Unidas, governos e municípios, além de várias organizações do sistema “S”. Autor e co-autor de cerca de 40 livros, toda sua produção intelectual está disponível online na página dowbor.org.