Texto sobre os filmes da temática Economia do Panorama Internacional Contemporâneo
Por Ladislau Dowbor*
O mundo está mudando rapidamente, tendo como eixos principais de transformação o aprofundamento das desigualdades, a catástrofe ambiental, o caos financeiro e a desarticulação dos sistemas democráticos. No meio disso, as pessoas, as comunidades, as cidades e as nações buscam formas de resgatar as rédeas do processo, tentando sobreviver e se organizar num contexto cuja dinâmica lhes escapa. “No sabemos lo que pasa”, escreveu Ortega y Gasset, “y es exactamente eso lo que pasa”, caracterização feliz da nossa realidade.
O dinheiro, até há poucas décadas atrás, era essencialmente constituído por notas e moedas impressas e cunhadas pelos governos, fazia parte de um privilégio essencial do poder público e permitia intervenções na organização social, com profundas deformações, mas também garantindo certo equilíbrio e, por vezes, sucessos impressionantes. Hoje o dinheiro é essencialmente emitido por bancos, sob forma de crédito e outros instrumentos financeiros, levando a uma profunda erosão do poder racionalizador das administrações públicas. O resultado é um aprofundamento da desigualdade em geral.
O aprofundamento da desigualdade nas últimas décadas, no plano internacional, no interior dos países e nos espaços urbanos, está diretamente ligado à financeirização. Nesta era em que mais de 90% do dinheiro circula sob forma de sinais magnéticos, simples registros nos computadores, portanto dinheiro imaterial, controlado por inúmeros intermediários financeiros, generalizaram-se práticas especulativas. Sempre existiram, sem dúvida, mas adquiriram hoje dimensões radicalmente mais amplas. Hoje o 1% dos mais ricos tem mais riqueza acumulada do que os 99% seguintes. Essa desigualdade aberrante impactou todas as nossas atividades, e os filmes que aqui comentamos mostram diversas facetas e diversos setores, exercício que pode ser mais instrutivo do que teorias gerais sobre o capitalismo moderno.
Em boa parte, as fortunas dos mais ricos são investidas em especulação imobiliária. Esse é precisamente o tema do filme Push: Ordem de Despejo, que mostra os mecanismos especulativos, a desarticulação ou apropriação dos sistemas públicos, bem como a crescente dificuldade, para a massa da população, de acesso a um direito humano básico: o direito à moradia. O solo urbano não foi criado pelas empresas que com ele especulam. E a sua valorização resulta dominantemente da própria aglomeração das populações em espaços restritos: controlar o acesso permite gerar imensas fortunas, sem precisar contribuir significativamente com investimentos. Empresas produtivas, características do capitalismo tradicional, produzem bens ou serviços, gerando lucros, mas também empregos e impostos. Exploram os trabalhadores pelo salário, mas são produtivas. O controle sobre o solo urbano gera renta¹ sem o correspondente aporte produtivo, ganhos especulativos, que temos caracterizado também como economia de pedágio.
O exemplo da Blackstone, cujo funcionamento na área da especulação imobiliária é amplamente detalhado no filme, ajuda muito na compreensão de como urbanização, desigualdade e financeirização geraram novas dinâmicas econômicas e sociais nas nossas cidades. Fundada por dois ex-diretores do Lehman Brothers, um gigante bancário que faliu em 2008, a Blackstone se especializa em compra e venda de empresas e diversas atividades especulativas e criou uma diretoria de ‘real estate’, centrada em atividades imobiliárias. Basicamente, trata-se de adquirir solo urbano, habitações, terras de periferias, e ganhar com a sua valorização. Trabalham em nível mundial.
O impressionante é a escala das atividades. O universo imobiliário sobre o qual a Blackstone e empresas semelhantes atuam representa um valor da ordem de 163 trilhões de dólares, o dobro do PIB mundial, que se situa em torno de 80 trilhões. Tipicamente adquirem uma empresa que gere um condomínio imobiliário, suspendem toda atividade de manutenção, geram ativamente problemas aos residentes, em particular por meio de aumento radical dos aluguéis, até que boa parte dos residentes se mude, permitindo a requalificação do espaço para residentes de alta renda. Vizinhança rica já por si aumenta o valor do metro quadrado. O controle de políticos locais é essencial, gerando um clima de corrupção generalizada.
Tal como Push: Ordem de Despejo mostra o poder dos mecanismos especulativos modernos sobre um bem comum que é o solo urbano, outro filme, Os Senhores da Água, acompanha as mesmas deformações por outro prisma, o do acesso ao bem comum que constitui a água. Já foi um bem de livre acesso, mas hoje, com 7,8 bilhões de habitantes, uso descontrolado na agricultura e na indústria e poluição generalizada por uso irresponsável de produtos químicos, além dos esgotos que correm soltos, a água doce e limpa está se tornando escassa, e já é chamada de “ouro azul”, em paralelo com o “ouro negro”, que é o petróleo. A escassez, em termos de mercado capitalista, é um achado: quanto mais escasso o bem, mais valor adquire. Isso levou a uma onda de privatizações e aos processos especulativos correspondentes, amplamente detalhados no documentário.
A água virou commodity. Os ‘megalitros’, correspondentes a um milhão de litros na terminologia das bolsas, são, por exemplo, cotados a 700 dólares e vendidos e revendidos nos mercados de futuro: esperto o banco ou fundo financeiro que previu uma seca e comprou opções sobre um monte de megalitros, prevendo que a água se tornará mais cara. Não precisa entender nada de água, nem a que serve, e sim entender de variações na bolsa. É o que o filme descreve como “financial takeover”, literalmente tomada de controle dos mercados financeiros sobre o que considerávamos também, ao igual da moradia, um direito humano. Tal como a escassez de solo urbano permite o rentismo sobre a valorização da moradia, para gigantes mundiais como Veolia ou Lyonnaise des Eaux a água se torna um produto de valor crescente. O objetivo não é necessariamente a facilidade de acesso dos usuários, e sim a maximização dos dividendos, e, portanto, da renta dos donos de ações.
O caso não é simples, e nem o filme simplifica. A gratuidade da água leva a um desperdício generalizado, e colocar um preço constitui um modo de levar os usuários a pensarem duas vezes antes de abrir a torneira. Em compensação, as empresas rurais ou industriais preferem jogar os resíduos nos rios e nos lagos, sai mais barato do que instalar filtros ou reutilizar. Um fazendeiro que extrai água dos lençóis freáticos acha que a água é sua, mas uma região inteira da Califórnia entra em colapso quando gigantes do agro extraem sem limites e desconsideram o impacto dos agrotóxicos. Na realidade, aqui, como em outros setores de atividade, não há como escapar à negociação de pactos e de controles para o uso e descarte racional de um bem que é necessário para todos. Mas, nas dinâmicas dominantes, não são os usuários que se articulam, e sim os mercados financeiros. A remunicipalização da água em Paris, Berlim e inúmeras outras cidades do mundo faz parte da batalha pelo controle de um bem que, por ser ao mesmo tempo vital e escasso, é imensamente atraente para os sistemas financeiros de especulação.
O documentário O Custo do Transporte Global, de Denis Delestrac, traz outra faceta das transformações em curso, nesse caso o transporte marítimo. Pouco pensamos nisso, e é até poético ver um navio se perder no horizonte. Mas é uma máquina poderosa que está mudando o mundo. Trata-se de cerca de 60 mil navios, que conectam cerca de 4500 portos, transportando cerca de 500 milhões de contêineres por ano, ao custo ridículo de, por exemplo, 300 dólares por um contêiner de 20 toneladas trazido da China para os Estados Unidos. Em termos econômicos, isso significa que se tornou natural um casaco vendido em Nova Iorque ter algodão brasileiro, botões produzidos no Vietnã a partir de lixo plástico europeu reciclado na China, com complementos de outros países, sendo que na etiqueta aparecerá apenas Made in Bangladesh, que é onde se acoplaram os componentes. O transporte barato mudou a economia.
O transporte marítimo aparece assim na sua poderosa dimensão de articulador da globalização econômica, permitindo, por exemplo, que gigantes corporativos de qualquer parte do mundo inundem mercados e desarticulem economias mais frágeis. Mas os próprios gigantes do transporte marítimo, como a Maersk Line, constituem um universo desregulado. Para evitar pagar impostos ou prestar contas da poluição que geram, ou inclusive do tráfico de drogas, armas e resíduos tóxicos, os navios, em sua quase totalidade, navegam com bandeiras da Libéria, do Panamá, das Ilhas Marshall e semelhantes paraísos fiscais. A frota é responsável por 4% das emissões mundiais de gases de efeito estufa, e também contaminam os mares com os cerca de 100 naufrágios por ano, com petróleo e outros produtos químicos. O filme nos descortina um universo de transformações não só do próprio transporte marítimo, mas de como muda a lógica da organização econômica do planeta.
Os Despossuídos, de Mathieu Roy, mostra, por sua vez, como essa globalização e financeirização transformam a agricultura familiar. Estamos falando de um terço da população mundial, que vive essencialmente de produzir alimentos em pequena escala. Uma calça jeans vendida 80 dólares em Nova Iorque, por exemplo, rende menos de um dólar para quem produziu o algodão na Índia. Em volta do tradicional agricultor que cuida da sua terra e dos seus animais, foram-se tecendo teias de dependência, pois enquanto ele teoricamente é dono da sua terra e livre de cultivar como quer, a comercialização é controlada por atravessadores, a semente pela Monsanto, o pesticida pela Bayer (ambas, aliás, hoje coligadas), outros insumos pela Syngenta, o mercado mais amplo pela Cargill e assim por diante. É um universo profundamente transformado, pois os gigantes que controlam os insumos e a comercialização são, por sua vez, empresas controladas por acionistas que de agricultura não precisam entender nada. Entendem sim do rendimento das ações.
De certa forma, se vê que o conceito de mercado livre não tem nenhum sentido quando os atores são tão desiguais. Como se comenta no filme, “precisamos de regulação comercial, pois a liberdade entre agentes desiguais leva à lei da selva”. Estamos no limite (‘au bout’), comentam os agricultores entrevistados. As novas gerações estão abandonando a agricultura, dinâmica mal compensada pelo movimento de agricultura sustentável e de produtos orgânicos que surgem em diversas partes do mundo. As grandes corporações da monocultura em áreas gigantescas agradecem. Trazem muita máquina, muita química, muita esterilização do solo. É um novo colonialismo, comenta um dos agricultores.
Enquanto Os Despossuídos trata de exemplos em grande parte do Canadá e da Suíça, o filme Tomates, Molho e Wagner mostra a agricultura familiar na Grécia, em tom poético e encantador, pois entre outros os agricultores tentam descobrir como a música clássica ou os cantos tradicionais gregos impactam o amadurecimento dos tomates. O tom é poético, mas o cotidiano dos pequenos ou médios agricultores é mostrado de maneira muito articulada. São bons produtores, geram boas safras, mas para valorizar o produto precisam transformá-lo em conservas de diversos tipos, viajar para Bruxelas e outras cidades para entender ‘os mercados’, colocar fotos ‘típicas’ de camponeses nas etiquetas dos produtos, buscando satisfazer o misterioso ‘cliente’ moderno. Não basta ser bom agricultor, é preciso saber ‘se vender’.
O filme traz imagens muito belas do cotidiano dos grupos que trabalham no campo, nas cozinhas, no acondicionamento dos produtos, com as intermináveis conversas, fofocas comentadas no meio de gargalhadas, que nos lembram que trabalhar não é apenas ser produtivo, é conviver, é rir uns dos outros, é brincar. A agricultura tradicional é um modo de vida. A modernidade pode facilitar essas vidas e torná-las mais produtivas, sem destruir a sua dimensão humana. A tecnologia pode ser muito útil, mas não quando é apenas uma arma de extração de renta por corporações distantes.
O Golpe Corporativo de certa forma aborda o pano de fundo de todas essas transformações, ao mostrar como a financeirização e o gigantismo corporativo mundializado, que já deformam os rumos dos vários setores de atividades econômicas, dão o golpe final ao se apropriarem dos próprios mecanismos políticos que deveriam regulá-los, assegurar que respeitem as regras do jogo. Em 1999 as corporações conseguiram que se liquidasse a regulação dos bancos, base jurídica que prevalecia desde os anos 1930. Em 2010 foi aprovada a lei que permite, nos Estados Unidos, o financiamento corporativo das campanhas eleitorais. “Temos os melhores congressistas que o dinheiro pode comprar”, comenta Hazel Henderson. Geraram um sistema jurídico paralelo que permite que crimes corporativos sejam objeto de acordos extra-judiciais: ninguém vai preso, apenas geram multas sem reconhecimento de culpa.
No documentário chamam isso de golpe corporativo em câmara lenta, mas durou poucas décadas e gerou um profundo desequilíbrio no que era o coração dos processos democráticos de tomada de decisão: a harmonia entre o Estado, as empresas e a sociedade civil. Entende-se perfeitamente que Trump tenha aprovado uma gigantesca redução de impostos sobre as corporações, ao mesmo tempo que tentava travar o acesso a serviços públicos de saúde. Trump é apenas o sintoma, mas não a doença. A doença é o deslocamento de poder, que aprofunda as desigualdades e generaliza o sentimento de insegurança e frustração na massa da população, que termina por votar em qualquer candidato que canalize o seu ódio e aponte culpados, que podem ser mexicanos ou muçulmanos ou a China, ou qualquer culpado, desde que seja externo. Liberar o ódio funciona muito mais, em política, do que discutir programas econômicos e sociais. O documentário trata dos Estados Unidos, mas é só olhar como o golpe corporativo está funcionando em numerosos países. Como escreveu há alguns anos Octávio Ianni, a política mudou de lugar.
No conjunto, os seis filmes nos trazem dimensões diferenciadas, mas complementares, de como a luta pela habitação, o acesso à água, o transporte dos produtos, o acesso às tecnologias e o universo do pequeno produtor rural se deslocam frente a dinâmicas que pertencem ao universo poderoso e distante das grandes corporações financeiras, que pouco entendem dos setores específicos, mas entendem tudo dos lucros que se pode extrair. O capitalismo está se deslocando: não são mais os produtores, os capitalistas rurais ou industriais tradicionais que mandam nos processos econômicos, e sim ‘os mercados’, as bolsas, os bancos, os traders, o chamado capitalismo financeiro global. Esse, ninguém controla: não há governo global.
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¹ O conceito de ‘renta’ não aparece nos dicionários da língua portuguesa. Mas é essencial para entender as dinâmicas econômicas modernas: em inglês ‘rent’, ganho sem o aporte produtivo correspondente, é claramente distinto de ‘income’ (renda); em francês é igualmente clara a distinção entre ‘rente’ e ‘revenu’. Personagens de Machado de Assis que “vivem de rendas”, portanto prósperas e ociosas, caracterizam bem o rentismo, mas o conceito de ‘renta’ é essencial para caracterizar esse tipo de ganhos.
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* LADISLAU DOWBOR é professor titular de economia da PUC-SP, autor de dezenas de livros e estudos técnicos sobre desenvolvimento econômico e social, disponíveis gratuitamente online (open access) em http://dowbor.org. Sobre os sistemas financeiros, disponibiliza A Era do Capital Improdutivo, sob forma de livro e de curtos vídeos didáticos. Contato [email protected]