Texto sobre os filmes da temática Tecnologia do Panorama Internacional Contemporâneo
Por Filippo Pitanga*
A Mostra Ecofalante de Cinema traz, mais uma vez, um programa de filmes voltados para as questões da tecnologia moderna: nesta 10ª edição, são cinco documentários poderosos e multipremiados que versam sobre o avanço da inteligência artificial e a era das fake news.
São temas especialmente urgentes neste momento histórico – no conceito de Zygmunt Bauman, a tal da modernidade líquida, em que os saberes são relativizados pelo imediatismo do enorme fluxo de informação. Sem manter uma consciência crítica, fica muito mais difícil distinguir a verdade em meio a tanta insegurança e a essa instabilidade quase patológica de desinformação. Notícias sensacionalistas são lançadas de forma inconsequente como arma de confusão em massa, para dividir e dominar a população; depois, volta-se atrás, sem maior responsabilização pelas suas eventuais repercussões.
A junção da inteligência artificial (IA) e do discurso perpassa os cinco filmes deste programa, a começar pelo divertido curta-metragem O Debatedor de Joshua Davis e Harry Spitzer (2020), que, com toques de comédia e sátira, retrata uma inteligência artificial que pretende vencer humanos em debates profissionais. A discussão fica mais séria em dois outros filmes que abordam o uso de algoritmos para influenciar movimentos sociais e até eleições: A Campanha Contra o Clima, de Mads Ellesøe (2020), e Influence, de Diana Neille e Richard Poplak (2020). Por fim, Feels Good Man, de Arthur Jones (2020), e Coded Bias, de Shalini Kantayya (2020), racializam a discussão das questões identitárias.
A sétima arte é uma das formas de concentrar mais poder dialético dentro de uma reflexão coletiva. Exatamente por isso que o cinema possui o potencial de evocar nosso senso crítico, para ajudar a entendermos como uma expressão audiovisual pode fortalecer o questionamento de noções pré-concebidas ao provocar tensão entre várias perspectivas sobre um mesmo assunto. Obras em estreito debate, como o curta-metragem O Debatedor e o filme A Campanha Contra o Clima, são excelentes pontos de partida para nos debruçarmos esteticamente sobre isso.
Em O Debatedor, nos vemos diante de uma inteligência artificial treinada para vencer debatedores humanos e munida de um extenso acervo de argumentações e respostas cifradas para todo tipo de ocasião. Ao discutir o quanto a racionalidade maquínica pode ou não alcançar a nuance da emoção humana, o filme parece convidar-nos a encarar a máquina mais como uma novidade tecnológica do que como uma nova ameaça em potencial. Afinal, até aqui, ainda estamos falando do debate em sua essência, do prazer de debater com bases bem-informadas e com paridade nos meios de defesa de argumentos. A questão da suposta neutralidade de dados, que será tema dos próximos filmes do programa, ainda não é apresentada.
De maneira inversamente proporcional, A Campanha Contra o Clima vai abordar a diferença entre o debate e o sofisma, no qual não importa a verdade das argumentações, e sim seu poder de convencimento a qualquer custo. Na trama, acompanhamos o desenrolar, nas décadas de 1980/90, da luta climática contra os efeitos devastadores da poluição e do extrativismo predatório – que já indicava estatísticas potencialmente apocalípticas para o futuro da vida na Terra… A diferença na abordagem, aqui, é o foco nos indivíduos que propagaram desinformação e fake news já naquela época, algo que o filme oferece sob a poderosa lente narrativa da ironia.
Eis que o paradoxo de convidarem alguns dos maiores influenciadores que atacaram essa luta, desmerecendo a causa ou desmentindo cientistas com pura retórica falaciosa, vira o pulo do gato para distinguir este trabalho. Eles eram excelentes debatedores, decerto, graças à paixão pelo calor do debate, mas não traziam qualquer fundamentação ou substrato para o que afirmavam. Não passavam de pessoas dotadas de técnicas de esvaziamento do discurso para minar a autoridade científica daqueles com quem se digladiavam (algo assustadoramente premonitório em relação ao que estamos vivendo no atual governo brasileiro).
Para rebater o cinismo e a soberba de alguns desses convidados, a equipe do filme usa montagem e trilha sonora para exercer o direito à réplica perante alguns dos argumentos mais estapafúrdios elencados na tela: quebras rápidas entre planos médios e super closes, desnudando o sarcasmo da cena e levando a edição para contra-argumentos visuais do que está sendo dito são exemplos de tais expedientes.
O diretor traz para seu média-metragem esse olhar dialético, levantando perspectivas que contrastam com o discurso daqueles que se acharam vitoriosos por adiar em décadas um real plano de ação contra as mudanças climáticas e seus efeitos destrutivos. E faz isso também ao ampliar sua pesquisa e revelar os investidores desses mesmos agentes, demonstrando o quanto a indústria do petróleo estava por trás de quem atacava processos com comprovações científicas sérias, como o efeito estufa e o derretimento das calotas polares (alguém se lembra do paradigmático filme de Al Gore, Uma Verdade Inconveniente, de 2006?).
Já Influence dá um passo além na retórica e demonstra como a publicidade e o marketing deixaram de ser uma arte meramente comercial e, uma vez aplicados à política, passaram a contar com critérios objetivos e validação científica, de modo a serem usados como uma arma operacional de extrema precisão. Estatísticas passaram a dizer quais gatilhos funcionariam ou não, quais revoluções influenciariam o tipo de governo que se desejava instituir e a quem o povo ouviria para seguir feito gado. Tudo através de algoritmos e estimativas de probabilidade testadas principalmente nos países em desenvolvimento, para serem posteriormente adaptadas à realidade daquelas poucas nações que governam o mundo – o que reforça o conceito de Imperialismo Contemporâneo, de Michael Hardt e Antonio Negri. E muito disso com a ajuda de firmas de relações públicas como a Bell Potinger, dirigida por “Lorde” Timothy Bell, principal depoente deste longa-metragem.
Diferente do filme anterior (A Campanha Contra o Clima), repleto de entrevistados, Influence foca o olhar sobre Bell, enquanto testemunha predominante, que não deixa de exercer certo fascínio, pois, mesmo sendo o responsável pelas crises retratadas ao longo da projeção, ele de fato possui, como personagem, um carisma gigantesco. Essa ambiguidade é o lado mais intrigante do filme, ao mesmo tempo que, como dramaturgia, não deixa de ser deslumbrante, pois as inúmeras camadas complexas e inusitadas que são operadas na realidade sugerem algo de ficção.
O mais curioso é que Bell não demonstra nenhum remorso em relação a suas ações pregressas, falando com frieza assustadora – e até com humor – de suas questionáveis façanhas: chama o ditador Alexander Lukashenko, presidente que ajudou a eleger na Bielorrússia, de Goldfinger, o vilão de James Bond. Bell só demonstra algum tipo de freio quando amarga alguma derrota na escalada de poder global que sua agência ajudou a construir para as pessoas mais perigosas que há.
Ainda que se prenda menos fortemente à muleta do formato “talking heads” (cabeças falantes), pois viaja para todos os lugares do mundo através de imagens de arquivo dos fatos descritos, é acompanhando as discrepâncias e incongruências dos entrevistados de perto que o filme encontra seu forte. Começamos a entender que é nessas falhas, intencionalmente registradas pelo documentário, que reside a intenção de esvaziar o poder de influência do biografado. Muito além da pantomima sensacionalista de figuras verídicas como Donald Trump, até o Brasil aparece como um dos países afetados por essas manipulações golpistas, a desembocar nos atuais governos extremistas elencados no filme.
De forma completamente diversa, Feels Good Man aborda questões bem distintas a partir da mesma premissa. O poder do algoritmo agora se manifesta através do meme. E o meme em questão veio de um desenho, “Pepe, o Sapo”, dos quadrinhos “Boy’s Club”, que foi cooptado como símbolo da mesma supremacia branca que apoia ativamente novos governos de extrema direita atualmente no poder em muitos países ao redor do globo.
O filme se filia a uma nova versão de subgênero documental, os animadocs, que misturam várias técnicas de animação com live action (filmes de carne e osso), contando uma história real através de linguagens mistas. O desenho não altera a veracidade do conteúdo, apenas incrementa a mise-en-scène. E como o objeto aqui é um desenho, ele se torna o próprio meio da obra, e extravasa o tradicional, pois imerge na deep web misturado com memética e redes sociais alternativas, como o 4chan.
Feels Good Man se desenrola através de dois pontos de vista principais: o do artista, criador desse simpático sapo chamado Pepe, Matt Furie, que tenta recuperar a motivação original de sua autoria apesar das subversões e apropriações de terceiros; e a perspectiva multifacetada da própria internet e de uma comunidade de jovens vazios e revoltados, que projetaram no sapo todas as violências que gostariam de infligir em suas vidas impotentes. Infelizmente, a visão do criador, meio hippie, extremamente doce e ingênua, acaba engolida pelas piores distorções possíveis, ampliando ainda mais o abismo entre os dois extremos.
Por fim, mas não menos importante, devemos ressaltar que alguns dos filmes deste programa de Tecnologia foram dirigidos por olhares plurais, com diretoras mulheres e não brancas. É o caso do aclamado Coded Bias, de Shalini Kantayya (2020), que traz a questão étnico-racial e de gênero como cerne na análise do preconceito refletido nos algoritmos. Não é que os dados e metadados sejam intolerantes em suas equações originárias, porém eles reproduzem um histórico muito longo de disparidade e desigualdade do próprio ser humano.
A diretora convida um elenco de pesquisadoras predominantemente mulheres para debater sobre o assunto sob diversos ângulos. A própria linguagem do filme retira os depoimentos de lugares fechados e coloca as pessoas nas ruas, onde poderão ser elas próprias escaneadas, como exemplificação prática de suas teorias. Ao demonstrarem o resultado da discriminação no exercício de seu próprio campo de atividades, mais do que entrevistadas, elas se tornam a essência do filme em questão. Seus corpos, seus rostos e suas palavras são colocados em movimento coletivo para desmascarar e descolonizar esta opressão. Afinal, não é a tecnologia em si a vilã destas histórias, e sim a forma como ela é usada por quem a cria, como esses filmes tão bem exemplificam.
–
*FILIPPO PITANGA é advogado, jornalista, mestrando em Comunicação/Cultura pela ECO-UFRJ e pós-graduando em Cinema pela Estácio de Sá. Professor na Academia Internacional de Cinema do Rio de Janeiro – AIC e Sesc. Membro da FIPRESCI (Federação Internacional de Críticos de Cinema) e Associação de Críticos de Cinema do Rio de Janeiro – ACCRJ. É curador no CineFantasy – IFFF – International Fantasy Film Festival, do ROTA – Festival de Roteiro Audiovisual, do Festival Internacional Colaborativo de Audiovisual – FICA.VC, FestCine Pedra Azul, Olhar Periférico, entre outros. Colunista da Revista Fórum e Carta Capital.