28 de maio de 2023

Migração e Fronteiras em Três Documentários

Entrevista com Vera Silva Telles e Tiago Rangel Côrtes, por Pedro Russi

Na 12ª Mostra Ecofalante de Cinema, três documentários propõem olhares distintos para entender os processos migratórios. São perspectivas que expõem o que muitas vezes é silenciado. Em Recursos (Canadá, 2021), de Hubert Caron-Guay & Serge-Olivier Rondeau, retrata-se a necessidade de mão de obra para a indústria da carne, em expressivo desenvolvimento no Quebec. Para continuar produzindo de forma competitiva na lógica do sistema movimentado pelo capitalismo, otimizando a produção, contratam requerentes de asilo. Vemos especialmente latino-americanos e latino-americanas. Nas adjacências das fabricas, somente o milho cresce. Em O Último Refúgio (Mali, França, África do Sul, 2021), documentário do malinês Ousmane Samassekou, as imagens, silêncios e conversas das e dos migrantes acontecem ao sul do deserto do Saara, na Casa dos Migrantes, um abrigo temporário para aqueles e aquelas que buscam chegar à Europa cruzando a África. Ilusões e incertezas, sonhos e medos pelas suas vidas e destinos são vivenciados nesse lugar. A intimidade transcorrida e experimentada nos espaços desse refúgio transmite instantes do que virá, como esperança, incertezas e a melancolia do exílio. Aqui en la Frontera (2022), documentário brasileiro dirigido por Marcela Ulhoa & Daniel Tancredi, leva à fronteira entre o Brasil e a Venezuela, cenário das maiores crises relacionadas à migração da contemporaneidade na América Latina. Nesse espaço de fronteira e acolhidas distintas, o documentário narra as histórias de três pessoas de origem venezuelana: Stephanny, jovem mãe de 21 anos que precisa retornar ao país para buscar sua filha; Francis, mulher trans, líder de um abrigo de refugiados militarizado do Governo Brasileiro, e Argenis, que, sob ameaça de despejo, organiza uma ocupação com mais de 300 venezuelanos em Boa Vista. No momento atual, não podemos pensar as migrações alheias aos fenômenos econômicos, políticos e, especialmente, ambientais. Eis o sentido de chamar a atenção para o tema da migração nesta mostra de cinema.

Para aprofundar na reflexão sobre a temática da migração contemporânea, presente nos três títulos, Pedro Russi, professor de jornalismo na Universidade da República do Uruguai (Udelar), conversou com Vera Silva Telles, professora da USP e coordenadora do grupo de pesquisa “Cidade e Trabalho”, que, em uma de suas frentes de pesquisa, trata da presença dos migrantes nas tramas da cidade, nos circuitos dos mercados informais de trabalho e moradia, e com Tiago Rangel Côrtes, que compõe um grupo de pesquisa e está desenvolvendo seu doutorado sobre migrações transnacionais contemporâneas em São Paulo. 

“O Último Refúgio”, de Ousmane Samassékou

Pedro Russi (PR): Como podemos pensar os sentidos em jogo para as pessoas que se colocam em movimento? Como refletir sobre as suas travessias e deslocamentos na migração? 

Vera Silva Telles & Tiago Rangel Côrtes (VT & TC): Estima-se mais de um bilhão de migrantes em movimento no mundo. Deslocamentos de populações, intensos fluxos migratórios sempre existiram e acompanham a história das sociedades e Estados nacionais em todos os quadrantes do planeta. Mas, nas últimas décadas, esses deslocamentos ganharam proporções inéditas, e isso tende a se acentuar nos próximos anos. Guerras entre países, conflitos armados, violência política, disputas entre gangues e milícias pelo controle das rotas de mercados legais e ilegais (drogas, armas, minérios…). Crise econômica prolongada. Destruição dos meios de vida sob impacto de desastres ambientais e alterações climáticas. Também: expulsões de populações de seus territórios de vida, nos campos, cidade e florestas, transformados em fronteiras de expansão dos mercados. Nas rotas dos vários fluxos migratórios que recortam países e regiões do mundo, é possível encontrar os sinais das complicações do mundo atual. Por isso se diz que as migrações podem ser tomadas como fio condutor, algo como um guia que nos faz apreender as macrotendências que se constelam neste mundo conflituoso e excludente e que ganham configurações diferenciadas conforme os lugares, tempos e espaços. 

Mas há também outra maneira de reconstituir as histórias tecidas por entre as tragédias e dramas do mundo. E é isso que os três documentários nos fazem ver. Três situações diferentes, três lugares distintos do mundo. Cada qual coloca em cena homens e mulheres que se põem em movimento, que lidam com a difícil decisão de sair de seus locais de origem, que enfrentam travessias penosas, mais ou menos longas, mais ou menos perigosas, mas sempre incertas quanto ao que pode acontecer e quanto ao que podem esperar no lugar almejado de destino. Desejos de uma vida plausível de ser vivida. Eis o ponto que vale enfatizar, e que transparece em cada um dos três documentários: desde a decisão de partir, a travessia e os pontos de passagem ou de chegada, nada disso é possível sem que se mobilizem redes de afetos e de apoio entre pares e parceiros, vínculos construídos nessas travessias e nessas passagens. Prestem atenção nas sociabilidades construídas em uma ocupação de moradia em Roraima, acolhendo venezuelanos recém-chegados (Aqui en la Frontera); nas interações e gestos afetivos de acolhimento, entre orientações, aconselhamentos e troca de experiências no “último refúgio” antes da temerária travessia do deserto do Saara (O Último Refúgio); também nos alojamentos de mexicanos e guatemaltecos à espera de documentação e permissão de trabalho em uma grande empresa canadense (Recursos). No miúdo dessas interações, nas várias situações em que ocorrem, há mundos sociais em construção, um “fazer-mundo” que finca suas marcas, suas histórias e suas experimentações por onde esses homens e mulheres passam e se instalam, provisoriamente ou não. 

PR: Nos três documentários, nos deparamos com três pontos de acolhimento/refúgio/abrigo diferentes, tanto na sua estrutura organizacional como também naquilo que podemos compreender como a espera e seus sentidos de futuro, além das vivências presentes, nesse instante de fronteira. Portanto, como pensar os riscos e ameaças, as esperanças ou desânimos, nesses pontos de acolhimento ou refúgio, à espera de vistos de trabalho ou do deserto?

VT & TC: Em cada um dos filmes, vemos situações e questões diferentes. Entre os três, porém, há uma linha de intensidade comum: a indeterminação em relação ao futuro. A espera de algo que está por vir. Mas isso não é um tempo-espaço vazio. A indeterminação pode ser tomada como um entrelaçamento de muitos outros começos que podem ocorrer ou não. E a espera é feita dessas tramas relacionais – também sociopolíticas – encenadas em cada um dos três filmes. Sim, é um “fazer-mundo”, como dito linhas atrás. Mas é um fazer-mundo que se tece em torno das urgências da vida, “um dia de cada vez”, e que se alimenta de sonhos, expectativas, esperanças de um porvir – e também fabulações, tais como: no último refúgio à beira da imensidão do deserto, homens e mulheres ponderam os riscos de uma difícil travessia para chegar à almejada e imaginada Europa. Arriscar o imponderável da travessia? Ou retornar aos povoados de origem? Como lidar com a possibilidade de não conseguir realizar a travessia? Olhares fixos às telas dos celulares, parentes, amigos ou conhecidos que chegaram ao cobiçado destino, a Europa, alimentam o anseio pelo desconhecido. “O Facebook roubou o seu espírito”, alerta um gestor da Casa do Migrante para uma adolescente de Burquina Fasso.

No caso do filme canadense (Recursos), a passagem foi feita, atravessou-se a fronteira. Mexicanos e guatemaltecos querem deixar histórias de violência e riscos de vida para trás. A espera é pelos documentos. Mas isso é demorado (de novo, a espera). Enquanto isso, portam o documento que autoriza ao trabalho por tempo determinado. E depois… bem, depois é depois, como se diz. Na persistência da indeterminação e das incertezas do momento, sonhos de um trabalho fixo, de uma estabilidade de vida que permita projetar um futuro possível – comprar um carro, trazer os entes queridos que ficaram no país de origem ou enviar recursos para os pais e parentes.

Na fronteira entre Brasil e Venezuela, espera-se por oportunidades de trabalho (Aqui en la Frontera). Espera-se também por uma vaga no programa nacional de interiorização de venezuelanos, lidando com as incertezas do que podem encontrar nas cidades para as quais seriam encaminhados: São Paulo, Rio de Janeiro e outras. As relações de afeto, os conflitos e os sonhos que se misturam e se atravessam produzem um mundo falado em portunhol, redes de aliança e de enfrentamento dos agouros do presente. A violência policial, intolerâncias, agressões xenófobas estão ali, à espreita. A tensão latente está presente de ponta a ponta nesse filme, compõe o cenário de esperas, indeterminações, incertezas e ressoa nas tramas desse “fazer-mundo” – vínculos solidários, redes de afetos e apoios, trocas e interações vão se tecendo, no dia a dia, no fio da navalha.

“Recursos”, de Hubert Caron-Guay e Serge-Olivier Rondeau

PR: Diante do exposto, considero interessante avançar e problematizar o conceito de fronteiras, para além das definições político-administrativas, porque as fronteiras são modulares e diferenciadas conforme geopolíticas e políticas locais. Isso também nos permite pensar sobre o corpo como fronteira, como em estado de trânsito. Dessa maneira, estaríamos ampliando o conceito básico ou elemental de fronteira.

VT & TC: “Fronteira é o lugar vago e indeterminado, criado pelo resíduo emocional de um limite não natural. É um constante estado de transição” – frase de Gloria Anzalúa colocada como epígrafe do filme brasileiro-venezuelano. As fronteiras não são estanques. Tampouco se confundem com “limite”. As fronteiras existem para serem atravessadas. Operadores desses atravessamentos, os migrantes nos ajudam a compreender de que matéria elas são constituídas. No filme malinês (O Último Refúgio), o deserto do Saara, pontilhado por grupos armados e forças militares da Al-Qaeda, dificulta a travessia de quem vislumbra um dia chegar à Argélia e, depois, rumar à Europa.  

Não se trata de tomar as fronteiras político-administrativas entre países como desimportantes. Sim, importam, e muito. Mas elas são porosas. E têm efeitos de poder que marcam os corpos das pessoas em mobilidade conforme os códigos e normativas de cada país. O migrante ganha estatutos diferenciados: o “clandestino”, a ser contido por forças policiais, o “refugiado” e os tortuosos caminhos institucionais-burocráticos para sua incorporação no país, ou o “solicitante de refúgio”, com acesso precário a direitos. A fronteira se inscreve no acesso diferenciado aos documentos. No Canadá, as restrições são bem maiores do que no Brasil. Aqui, os “solicitantes de refúgio” conseguem carteira de trabalho, cartão do SUS e um CPF, documentos que legalmente possibilitariam acesso à conta bancária, vaga de trabalho formal ou atenção à saúde, ainda que nem sempre esses direitos se efetivem –  tudo é negociado e agenciado conforme situações e contextos de vida. Por outro lado, a fronteira se inscreve no corpo do migrante – no corpo venezuelano que aciona imaginários políticos e se torna alvo de xenofobias variadas na região (Aqui en la Frontera). 

O drama vivido pelos “latinos” assim que atravessam a fronteira canadense é outro (Recursos). A fronteira é objetivada nos regramentos institucionais que selecionam os tipos de emprego disponíveis aos migrantes – experiência anterior e qualificações profissionais não valem muita coisa, ou, pior, podem atrapalhar a inserção na empresa, como adverte um funcionário também “latino” da seção de recrutamento de migrantes da multinacional. E é assim que eles são encaminhados para a empresa que se apresenta como a grande e generosa oportunidade de emprego para os recém-chegados – o grande frigorífero, o mais importante do Canadá. Uma funcionária avisa: as empresas não se dispõem a contratar requerentes de asilo para cargos em que se exige treinamento – é tempo perdido caso a pessoa não consiga o papel e perca a autorização de trabalho. E o trabalhador é aconselhado de que, para conseguir asilo, precisa construir seu dossiê e provar ao juiz que tem bons planos para ficar no país. 

As leis do Estado, regras e normativas que regulam passagens e (im)possibilidades circulam como referências que pautam os deslocamentos migrantes. É por isso que se diz que as fronteiras são móveis, inscrevem-se no corpo migrante, são internalizadas e afetam suas condutas, suas formas de se organizar e de se articular. No Brasil, isso também passa pela forma como o governo federal, sobretudo o exército brasileiro, se vincula com agências transnacionais de apoio aos refugiados. No filme canadense, a ênfase está na relação com o emprego e a exigência de domínio da língua, o francês, para conseguir um número de registro da assistência nacional. No Mali, a presença das regras estatais é distante, quase evanescente, e o que parece regular os movimentos é a ajuda humanitária, que se corporifica na gestão da Casa do Migrante. O gesto de acolhimento e proteção é acompanhado por aconselhamentos que evocam os riscos da travessia do deserto, as dificuldades quase insuperáveis para a instalação em solo europeu, o insucesso quase certo – e, então, por que não o retorno? 

“Aqui en la Frontera”, de Marcela Ulhoa e Daniel Tancredi

PR: O que pensar dos sonhos, projetos e desejos de uma vida plausível como força que move as pessoas a migrar, a se deslocar? De que forma isso entra no jogo migratório, considerando-se as disposições das empresas que se aproveitam, para enriquecer o mercado de trabalho, dessa condição de desespero, precariedade e incerteza das vidas e seus destinos?

VT & TC: A força, o impacto e a beleza dos três documentários estão no modo como eles são capazes de fazer ver como operam as práticas desse “fazer-mundo” que estamos aqui enfatizando. Seja no Mali, no Canadá ou em Roraima, assim como em qualquer lugar em que migrantes circulem, se instalem e tentem (re)construir suas vidas, há práticas de engendramento de mundos que passam a compor com as histórias locais, interagir com os habitantes de cada lugar, mobilizar recursos e mediações políticas para garantir possibilidades de vida. 

Não se trata de romantizar essas histórias. Longe disso. Violências, exclusões, perseguições estão cravadas nesses percursos. As redes de afeto e apoio, alianças e vínculos construídos nos deslocamentos e nos locais de passagem, tudo isso é mobilizado para administrar, enfrentar e contornar violências, riscos de morte e sofrimentos – e evitar cair no desespero, na desesperança e destruição. É disso que depende a vida e as possibilidades de vida. 

Por outro lado, o filme canadense nos alerta para as formas insidiosas com as quais empresas e mercados locais podem se aproveitar justamente dos sonhos e afetos desses homens e mulheres que fogem de histórias de violências, perseguições, rupturas e sofrimentos. A indeterminação e as incertezas que regem suas vidas, essa espera indefinida, os coloca em disponibilidade, prontos para aceitar brechas possíveis dos hoje expansivos e proliferantes mercados de trabalho precário. A riqueza, fortuna e prestígio de uma grande empresa, o frigorifico canadense, se alimenta dessas formas de aproveitamento e captura dos sonhos e projetos que mobilizam migrantes em busca de uma vida plausível de ser vivida.

PR: Para encerrar esta conversa, o que sentiram ao ver os três documentários?

VT & TC: Os filmes vistos em conjunto trazem a necessidade de se pensar o estatuto da aliança e da forma coletiva de se produzir mundo. Cada um, a seu modo, denuncia um mundo desigual, ao mesmo tempo que apresenta o afeto e as alianças como motores para a ação que produz a vida. As fronteiras, os estatutos legais, os Estados nacionais e o capitalismo não são dados imutáveis, mas construídos e reiterados cotidianamente por todos nós. Assim, cabe a todos os engajados na luta assumir a tarefa de desativação desses dispositivos de poder.  

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Pedro Russi

Doutor e Mestre em Comunicação (UNISINOS-Brasil), atualmente é docente na Universidad de la República Uruguay (UdelaR/CENUR-LN) no Departamento de Ciências Sociais. É também Coordenador do Grupo METICs (Modos Epistemológicos, Teorías Interdependientes y Complejidad Social) e Diretor do CISECO (Centro Internacional de Semiótica e Comunicação).

Tiago Rangel Côrtes

É mestre e doutorando em sociologia pela USP, onde desenvolve pesquisa sobre as migrações transnacionais contemporâneas a partir do prisma urbano. É também técnico do DIEESE (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos).

Vera Silva Telles

Professora sênior do Departamento de Sociologia da USP, é coordenadora do grupo de pesquisa Cidade e Trabalho. Faz pesquisas e publicações sobre ilegalismos urbanos. Sobre a questão migratória, publicou recentemente, com seus parceiros de pesquisa, “As tramas políticas das cenas de protesto” (Le Monde Diplomatique Brasil, 2022).