2 de maio de 2025

Migrações em Cena: Protagonismos Emergentes por um Mundo sem Fronteiras

Por Karina Quintanilha*

Segundo Stephen Castles e Mark J. Miller, reconhecidos teóricos dos estudos migratórios, a globalização neoliberal inaugura a “Era das Migrações”, caracterizada pela natureza global do fenômeno migratório em curso, marcado por profundas transformações sociais, culturais, ambientais, tecnológicas e político-econômicas no capitalismo.

Não por acaso, desde o aprofundamento do capitalismo neoliberal na década de 1990 e especialmente a partir do século XXI, temos testemunhado uma crescente expansão dos fluxos migratórios globalmente. Esses deslocamentos estão relacionados às “lógicas de expulsão”, expressão desenvolvida no livro Expulsões, da socióloga holandesa Saskia Sassen. Trata-se de movimentos migratórios impulsionados por fatores diversos e multifacetados: processos de despossessão, conflitos armados, guerras, crises econômicas e desemprego, desastres ambientais, mas também pelo desejo humano de viver melhor. Não é difícil prever que a relevância do fenômeno será cada vez maior no futuro próximo. A ONU já declarou que, até a metade do século, os desastres ambientais poderão envolver a vida de 200 a 250 milhões de pessoas.

Estimativas da Organização Internacional para as Migrações (OIM) e do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) apontam que mais de 280 milhões de pessoas são atualmente migrantes transnacionais — o que representa cerca de 3,6% da população mundial vivendo fora de seu país de origem. Desse total, mais de 40 milhões são refugiadas e 8 milhões são solicitantes de refúgio. Ao incluir também os deslocados forçados internos — pessoas forçadas a deixar suas casas e territórios sem cruzar fronteiras —, o número de pessoas em situação de deslocamento forçado ultrapassa 120 milhões em todo o mundo, sendo a maioria mulheres e crianças de países do chamado Sul global.

Mais da metade das pessoas migrantes transnacionais vive nos países do denominado Norte global (principalmente na Europa e nos Estados Unidos), apesar do incremento dos fluxos Sul-Sul devido principalmente ao recrudescimento das políticas de controle migratório nos países centrais do capitalismo, que têm restringido e redirecionado os fluxos dos países periféricos desde a crise econômica global de 2008/9.

Especificamente no caso das populações refugiadas, justamente pelas barreiras impostas à mobilidade internacional dessas pessoas (em sua maioria provenientes de países da periferia do capitalismo), há uma crescente concentração em países vizinhos a territórios em conflito, concentrando-se em países da África, Ásia (principalmente na região do Oriente Médio) e também da América Latina, como o Brasil.

Imagem do filme “Na Fronteira de Agadez”

De forma concomitante a essas tendências migratórias mundiais, seja como uma forma de sobrevivência ou para buscar melhores condições de vida e trabalho para além das fronteiras nacionais, agudizam-se as “necropolíticas”, um conceito desenvolvido pelo filósofo camaronês Achille Mbembe para se referir às políticas de morte na gestão e no controle diferenciado dessas “populações indesejáveis”.

Assim, como reflexo dessas novas formas de controle na era das migrações, ainda mais agravadas em tempos de ascensão global da extrema-direita, enquanto o número de imigrantes e de solicitantes de refúgio bate recordes anuais desde a virada do século, vemos intensificarem-se os discursos de ódio e as políticas restritivas, seletivas e discriminatórias contra essas populações, políticas essas que não estão apartadas das dinâmicas do mercado mundial e da divisão internacional do trabalho, como tão bem analisado em diversos estudos, como o do sociólogo italiano Pietro Basso.

Os efeitos dessas necropolíticas e de discursos xenorracistas na governança migratória global já são bastante conhecidos e objeto da espetacularização midiática: naufrágios mortais nas costas marítimas europeias, massacres, encarceramento em massa nos centros de detenção de migrantes, deportação em massa e recorde de mortes, como verifica-se não apenas no mar Mediterrâneo (“o maior cemitério da Europa”, como denunciou o Papa Francisco), como também na tenebrosa travessia do Darién, no Panamá, a caminho dos Estados Unidos. Além de rotas mortíferas e prisões arbitrárias, essas necropolíticas anti-imigrantes resultam em desaparecimentos nas fronteiras, torturas, estupros, e ainda desencadeiam novas rotas de aliciamento para o trabalho escravo e o tráfico de pessoas — práticas cujos alvos são prioritariamente as mulheres e os grupos sociais estigmatizados e mais marcados racialmente.

Na 14ª Mostra Ecofalante de Cinema, a seleção sobre migração retrata pessoas imigrantes e refugiadas, principalmente das diásporas africanas, mas também da Síria, da Turquia, do Afeganistão, da Rússia, da Ucrânia e da Palestina. Na maioria dos filmes, de produção europeia, destacam-se os protagonismos das mulheres, de jovens e de crianças em suas buscas por pertencimento, por cidadania e por um futuro no atual contexto das (i)mobilidades globais e de (neo)colonialismos do capitalismo financeirizado que aprofundam desigualdades históricas. A partir das histórias dessas pessoas e de suas experiências ao atravessar as fronteiras nacionais, os filmes nos convidam a enxergar e imaginar diferentes realidades de uma sociedade em permanente metamorfose, profundamente marcada pelo fenômeno migratório, que figura como uma das questões mais importantes (e urgentes) da contemporaneidade.

Os impactos das barreiras à livre circulação entre fronteiras são retratados por diferentes ângulos no instigante Na Fronteira de Agadez (On the Border, 2024), de Gerald Igor Hauzenberger e Gabriela Schild, que se passa na desértica cidade de Agadez, no Níger. A narrativa do protagonista evidencia de que forma a maior cidade do norte do Níger, localizada na entrada do Saara, se tornou um verdadeiro laboratório da União Europeia em termos de controle das fronteiras na África Ocidental, justamente para dificultar a livre circulação em direção ao continente europeu. Até 2023, era um local onde os fluxos migratórios eram monitorados e onde as forças de segurança recebiam treinamento por agentes da União Europeia. Uma rígida lei anti-imigrantes, que previa a pena de prisão de 25 anos para quem transportasse migrantes indocumentados e sem permissão de trabalho, garantia que apenas alguns poucos pudessem atravessar de Agadez até o Mediterrâneo. Em troca, foi prometido aos trabalhadores que ganhavam a sua renda com o transporte de migrantes que o desemprego entre jovens, o crime e a corrupção seriam combatidos. Mais do que tudo, o documentário apresenta um retrato do cruzamento de culturas na cidade tuaregue e o desastre do pacto com a União Europeia.

Imagem do filme “SOS: Save Our Souls”

Sobre este cenário global cada vez mais marcado por restrições à liberdade de ir e vir, de migrar entre fronteiras e de buscar refúgio — direitos previstos nos tratados internacionais de direitos humanos — é também emblemático o contexto retratado em SOS: Save Our Souls (Save Our Souls, 2024). O filme de Jean-Baptiste Bonnet direciona as lentes para as relações (desiguais) entre sobreviventes de um potencial naufrágio em alto-mar e uma equipe de socorristas a bordo de um navio operado por uma reconhecida ONG no Mar Mediterrâneo. Ao nos brindar com um registro único das complexidades em torno desses salvamentos na Costa da Líbia, localizada ao norte do continente africano, o filme possibilita enxergar mais que as tensões entre hospitalidade e hostilidade à imigração no contexto europeu, revelando também outras questões que perpassam as próprias ações humanitárias, as motivações das migrações forçadas e os resquícios do passado não tão distante do colonialismo europeu no continente africano, que produziu uma das maiores barbáries da história, ainda sem reparação.

Ao adentrar de forma mais íntima e poética nas subjetividades e nos significados do que é estar em situação de deslocamento forçado a partir da visão das próprias pessoas refugiadas, o belíssimo Kora (2024), curta-metragem dirigido pela renomada Cláudia Varejão, documenta relatos e imagens de mulheres refugiadas que vivem em Portugal. Uma das protagonistas descreve que “a sensação de ser forçada a deixar seu país é como se um médico dissesse: se você quiser sobreviver, precisa nos deixar amputar uma parte do seu corpo”. A partir das memórias do passado e das pessoas amadas que tiveram que deixar para trás, o filme traz questões políticas sobre o senso de humanidade: “Entre diferenças e semelhanças incríveis, podemos nos relacionar uns com os outros e encontrar outros caminhos”, anuncia outra protagonista.

Imagem do filme “Kora”

Em outra chave de abordagem, mas ainda tangenciando as relações históricas entre as migrações do Sul global em direção à Europa, o filme Lugares Familiares (Familiar Places, 2024) lança questões diversas acerca das relações sociais contemporâneas que se entrecruzam na busca por pertencimento, por liberdade e por “sentir-se em casa”. A protagonista Akosua, mulher queer ganesa-alemã, é acompanhada ao longo de três anos por sua amiga e diretora Mala Reinhardt, de origem indiana-malaia-alemã, em uma jornada entre a Alemanha e o Gana, país da África Ocidental. Com origens migrantes e racializadas não-brancas, elas relatam e vivenciam diferentes experiências marcadas pelas diásporas e questões de identidade sexual, gênero, raça, etnia, reparação e pertencimento.

Imagem do filme “Lugares Familiares”

Por fim, podemos ter esperança no futuro ao assistir ao cativante documentário Favoriten (2024), que se passa em um dos bairros mais culturalmente diversos de Viena, capital da Áustria, onde vivem famílias migrantes da classe trabalhadora com seus filhos. Durante três anos, Ruth Beckermann acompanhou uma turma de alunos, dos sete aos dez anos de idade, em uma escola do bairro. A maioria dos alunos, a princípio, não fala alemão. Algumas famílias carregam traumas de guerra, principalmente da Síria, e muitas enfrentam discriminação em uma Europa carregada de políticas anti-imigrantes e do sentimento de ódio aos muçulmanos. A despeito dos recursos limitados oferecidos pelo sistema educacional, a dedicada professora Ilkay, de origem turca, conduz a turma com estratégias criativas que incorporam pautas relevantes, como a diversidade religiosa e cultural, fazendo a diferença no acolhimento das famílias e na evolução educacional daquelas crianças, apesar dos altos e baixos. O resultado é um retrato surpreendentemente positivo do potencial de organização de uma pequena comunidade, exaltando a infância migrante (futuro da humanidade) e ainda celebrando as/os trabalhadoras/es da educação e as experiências dentro e fora da sala de aula.

Imagem do filme “Favoriten”

Desse modo, tais filmes sobre as migrações trazem para o centro do debate o protagonismo de pessoas imigrantes e refugiadas, reconhecendo-as como sujeitos políticos de transformação da sociedade. São filmes que deslocam o nosso olhar sobre o “outro” e a “outra” ao nos aproximar das narrativas das próprias pessoas que vivenciam a realidade migratória e desafiam as narrativas que “miserabilizam ou criminalizam essas pessoas, atribuindo significados distintos daqueles oferecidos pelas representações hegemônicas e exercendo agência de formas diversas e disruptivas” (Binimelis-Adell; Varela-Huerta, 2022). Assim, nos encorajam a imaginar um mundo sem fronteiras para o qual nos convocam os movimentos sociais de migrantes no Brasil e mundo afora.

Referências

BASSO, Pietro. “Migration”. In: MUSTO, Marcello (ed.). The Marx Revival: Key Concepts and New Interpretations. Cambridge: Cambridge University Press, 2020, pp. 232-46.

BINIMELIS-ADELL, Mar; VARELA-HUERTA, Amarela (eds.). Espectáculo de frontera y contranarrativas audiovisuales. Estudios de caso sobre la (auto) representación de personas migrantes en los dos lados del Atlántico. Nova Iorque: Peter Lang Publishing, 2022.

CASTLES, Stephen; HAAS, Hein de; MILLER, Mark J. The age of migration: International Population Movements in the Modern World. Londres: Macmillan, 1993.

MBEMBE, Achille. Necropolítica. 3 ed. São Paulo: n-1 edições, 2018.

MBEMBE, Achille. A ideia de um mundo sem fronteiras. Revista Serrote. Tradução de Stephanie Borges. 2019.

SASSEN, Saskia. Expulsions: Brutality and Complexity in the Global Economy. Cambridge: Harvard College, 2014.

*KARINA QUINTANILHA é advogada e doutora em Sociologia pela UNICAMP, com estágio doutoral na Università di Venezia (Itália) e especialização em “Migração e Refúgio sob a Perspectiva de Direitos Humanos” pela UNLa (Argentina). É atualmente pesquisadora pós-doc no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP). Possui graduação em Direito e mestrado em Ciências Sociais pela PUC-SP. É cofundadora do Fórum Internacional Fontié ki Kwaze – Fronteiras Cruzadas na USP, responsável pela coordenação de projetos de pesquisa, extensão e cultura tais como a Mostra de Cinemas Migrantes.