Texto sobre os filmes da temática Povos&Lugares do Panorama Internacional Contemporâneo
Por Paulo Henrique Martinez*
A 11ª Mostra Ecofalante selecionou sete produções – quatro longas e três curtas – para o segmento Povos e Lugares de sua Mostra Contemporânea. Nestes filmes, há uma multiplicidade de questões e convergências na localização e na exposição de sintomas e na percepção de tensões, conflitos e violências envolvendo as relações entre liberdade, memória e identidades coletivas. Os territórios retratados nos filmes são acossados pela sanha da acumulação acelerada de capital e pelo seu bruto reordenamento espacial. O longa dirigido pela diretora porto-riquenha Cecília Aldorondo, Landfall: Depois do Furacão, pode ser visto como emblema e síntese do conjunto de relatos, paisagens, vozes e imagens desta seleção. Conforme ele mostra, a brutal espoliação de povos e lugares pode ser vista como uma oportunidade de recomposição dos interesses de empresas, grupos de investimentos, governos e governantes, mas não dos interesses dos governados.
As ranhuras na alma e na terra das populações e ecossistemas dos países em foco, situados na zona intertropical e subtropical do globo, nos convidam a pensar o contínuo processo de espoliação e de reordenação espacial derivados das relações econômicas, políticas e sociais entre as nações, as grandes potências e os diversos povos e lugares do globo, a produção e o consumo de mercadorias, o confronto entre capital e trabalho. Estes filmes nos convidam ao distanciamento das tentações da desesperança, das ameaças, do desprezo pelo novo, pelas diferenças, pelo outro. Ao distanciamento da violência suicida, do potencial de morte e da “loucura assassina” cultivada pelo e sob o ideário neoliberal. A universalidade da dignidade humana e da vida no planeta ergue-se como contraponto ao confinamento na “mentalidade do agredido”. Esta, segundo o escritor franco-libanês Amin Maalouf, “é ainda mais devastadora, para os agredidos, do que a própria agressão”.
Cartografia e cinema. Recursos técnicos de precisão, visual e audiovisual, massificados, desde o fim do século 19. Momento de expansão colonial e da grande indústria, das tecnologias de luz, cor e som. Da eletricidade, de veículos automotores, máquinas e equipamentos, da arte e da moda, da publicidade e do cinema. Os filmes selecionados remetem ao (neo)colonialismo e (neo)extrativismo em espaços, lugares, paisagens e memórias concretos. Explicitamente, em Mil Incêndios, Mar Sem Lei e Ouça a Batida das Nossas Imagens. Implicitamente, nos demais. Trata-se de esperança, resistência, utopia e contradições em Apenas um Movimento, Domando o Jardim e Drama Telúrico. O triunfo da técnica alimenta tanto o imperialismo e o neocolonialismo como a busca pela superação de seus efeitos e heranças. Há constante triunfo da técnica sobre a natureza, em sua espoliação e arruinamento – Landfall: Depois do Furacão (Porto Rico), Mil Incêndios (Mianmar), Mar Sem Lei (Gâmbia) e Ouça a Batida das Nossas Imagens (Guiana Francesa) – e nas expectativas de sua regeneração – Apenas um Movimento (Senegal), Domando o Jardim (Geórgia) e Drama Telúrico (Indonésia).
Antigas e novas rugosidades talhadas nestes espaços testemunham o sistemático desenraizamento territorial e a diluição de símbolos identitários de grupos e comunidades. A violência e a destruição movimentam os ponteiros do relógio da acumulação de capital, do trabalho humano, da vida diária, da natureza, das ideias e das ações. A memória sombria desses diferentes processos sustenta o desejo e a busca pela reinvenção da própria história, seja nas ruas (Landfall: Depois do Furacão), seja na doação de um novo museu pela China (Apenas um Movimento). A secular persistência do triunfo da técnica sobre os indivíduos, a vida social e a natureza nos sugere que ainda somos os mesmos. Nesta seleção sobre Povos e Lugares a matéria-prima dos filmes é o tempo.
Não há testemunho tão evidente, perene e abrangente da ação e da herança do colonialismo europeu do século 19, o denominado Imperialismo, como os conhecidos mapas da geografia política do continente africano. Mapas que demarcaram tanto as possessões europeias como os Estados nacionais concebidos com a fragmentação dessas possessões naquele continente ao longo do século 20. A documentação cartográfica é inspiradora e emblemática na compreensão do passado. Hospeda a clareza e a eficácia na comunicação, traduz com precisão limites e ambições de interesses diversificados, constitui refinado instrumento de gestão, planejamento e controle social. Está em constante aprimoramento técnico, operacional e político. A produção cinematográfica é a linguagem visual que mais se assemelha à da cartografia, no tocante às evidências e à transparência de meios e fins, do passado e do presente, na vida das sociedades e em disputas de poder.
A dissociação programada e imposta nas possessões coloniais europeias – registrada em mapas de diferentes escalas e localidades – logo se disseminou em estratégias políticas, militares e econômicas de nações e de instituições públicas e privadas extra-europeias. O objetivo, desde sempre, foi não apenas cortar os vínculos histórico-culturais das populações nativas, mas extrair-lhes a própria base biofísica de sobrevivência, de coesão social, de identidades étnicas e políticas. A separação da vida social dos espaços habitados, entre povos e lugares, abriu caminhos tanto para a submissão e a opressão como para a rebelião, a revolução nacional e social em múltiplas dimensões do colonialismo – política, militar, econômica, religiosa, étnica, cultural. O colonialismo, afirmou o filósofo e escritor francês Jean-Paul Sartre, é um sistema.
O congraçamento da exploração e da opressão colonial torna-se explícito e efetivo apenas nos marcos da violência. A violência que se completa, na atualidade, com o etnocídio e o ecocídio programado de comunidades e territórios periféricos nos fluxos de acumulação de capital sob a globalização neoliberal. Uma síntese de distintas escalas e modalidades dessa violência comparece nos deslocamentos e no controle de mobilidade promovidos, induzidos e forçados sobre a população residente e a mão-de-obra. Privação de liberdades básicas, epidemias, fome, expropriação da terra, de acesso aos recursos naturais, à água, aos serviços públicos essenciais, discriminação, segregação e confrontos armados impelem indivíduos, famílias e grupos inteiros para fora e para longe de suas geografias usuais e ancestrais.
Não há colonialismo, como mostram filmes como Apenas um Movimento, Landfall: Depois do Furacão, Ouça a Batida das Nossas Imagens e Drama Telúrico, sem a transformação do espaço, de sua organização para outras funcionalidades, adequadas aos propósitos da economia mundial, no passado e no presente. Sob a poeira e as ruínas éticas, sociais e ecológicas da crise financeira de 2008, observamos o revigoramento crescente e o refinamento tecnológico de práticas, valores, comportamentos, metas e espaços herdados do passado colonial e que singularizam as primeiras décadas do século 21. A divisão territorial entre a produção técnica e o consumo de alta lucratividade, de um lado, e a extração intensiva de recursos naturais e a destinação de refugos de todo tipo, de outro, é nítida e concreta. Observe-se a distribuição espacial de resíduos nucleares, contaminação de águas, solos e atmosfera, desertificação, desmatamento, substâncias tóxicas agrícolas e industriais, rejeitos da mineração, de derivados de petróleo, emissão de gases de efeito estufa, plásticos e lixo eletrônico.
A cartografia econômica da globalização torna-se tão reveladora, precisa e integradora que a devastação ambiental programada emerge aos olhos do mundo como ação deliberada e articuladora de Estados, governos, empresas, fundos de investimentos, meios de comunicação e distintos profissionais. Trata-se de um círculo político e ideológico de indução e promoção seletiva da exclusão social, da insustentabilidade econômica, da destruição consciente de territórios étnico-sociais, ecossistemas e paisagens culturais. Trata-se de um círculo de violência implacável de diluição e liquidação de valores, referências e práticas identitárias, resistências comunitárias e ideológicas – sejam elas de caráter individual, coletivo, institucional, cultural, simbólico, intelectual, religioso, governamental ou qualquer outro.
Em suma, trata-se da deportação e da concentração de “externalidades” ambientais, econômicas e sanitárias para pontos específicos do globo – periféricos, pobres, como explícito em Mil Incêndios. Revela-se o empenho midiático na minimização da visibilidade pública de impactos e de efeitos éticos e publicitários negativos contidos na degradação ambiental, na violação de Direitos Humanos, na espoliação material e cultural de povos e lugares, contra o qual se opõe um filme como Mar Sem Lei.
Os marcos da violência atingem novos patamares. Surgem novas cartografias. As do narcotráfico, do contrabando de armas, mercadorias, animais silvestres, migrantes, crianças, mulheres, mão-de-obra clandestina. Enlaçam-se novos consórcios da violência, altamente técnicos e militarizados. Em diferentes países há cooptação de agentes nas forças armadas e policiais, criação de milícias paramilitares e movimentação de grupos e segmentos sociais na promoção de atividades ilegais.
No Brasil, há assassinatos seletivos, incêndios, caça e pesca predatórias, ocupação de terras, extração de minérios e madeiras em terras indígenas, territórios quilombolas, assentamentos de reforma agrária, unidades de conservação da natureza, áreas de proteção ambiental e de patrimônio cultural. Em 2021, as porções brasileiras da Amazônia e do Pantanal foram destaques internacionais devido a fatos como esses. Não foram acontecimentos isolados – estão disseminados pelo mundo; tampouco foram ocasionais – ao contrário, repetem-se ano a ano, sob maior ou menor complacência de governantes, gestores, fiscais, técnicos e cidadãos imobilizados, indiferentes ou cúmplices.
Em muitas situações, agentes e representantes de poderes públicos tornam-se reféns, voluntária ou involuntariamente, operando como a mão do gato. Buscam refúgio, em autodefesa, ou são compelidos a diversas condutas institucionais. Estas podem variar da apatia à intimidação, passando por negligência e peculato. Governos e Estados não permanecem alheios e inertes. Em diferentes instâncias, órgãos e áreas de atuação de poderes e agentes estatais, os ordenamentos legais e jurídicos são conhecidos, elaborados e legitimados, em maior ou menor escala. Gerais e específicos, os novos ordenamentos – em gestação, execução ou objeto de desejo – convergem na desobstrução efetiva e intensiva do uso, exploração e apropriação de força de trabalho, recursos naturais, solos agricultáveis e urbanos, extração mineral, ecossistemas, infraestrutura, equipamentos e serviços públicos, generalizando a mercantilização da vida, dos povos e lugares em escala mundial.
Os sintomas e as percepções do colapso iminente e da espoliação absoluta, em todos os recantos do globo, não são ocasionais ou fantasiosos. Estão dispersos na vida cotidiana. Em corações e mentes. Do ocidente e do oriente. Os planos de ação integradores da economia e da vida social, já formulados em escala nacional e internacional desde o fim do século 20, projetam um alcance interplanetário. Para tanto, a ação dos Estados e do capital privado, das ciências e da tecnologia de última geração e da hegemonia ideológica da expansão econômica irrestrita convertem-se em procedimentos estratégicos para a acumulação de capital internacional dos seus aliados e comensais, locais ou não. Restam os desafios políticos, que residem na persistência pela efetivação dos Direitos Humanos, na expectativa de seus desdobramentos prospectivos e demais agendas multilaterais, correlatas e complementares, nas formas de resistência social e cultural, na perseverança em assegurar a continuidade e a proteção da vida e das liberdades humanas para milhões de pessoas ao redor do mundo.
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*PAULO HENRIQUE MARTINEZ é professor no Departamento de História da Faculdade de Ciências e Letras de Assis da Universidade Estadual Paulista (UNESP). Desenvolve atividades regulares de ensino, pesquisa e extensão universitária nas áreas de história ambiental, patrimônio e museus, história política e historiografia brasileira. É autor de A vida e o mundo: meio ambiente, patrimônio e museus, A dinâmica de um pensamento crítico: Caio Prado Júnior (1928-1935), História Ambiental no Brasil e organizador de História ambiental paulista.