16 de maio de 2019

Histórias de Resistência e Adaptação – por Daniela Chiaretti

Texto sobre os filmes da temática Povos&Lugares do Panorama Internacional Contemporâneo

por Daniela Chiaretti*

 

O escritor polonês naturalizado britânico Joseph Conrad tinha 32 anos quando subiu o rio Congo e conheceu a degradação humana diante da exploração do marfim. A experiência o levou a escrever Coração das Trevas, o livro que, por sua vez, inspirou Apocalypse Now, de Francis Ford Coppola.

Ao narrar o que viu no Congo de Conrad ou no Vietnã de Coppola, Kurtz, o enigmático personagem de ambas as obras, expressa o que se aplicaria também ao epicentro do documentário Bem-Vindo a Sodoma, um lixão de equipamentos eletrônicos erguido sobre uma fétida lagoa em Gana: “O horror! O horror!”.

Agbogloshie encarna essa forma contemporânea de horror. O nome difícil do maior depósito de restos de eletrônicos do mundo torna-se inesquecível para quem vê e escuta o que está retratado na produção austríaca Bem-Vindo a Sodoma, um dos filmes mais impactantes do eixo temático Povos & Lugares da 8ª Mostra Ecofalante. Fica a noroeste de Accra, a capital de Gana. Em seu terreno cinzento, o solo está contaminado, o ar também, e a água é vetor de cólera. Mosquitos transmitem malária. Pessoas dormem, cozinham, rezam e carregam bebês em ambiente envenenado. Bem-Vindo a Sodoma.

Imagina-se que ali vivam seis mil homens, mulheres e crianças, que se organizaram para catar metais no chão cinza, desmontar tudo o que funcionou algum dia, comer guisados cozidos ao lado de pilhas de pneus velhos, respirar fumaça de cabos queimados, erguer montanhas de monitores e ver a vida passar ao lado de latões, maçaricos e urubus. De vez em quando aparecem uns boizinhos magros de chifres pontudos, que não se sabe a quem pertençam e por que circulam em um lugar assim. Um celular que ainda funciona faz com que jovens do lixão acessem a vida dos outros pelas imagens de desconhecidos que vão à praia, têm flores em casa, passeiam com seus cachorros e tiram fotos coloridas. Agbogloshie tem chão cinza, lagoa cinza, céu cinza. A única cor que sobressai é a dos restos de plásticos azuis esmagados no chão. É um pedaço do inferno.

“Pra Cima, pra Baixo e pros Lados: Cantos de Trabalho”, de Iswar Srikumar e Anushka Meenakshi

Na última reunião do Fórum Econômico Mundial, em Davos, agências das Nações Unidas soltaram um relatório no qual se diz que a produção anual de lixo eletrônico chega a 50 milhões de toneladas e apenas 20% disso é reciclado. O consumo e o descarte de itens, que vão desde painéis solares a celulares inteligentes, se dá hoje em escala sem precedentes. Alguns têm mais responsabilidade do que outros sobre o insensato volume de lixo que soterra um pedaço de Gana. Em 2017, consumidores de países de alta renda usaram em média dez toneladas de materiais primários que foram extraídos de outros lugares. O mundo industrializado explora recursos, produz a partir deles, usufrui dos bens e se desfaz de itens, que, por sua vez, são incinerados ou levados às escondidas a cantos mais pobres do planeta.

No lixo, memórias e desejos surgem em camadas. “Isto é a África. Temos que ser como leões” é o grito de resistência de um dos que vive das sobras do excesso de outros. Geladeiras, computadores, monitores e televisões voltam a ser alumínio, cobre e zinco. “Na Europa, quando algo quebra, jogam fora. Nós somos os melhores recicladores. Eles deveriam mandar mais”, diz um personagem.

Agbogbloshie é o lado sombrio da economia circular que ainda engatinha. O uso intensivo dos recursos está colocado de forma indireta nas várias narrativas de Bem-Vindo a Sodoma. A produção e o consumo insustentáveis, que colocam o planeta em risco, são o desconforto do documentário onde não há sangue nem violência explícita. O modo de vida daquelas pessoas é o que assombra. São protagonistas de um extrativismo sem natureza, de separar o sujo do enferrujado. Mas também, de surpreender ao transformar o descarte em arte, em poesia, em música e em alegria.

O senso de felicidade coletiva transborda em vários momentos da produção indiana Pra Cima, pra Baixo e pros Lados: Cantos de Trabalho. Somos transportados para algum lugar na fronteira da Índia com Mianmar, no estado de Nagaland. Phek é um vilarejo onde vivem 5.000 pessoas que plantam arroz para o próprio consumo. Seria igual a muitos outros, se os Naga não cantassem o tempo todo. Cantam quando os homens preparam os terraços para o cultivo, quando as mulheres sobem para as roças, quando usam a enxada, quando levam a produção em grandes cestos. Cantam quando chove, cantam quando estão irritados.

É um canto muito particular, o “li”. Não funciona em solos, mas como uma conversa de várias vozes que falam de amores e saudade, de amizade, trabalho e da morte. Há um esforço comunitário em não perder a tradição e não esquecer as canções, em não submergir à força da igreja que ergueu um templo gigante no centro do humilde vilarejo. Pra Cima, pra Baixo e pros Lados: Cantos de Trabalho é poético até nas falas dos velhos que recordam o longo conflito com a Índia: “Fomos buscar lugares onde fantasmas e tigres se escondem. Estávamos com medo dos seres humanos”, conta um deles. A luta pela independência Naga marca um dos mais longos confrontos armados existentes. O exército indiano continua presente na região.

O desequilíbrio de forças no mundo, a desigualdade de renda, a concentração de poder e de informação afeta povos em muitos lugares. Na Polinésia Francesa, 30 anos de testes nucleares franceses fracionaram a existência dos Ma’ohi, como bem descreve a sinopse de Ma’Ohi Nui. As cenas idílicas do início da produção belga são interrompidas bruscamente por uma aterradora explosão atômica no oceano. “Fomos levados em barco”, conta um ma’ohi, “Olhamos para trás antes de sair do atol. Foram moentos sem palavras”.

A radiação que degradou a vida no atol Moruroa persistirá por um tempo desconhecido, além de esgarçar a vida da comunidade. “A explosão no Pacífico trouxe a palavra contaminação para a nossa língua”, conta um deles. Foram 193 testes nucleares na Polinésia, de 1966 a 1996. A frágil economia local foi inundada pela hegemonia francesa. De uma hora para outra, comunidades começaram a ganhar em uma semana o que faziam em três meses. “O dinheiro comprou o silêncio. Fechamos nossos olhos, nossos ouvidos”, conta outro.

A interferência tóxica na vida ma’ohi teve outras dimensões. Ao deixar de pescar e de plantar, destruiu-se a maneira ancestral de subsistência, o jeito de subir nos coqueiros, a espera pela lua cheia para plantar bananeiras. Hoje, gente carente constrói casas de noite, clandestinamente, para acrescentar mais um casebre acanhado num corredor de palafitas bem ao lado da pista de um aeroporto internacional.

O resgate das lendas, da língua, de lançar-se novamente ao mar e do retorno ao campo sugere algum alento neste contexto. O pensamento ma’ohi está contido na linda descrição do que pode representar uma tatuagem: “Na tua pele você escreve a história do teu nome, a história dos teus ancestrais. A história da tua terra. Na tua pele você escreve teus ritos de passagem. E os momentos que marcaram a tua vida. Na tua pele, você traça os sinais que te protegem contra forças invisíveis. E você desenha os caminhos que te ajudam a atravessar o oceano”.

A resistência aos anos de colonização aparece em momentos simples, quando velhos acendem cigarros e mostram aos mais jovens como se amarram anzóis, e eles escutam. Há alguma mágica nesses costumes.

“Ma’Ohi Nui”, de Annick Ghijzelings

Encontramos a mesma delicadeza no retrato das memórias da japonesa que sobreviveu à bomba de Hiroshima em Obon, palavra que remete ao ritual budista de cultuar antepassados. Na animação alemã, Akiko Takakura relembra a infância com o pai rígido e a mãe, “para quem era importante perdoar os outros”. O traçado simples dos desenhos movimenta as lembranças da protagonista enquanto ouvimos sua voz. É o bastante para comover. Durante um diálogo banal, o ritmo da vida se corta e se transforma, e nada mais é como antes.

Um desastre também muda para sempre o cotidiano de uma aldeia nas montanhas do norte do Paquistão. A comunidade sofre com o deslizamento de terra que bloqueou o rio e inundou casas e plantações. A Ausência dos Damascos é contaminado pela melancolia do que se perdeu e de quem retoma a vida como pode. Em contraponto, em O Botanista, um botânico autodidata que conhece mais de 300 plantas e vive com a família no montanhoso Tajiquistão cria a partir do nada. É da mente engenhosa desse homem das cordilheiras do Pamir que surge uma pequena hidrelétrica ou uma engenhoca para fazer fogo num lugar onde não existem fósforos. O talento de criar com poucos recursos faz de Raïnberdi um daqueles seres humanos excepcionais que encontram (ou inventam) saídas na crise.

O fio condutor da seleção de Povos & Lugares aponta para a diversidade e também para as convergências entre comunidades remotas. A dança coletiva dos Naga na Índia lembra a de povos indígenas do Xingu, no Brasil. O consumo insensato provoca náuseas ao espectador confrontado com o desperdício ao ver o lixo depositado em Gana, mas é a culpa que estabelece a conexão. Em cada documentário, o que vem de dentro é o que individualiza os povos e se manifesta em cantos, desenhos e danças.

Não se conta fim de filme, mas um deles termina com a corrida de um jovem para a frente da lente. A voz muda dos excluídos carrega muitas intensidades – em sua expressão há desespero, revolta, ameaça e talvez também alívio, esperança e força. A cena é perturbadora porque não é ficção. Está acontecendo neste momento, em algum canto do mundo.

*DANIELA CHIARETTI é repórter especial de Ambiente do Valor Econômico desde 2005 e tem feito a cobertura das grandes conferências ambientais das Nações Unidas. Foi editora-chefe da revista Marie Claire e trabalhou na Gazeta Mercantil, Folha de S. Paulo, Veja e UOL. Ganhou o Prêmio Esso de Informação Científica, Tecnológica e Ambiental em 2011, com reportagem feita em viagem ao Ártico, em julho de 2010. Em 2019, o governo francês lhe concedeu o título de “Chevalier” da Ordem Nacional do Mérito.