5 de agosto de 2020

“Move fast and break things”. O que pode dar errado? – Por Denis Russo Burgierman

Texto sobre os filmes da temática Tecnologia do Panorama Internacional Contemporâneo

Por Denis Russo Burgierman*

Um dia, nossos descendentes – em os havendo – vão estudar na escola o que aconteceu no mundo em nossa época. Talvez esse capítulo do livro de História deles possa começar com a citação da frase de Mark Zuckerberg, que expressa sua filosofia de vida: “Move fast and break things”, “Avance rápido e quebre coisas”. Difícil pensar em uma frase que expresse de maneira mais completa o espírito dominante do nosso tempo.

Zuckerberg tem vivido precisamente desse modo. Sua genialidade se revelou ainda na faculdade, que ele nem terminou, pois já era bilionário. Sua empresa, o Facebook, proprietária também do Whatsapp e do Instagram, mudou as relações humanas talvez tanto quanto qualquer outra grande revolução da história. No caminho, inegavelmente, ela quebrou coisas. Como a democracia, que pifou.

“Olá, IA”, de Isa Willinger

Zuckerberg não é o único a viver dessa forma nos nossos tempos. Na verdade, é seguro dizer que a imensa maioria das pessoas que comandam o mundo hoje se movem rápido, de olho em resultados trimestrais ou campanhas eleitorais quadrienais, e quebram coisas no caminho. As oito edições passadas da Mostra Ecofalante discutiram uma longuíssima lista de coisas que se quebraram ao longo do último século, enquanto a humanidade acelerava seus sistemas, característica mais marcante da era industrial, que se encerra enquanto escrevo. Na 9a edição, a Mostra surpreendeu ao incluir uma seleção de filmes diferentes na sua programação. Há quem pense que não são propriamente “filmes ambientais” – são documentários sobre tecnologia. Os quatro mostram consequências humanas de novas tecnologias, enquanto elas avançam à toda velocidade.

Um deles é Olá, IA (Alemanha, 2019), que conta as histórias de pessoas que já vivem na companhia de robôs dotados de inteligência artificial. Outro é Bebês do Futuro (Áustria, 2016), que segue homens, mulheres, cientistas, vendedores e bebês participantes do incrível mercado de úteros e embriões humanos. Há ainda Jawline: Ascensão e Queda de Austyn Tester (EUA, 2019), que mostra a vida de adolescentes tentando sobreviver emocionalmente dentro do mercado brutal surgido numa das plataformas de Zuckerberg, o Instagram. E, por fim, O Futuro do Trabalho e da Morte (Reino Unido, 2016), uma bela contextualização do pensamento que ajuda a explicar o impulso por trás disso tudo. O filme, dividido em duas partes, trata de duas grandes ilusões humanas: a de que industrializando e automatizando tudo seremos ricos e felizes numa vida tranquila, e a de que seremos capazes de vencer a morte. Enquanto seguimos obcecados por essas duas ilusões, nos sentimos cada vez mais oprimidos pelo trabalho e pela morte.

“Bebês do Futuro”, de Maria Arlamovsky

A verdade é que os quatro são filmes ambientais, sim: todos eles tratam de ecologia. Todos contam histórias sobre como as violentas intervenções que temos feito no ambiente, via tecnologia, geram consequências na vida de uma espécie animal específica: o Homo sapiens. Os quatro nos deixam pensando sobre essas consequências.

Como serão as crianças criadas por robôs? Ou as projetadas a partir dos óvulos e espermatozoides encontrados no mercado? Como será a idade adulta das celebridades de redes sociais e de seus fãs, com os rostos sempre enfiados nas telas de celular? Como será o mundo todo uberizado, sem nenhuma preocupação com o amanhã?

Nenhuma das respostas é simples, mas algo aparece com clareza nos quatro filmes: coisas irão se quebrar – já estão se quebrando. Essas novas tecnologias estão gerando oportunidades e possibilidades, mas também uma montanha imensa de sofrimento e devastação. E tecnologias ainda mais novas já vão chegando atrás delas, mudando ainda mais radicalmente o ambiente, sem que antes paremos sequer para pensar nas consequências.

“Jawline: Ascensão e Queda de Austyn Tester”, de Liza Mandelup

Claro que o sentido disso tudo muda em meio a uma pandemia, quando subitamente estamos tendo de parar de nos mover rápido. Os quatro filmes foram gravados antes disso tudo começar, e geram aquela sensação estranha que temos com qualquer cena captada antes de março de 2020. Agora, qualquer imagem banal de gente se abraçando na rua, misturando os hálitos, já gera um turbilhão de emoções. Mas o germe do que estamos vivendo agora pode ser entrevisto nos quatro documentários, ainda que ninguém apareça usando máscara. Afinal, a pandemia também é, evidentemente, sintoma de que algo se quebrou enquanto acelerávamos. Pestes são, por definição, desequilíbrios ambientais. Passamos o último século focados em aumentos de produtividade e em disrupções nos jeitos tradicionais de fazer todas as coisas, ao mesmo tempo em que desvalorizávamos todos os sistemas de cuidado coletivo na nossa sociedade. Pelo jeito, chegamos a um limite.

Agora ficou impossível acelerar – quebramos até o acelerador. Qualquer tentativa de retomar a velocidade de antes tem sido punida inexoravelmente duas semanas depois, com a mortandade causada pelo vírus. A natureza nos colocou de castigo, contemplando tudo o que quebramos. Não acho que velocidade seja naturalmente má. A verdade é que precisamos de velocidade mais do que nunca agora: ao menos na busca para uma cura para a doença que está matando o nosso modelo de sociedade. O que me parece que teremos de mudar é o descuido com as coisas que quebramos no caminho. Se queremos continuar nos movendo rápido, teremos que dedicar ao menos parte da humanidade ao trabalho de consertar o que se quebra e de buscar caminhos menos destrutivos. Só será possível viver em uma sociedade inovadora e tecnológica se tivermos sistemas fortes de proteção e cuidado. Sem eles, esse estado de disrupção permanente vai acabar nos matando – e matando o planeta.

Não sei se esses sistemas serão criados e mantidos pelo Estado – uma solução que subitamente voltou à moda quando percebemos que uma sociedade sem saúde pública não tem resiliência nenhuma. Tendo a acreditar que muitos deles surgirão diferentes, de baixo para cima, a partir dos laços das comunidades. Comunidade é uma velha tecnologia humana: uma que reduz nossa velocidade, porque impõe valores que desaceleram a mudança. Mas, em compensação, ela nos oferece uma rede de proteção. Se tivéssemos comunidades fortes, teríamos menos carências e ilusões, como aquelas dolorosamente retratadas nos quatro filmes.

“O Futuro do Trabalho e da Morte”, de Sean Blacknell & Wayne Walsh

O fato é que não dá para imaginar um futuro muito promissor para a humanidade se ela continuar inteiramente nas mãos de indivíduos, cada um deles se movendo rápido e sem olhar para trás, para checar se quebrou alguma coisa. O problema de todas as tecnologias retratadas nos quatro filmes não está nelas: está no nosso despreparo para lidar com as suas consequências inesperadas. Estamos desprotegidos contra o que pode dar errado – e, na velocidade em que estamos, é quase inevitável que algo dê errado.

Inteligência artificial e robótica não são tecnologias más – tampouco são uma solução mágica para a dissolução de laços comunitários, a epidemia de solidão e a crise mundial de cuidado. As novas tecnologias reprodutivas tampouco são más – mas não têm como dar certo se forem dominadas por clínicas que manipulam carências humanas para fazer dinheiro rápido. Nada contra a conectividade à distância das redes sociais – mas não dá para abandonar crianças e adolescentes num experimento social desse tamanho, sem proteção social alguma. Faz todo o sentido continuar procurando formas melhores de trabalhar e de adiar a inevitável morte. Mas não faz sentido algum colocar uma grande proporção dos recursos da humanidade a serviço de estender a vida dos bilionários alguns anos mais, enquanto tudo ao redor do sistema vai se quebrando. Enquanto a humanidade toda adoece de uma virose generalizada.

Quando nossos descendentes estudarem o período histórico que estamos vivendo hoje, espero que o capítulo que talvez se abra com a frase de Zuckerberg feche-se em 2020. E que algo diferente – e menos destrutivo – comece em seguida.

*DENIS R. BURGIERMAN é jornalista e escreveu livros como O Fim da Guerra, sobre políticas de drogas, e Piratas no Fim do Mundo, sobre a caça às baleias na Antártica. É roteirista do “Greg News”, foi diretor de redação de revistas como “Superinteressante” e “Vida Simples”, e comandou a curadoria do TEDxAmazônia, em 2010.