16 de maio de 2019

O Choque da Ideologia do Progresso – por João Sette Whitaker Ferreira

Texto sobre os filmes da temática Cidades do Panorama Internacional Contemporâneo

por João Sette Whitaker*

 

Em seu magistral livro Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente1, Edward Said mostrou como, no âmbito do colonialismo europeu e, posteriormente, do imperialismo norte-americano e ocidental em geral, o conceito de “Oriente”, tal qual o conhecemos, foi uma longa e cuidadosa invenção do próprio Ocidente.

Diz o autor: “O Oriente é uma parte integrante da civilização e da cultura material europeia (…) o lugar das maiores, mais ricas e mais antigas colônias europeias, a fonte de suas civilizações e línguas”, que “ajudou a definir a Europa (ou o Ocidente) com sua imagem, ideia, personalidade, experiência contrastantes”. Porém, isso não parece estar assimilado nas relações de poder, passadas e presentes, entre Ocidente e Oriente, marcadas por dominação e violência. Para Said, o “Orientalismo” criado pelo Ocidente sem a participação dos interessados ajudou a estabelecer, na consciência ocidental, uma representação cultural e ideológica do Oriente extremamente útil para, na história moderna, justificar e consolidar tal dominação2.

É certo que nós, na América Latina, aqui mais a oeste (ou ao sul, em relação aos EUA), tivemos e ainda temos também nossa dose de dominação. Sem que tenha havido, talvez, um “sul-americanismo” tão claramente definido, uma constelação de autores, como Eduardo Galeano, Aníbal Quijano ou Florestan Fernandes, para citar apenas três dentre tantos, brilharam ao apontar os efeitos quase indeléveis do colonialismo cultural eurocêntrico e norte-americano. Justamente por isso, talvez, tenhamos a tendência de olhar e imaginar o Oriente nos moldes do que nos trouxe o “Orientalismo”. Na era do consumo globalizado, liderado pela China como última fronteira da produção industrial “com baixos salários”3, o Oriente parece cada vez mais próximo, mas ainda se perfila na nossa consciência coletiva – bem ao sabor do “Orientalismo” de Said – como um mundo desconhecido e cheio de mistérios.

“Retrato Chinês”, de Wang Xiaoshuai

Pelo menos no que diz respeito à temática Cidades, a Mostra Ecofalante tem sido profícua para romper esse isolamento. Ao trazer reiteradamente filmes de cineastas “orientais”, ou que têm como objeto o urbano no Oriente, a Mostra nos ajuda a decifrar os seus mistérios. E, na verdade, chegamos à conclusão de que, apesar de todas as diferenças, as dinâmicas de produção do espaço são muito semelhantes mundo afora, todas com o mesmo traço dominante: o da exclusão, da segregação espacial e da violência do capital na transformação das cidades em lucrativas mercadorias. No ano passado, tivemos retratos de Camboja, Coreia, Líbano, Indonésia, China. Neste ano, passeamos pela Turquia, Índia, pela distante Mongólia, Japão, Coreia e China, para terminar aqui mais perto, no norte dos Estados Unidos. Curiosamente, todos os filmes, ou quase, fazem um diálogo mais ou menos direto entre o passado e o presente.

Retrato Chinês, de Xiaoshuai Wang, um documentário silencioso, é uma janela aberta para a China, que nos leva da nossa sala diretamente à alma tão diversa e complexa daquele gigante asiático. Passado e presente convergem,  neste caso, para compor retratos em cenas nunca menores do que um minuto, que mesclam cenários os mais diversos, de altos-fornos em efervescência a bucólicas plantações de arroz, de informatizadas torres de controle de siderúrgicas a crianças de alguma escola em um frio e seco rincão da China rural. Funcionários de empresas em poses coletivas, passageiros sendo levados em algum trem a algum lugar, camponeses colhendo batatas em paisagens de uma natureza incrível, cavalos, ovelhas, stands de vendas de torres iluminadas, cenas domésticas de veraneio na praia, transeuntes fazendo rezas taoistas na rua de algum vilarejo nas montanhas e obras, obras e mais obras. São inúmeras fotografias não estáticas, que revelam sempre algum detalhe a mais, sem que nunca se saiba onde é, exceto que é na China, e que ela não para. Assim, é a imensidão, a diversidade e o crescimento intenso daquele país que se revelam justamente nessa indefinição de cenas e lugares justapostos. Instiga a pose imóvel dos personagens em muitas cenas, transmitindo desde um orgulho seguro à inquietação, da resignação à disciplina do ato de posar. Um retrato de um país que emerge na liderança econômica e industrial mundial apesar, ou melhor, graças à exploração de sua gigantesca reserva de recursos humanos e naturais. Mais do que nunca, o “moderno que se alimenta do atraso”, como nos mostrou Chico de Oliveira, para desvendar a nossa própria formação nacional, mostra-se na China em sua lógica implacável.

Uma narrativa também do Oriente, e também incomum, é a marca de Sonhos da Velha Delhi, de Anamika Haksar, filme que retrata, em uma espécie de surrealismo fantasioso, que se dá no limiar entre sonhos e realidade, as inquietações individuais dos moradores de Shahjahanabad, ou Old Delhi, bairro pobre e movimentado no coração de Nova Deli, a gigante de mais de vinte milhões de habitantes. Mais uma vez, modernidade e atraso se mesclam no retrato da vida e dos sonhos de um batedor de carteira, também trompetista, de vendedores ambulantes, carregadores e trabalhadores de toda ordem. O “Orientalismo” aparece aqui na figura do “exotismo” da pobreza mesclada às tradições culturais, vendido como atração pelo batedor de carteira reconvertido em guia turístico para visitantes não só ocidentais, mas também da própria Índia e Nova Déli. Mais uma vez se mostra como o passado e o presente, tanto pelo lado da tensão entre atraso e modernidade como também entre tradição e cultura globalizada se cotejam, no capitalismo moderno, em qualquer lugar do mundo, através da história do irmão espancado na prisão, da criança que caiu no poço, mas também das riquezas da vida simples nos grotões urbanos, dependente da economia da informalidade e da subsistência que, aliás, irá também aparecer em outro filme, sobre Istambul, na Turquia. Tudo isso, entremeado de sonhos que mais revelam inquietações, de choques culturais como o convívio natural com a morte nas ruas, mas também de um certo humor ácido, forma os ingredientes deste surpreendente retrato urbano da Índia atual.

Apesar do estilo diametralmente oposto, há muita similaridade entre esse filme e Ecos de Istambul, de Giulia Frati. Este, um documentário mais clássico, mas que retrata de forma quase poética o papel cultural dos vendedores ambulantes de Istambul como mantenedores de velhas tradições e verdadeiros costureiros do tecido social urbano. Vítimas primeiras das ações de remoção violenta por parte do mercado imobiliário associado às “políticas públicas” de renovação urbana, alvos reiterados das ações violentas da polícia persecutória do comércio informal, portadora de uma “ordem” ditada pela economia formal e pelos poderosos, que enxergam na “limpeza urbana e social” um sinal de modernidade, os vendedores ambulantes – que oferecem desde mexilhões recheados (que dão água na boca) a bagels típicos frescos ou mesmo colchas e almofadas de algodão – são mostrados com enorme ternura. A cidade popular, que lembra o cenário popular de Old Deli, é acordada pela sinfonia dos cantos dos vendedores arengando para sua clientela, cujas técnicas guturais tradicionais são passadas de pai para filho. O filme trata, na verdade, da fantástica resiliência desses cidadãos que moram onde trabalham e trabalham onde moram e, por isso, são diretamente afetados pelas dinâmicas cruéis de expulsão no capitalismo urbano, sempre associadas ao “legítimo” poder do Estado. Ao ter que sair de suas casas pela pressão do mercado imobiliário e da força policial, são também privados de seu trabalho e de sua sobrevida, ao mesmo tempo em que tradições são extintas. A cidade do folclore, da história, dos mercados, dos hábitos locais é sumariamente substituída pela urbe moderna e estéril, globalizada e “moderna”. Tempos passados e presentes mais uma vez se misturam, em um retrato que, para quebrar de vez com o “Orientalismo”, poderia ser filmado, quase que sem diferenças, em São Paulo ou em qualquer outra grande metrópole latino-americana. E essa história cruel, que afeta sem dor as novas gerações, nos é contada pela nova linguagem da juventude global, o rap.

Memórias do Oriente, de Niklas Kullström e Martti Kaartinen, por sua vez, é um filme finlandês que trata, ele também, do Oriente. Em uma ideia brilhante, os diretores recuperam o diário de viagem de G.J. Ramstedt, intelectual, linguista, filólogo e diplomata finlandês – ou melhor, Russo, no início da narrativa, e Finlandês após a independência daquele país, em 1917 –, especialista da língua mongol, que serpenteou o Oriente nos efervescentes anos da virada do séc. XIX para o XX. Aqui, passado e presente não estão entrelaçados em cenas do presente, mas sobrepostos de forma a estruturar a narrativa: os lugares narrados por Ramstedt um século atrás são ilustrados por cenas dos mesmos lugares, só que hoje em dia. A distante cidadezinha da Urga daqueles tempos é agora a vibrante e moderna Ulaanbaatar, capital da Mongólia, com quase 1,5 milhão de habitantes.

O contraste se dá entre dois tempos singulares da história: de um lado, os anos em que se construía o mundo moderno pós-Revolução Industrial, na Europa, um tempo de verdades absolutas, do triunfo das máquinas e da modernidade, mas também do fomento dos males da expansão capitalista e da concorrência entre nações. Tempos em que se construía, justamente, na reorganização da divisão colonial do mundo, a útil ideia do “Orientalismo” de Said. Tempos de inúmeros processos independentistas – como o da Finlândia –, de revoluções marcantes, como a russa, e da Primeira Grande Guerra. Do outro lado, os tempos atuais, quando se inicia um século em que as certezas daquela época transformaram-se em incertezas de um sistema que, na escala do planeta, não parece ter dado conta do recado. O “progresso” chegou ao “distante” Oriente (eufemismos típicos do Orientalismo) com toda sua riqueza, mas também suas vicissitudes: a desigualdade, a segregação, a insegurança, a falta de perspectiva para as novas gerações, que também aqui expressam esses sentimentos, mais uma vez, por meio do rap, uma marca da cultura global. Os tempos de hoje parecem retratar de maneira mais precisa do que se imagina a narrativa centenária de Ramstedt. O “progresso” chegou e os tempos mudaram, mas nem tanto assim.

“A Cidade do Futuro”, de Chad Freidrichs

O único filme dessa série que não se passa no “distante” Oriente é A Cidade do Futuro, de Chad Freidrichs. Mas também trabalha no registro “passado-presente” e talvez mostre justamente uma das origens do pensamento “modernizador” que alimenta o “Orientalismo” e seria pautado, ao longo do século XX e até os dias de hoje, pela expansão dominadora ocidental, que tanto aparece nos filmes aqui comentados. Este interessante documentário, com uma linguagem que já se torna frequente na produção norte-americana4, retrata, por meio de reconstituições de reuniões e narrativas de época, a epopeia de um típico “sonho empreendedor” do apogeu do crescimento industrial dos Estados Unidos, nas décadas do pós-Guerra. Como era de costume5, grandes projetos “modernizadores” eram alavancados a partir de iniciativas individuais mais ou menos idealistas, saídas de mentes visionárias – no caso, o físico e oceanógrafo, mas também empreendedor, Athelstan Spilhaus –, mas, por detrás, contando com o apoio oficial e poderoso da máquina pública governamental, capaz de aportar os imprescindíveis fundos públicos para tais projetos. Em uma dinâmica perversa que se tornou prática comum no capitalismo atual, o poder do lobby empresarial faz com que se “oficializem” como públicos grandes empreendimentos de interesse quase exclusivo do setor privado. Da mesma forma, aliás, que se dão, atualmente, as “renovações” urbanas retratadas em Istambul, no filme acima comentado, e em todas as grandes cidades do mundo.

No caso, o elemento interessante é que o projeto inovador, lançado em 1966, era também uma resposta razoável aos desvios que a urbanização capitalista já começava a apontar: a insustentabilidade do modelo urbano baseado no automóvel, no hiper-consumismo, na produção exacerbada de lixo, na destruição sistemática da natureza em nome da necessidade da urbanização. A “Cidade do Futuro” proposta por Spilhaus seria construída no lugar de um pequeno vilarejo bucólico no estado de Minnesota, e trazia todas as inovações possíveis, para a época, para enfrentar, em um laboratório urbano experimental, as mazelas da urbanização desenfreada. Carros automáticos (mesmo se a ideia do automóvel como modal de transporte ainda fosse provavelmente a única possível de se enxergar naquele momento), sistemas de tratamento de água e esgoto, logística urbana eficaz, etc.

Só que a ironia disso tudo é que a cidade “sustentável” seria derrotada, em um rico processo de contestação política, também característico do universo norte-americano à época, justamente pelos defensores …. do meio ambiente! Por mais que fosse inovador e portador de uma modernidade desejável pelo seu aspecto sustentável, o projeto sucumbia a duas contradições: primeiro, disfarçava, no fundo, um empreendimento com o objetivo final do lucro empresarial, algo, hoje sabemos, totalmente incompatível com o bem comum e o interesse público. Segundo, os custos ambientais da implantação de uma “cidade sustentável” tecnologicamente inovadora eram o da destruição de uma bucólica, simples e preservada região natural no norte dos Estados Unidos. O que seus cidadãos não deixaram acontecer. Ao longo de décadas, o projeto “visionário” de Spilhaus não se “viabilizou”, para usar o jargão empresarial, politica, econômica e ambientalmente, sucumbindo aos protestos, ao avanço do tempo e à própria modernidade que ele se propunha a trazer, que se encarregou de tornar obsoletas suas ideias antes futuristas. O curioso é que Spilhaus foi vencido por pessoas que defendiam os mesmos ideais de um futuro sustentável, mas por outro ângulo, não o do “progresso” ditado pelo capital, e sim de uma visão mais preocupada com o futuro do nosso mundo e de todos nós.

No fundo, é um pouco disso que se fala em todos estes filmes. De como a ideologia do progresso, da transformação, da modernidade ditada pelos interesses dominantes da reprodução do capital, assim como ocorre com o “Orientalismo” de Edward Said, são implacáveis ao ditar as lógicas de produção do espaço urbano, onde quer que se esteja, no Ocidente ou no Oriente. Mas também de como essa ideologia hegemônica se confronta duramente com a realidade de um mundo historicamente complexo, culturalmente diverso e, muitas vezes, resiliente. Embora seja esta uma história de dominação e de violências, essa “modernidade” que nos é imposta, mundo afora, na forma de uma urbanidade estéril e homogênea, a serviço da reprodução do capital, nem sempre é a que vence. Estes filmes nos trazem histórias de homens e mulheres que, no rap, nos sonhos ou nas ações concretas de resistência, nos fazem crer que ainda podemos ter cidades melhores, pensadas para o futuro e não para o lucro.

1 SAID, E. Orientalismo, São Paulo: Cia de Bolso, 2007.

2 A força do “Orientalismo” o faz ser identificável até em teses antagônicas, como a polêmica entre Francis Fukuyama e Samuel Huntington, no início dos anos 1990. O primeiro, no livro O fim da história e o último homem, apresentava a vitória final e definitiva, com o fim da Guerra Fria, da cultura ocidental capitalista sobre o mundo, na forma das democracias liberais. Em resposta, o segundo, conhecido pensador norte-americano, também liberal, lançava em O Choque de civilizações a ideia de que o mundo inevitavelmente se divide em civilizações que se confrontam, sendo a ocidental, evidentemente, hegemônica, mas que entraria em choque com a cada vez mais forte “coalizão” civilizacional sino-islâmica.

3 Para usar a expressão de Roberto Schwarz e outros intérpretes da formação nacional, que conceituaram a ideia da nossa “industrialização com baixos salários”, transferida para as cidades por Ermínia Maricato, com o termo “urbanização com baixos salários”.

4 Ver, por exemplo, o documentário canadense The Corporation (2004), de Mark Achbar e Jennifer Abbott.

5 Ver, por exemplo, o papel empreendedor do poderoso Robert Moses, na mesma época, retratado no filme Cidadã Jane: A Luta pela Cidade de Matt Tyrnauer, trazido pela Mostra Ecofalante de 2018.

*JOÃO SETTE WHITAKER FERREIRA é professor livre-docente da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP (FAU) desde 2000. Foi secretário de Habitação do Município de São Paulo em 2016. Foi coordenador do Laboratório de Habitação e Assentamentos Humanos (LabHab) de 2009 a 2015. Em 2017, um Doutorado Honoris Causa lhe foi concedido pela Universidade de Lyon. É autor de O mito da cidade-global: o papel da ideologia na produção do espaço urbano e Produzir casas ou construir cidades? Desafios para um novo Brasil urbano.