Texto sobre os filmes da temática Emergência Climática do Panorama Internacional Contemporâneo
Por Nádia Pontes*
No momento em que esta nona edição da Mostra Ecofalante estreia, assistimos aos filmes de nossas casas, com medo das ruas, evitando o contato para nos protegermos de uma infecção que pode ser letal. A pandemia do novo coronavírus, que já havia provocado a morte de mais de 91 mil brasileiros até o fim de julho, nos mostra o poder contra humanos de um micro-organismo que, até então, ocupava corpos de outros animais isolados de nossa sociedade, sem nos apresentar riscos. À medida que avançamos sobre áreas naturais e destruímos habitats de espécies que vivem em equilíbrio, desafiamos possíveis novos inimigos, como o SARS-COV-2.
Enquanto acompanhamos chocados os desdobramentos do vírus que provoca a covid-19, outros fenômenos que também ameaçam a nossa espécie não dão trégua. Cientistas de agências governamentais nos Estados Unidos e na Europa alertam que 2020 tem tudo para se consolidar como o ano mais quente desde que os registros começaram. A última década, de 2009 a 2019, já foi confirmada como tendo as temperaturas mais altas desde 1850. O planeta está mais quente e nós podemos adoecer ainda mais.
No início do ano, quando as notícias sobre um novo vírus que fazia vítimas na China começaram a rodar o mundo, pesquisadores da Universidade Estadual de Ohio revelaram dados igualmente preocupantes. Após coletarem e analisarem fragmentos de um dos solos congelados mais antigos do mundo, na calota de Guliya, planalto tibetano, eles identificaram pelo menos 33 gêneros de vírus “presos” no gelo, e 28 deles eram totalmente desconhecidos pela ciência. Esses micro-organismos estão incrustados ali há 15 mil anos. Isso significa que, à medida que o planeta aquece e as geleiras derretem, novos vírus e bactérias potencialmente perigosos para nossa saúde podem ser liberados e “entrar” para nosso cotidiano.
As temperaturas mais altas e o colapso das geleiras também levam ao aumento do nível do mar, uma ameaça que recai diretamente sobre cidades costeiras, que podem ficar submersas, como Nova Iorque. É ela o cenário do documentário O Mês Mais Quente, de Brett Story. Filmado ao longo de agosto de 2017, o filme reúne depoimentos, impressões e vivências de nova-iorquinos anônimos. Praticamente sem mencionar o termo “mudanças climáticas”, o documentário nos apresenta um retrato do consciente coletivo e dos medos que os entrevistados têm sobre o futuro nessa cidade que tem de tudo: ricos, pobres, imigrantes, refugiados, jovens ambiciosos, desempregados, desabrigados, ambientalistas.
Embora julho seja historicamente o mês com as temperaturas mais elevadas, aquele agosto sufocante de 2017 foi marcado pela destruição trazida pelo furacão Harvey, que atingiu Texas. Enquanto isso, em Nova Iorque, o filme visita os locais onde vestígios do furacão Sandy ainda são visíveis, mesmo cinco anos após ter levado morte e enchentes àquela parte da costa. Depois de ter passado pelas Bahamas, Cuba, Haiti, Jamaica e República Dominicana com ventos de até 400 quilômetros por hora, a tempestade chegou a Nova Iorque em outubro de 2012 e coincidiu com a maré cheia, o que provocou inundações. Estima-se que mais de 350 mil moradores precisaram ser evacuados naquela ocasião.
Com uma fotografia bonita e um olhar artístico, O Mês Mais Quente é um convite à reflexão, uma cuidadosa colcha de retalhos costurada com olhares pessoais sobre as crescentes preocupações dos nova-iorquinos, influenciados por diversas mudanças sociais, que vão de aluguéis mais caros a nacionalistas brancos em marcha. Focado nas experiências humanas, o filme poderia ter sido rodado em qualquer outra grande cidade e servirá também para as futuras gerações, para mostrar o que temos feito, ou melhor, deixado de fazer, diante de todas as evidências de que o clima está mudando.
Precisamos de mais provas de que somos nós o motor que acelerou as mudanças sem precedentes registradas pela ciência? Breakpoint: Uma Outra História do Progresso, de Jean-Robert Viallet, vai direto a esse ponto e recupera o trajeto do chamado “progresso” dos últimos 200 anos, desde a Revolução Industrial. Nós, que chegamos a este planeta nos últimos “cinco segundos”, quando se considera toda a sua história evolutiva, já deixamos como legado poluição, pesticidas e lixo nuclear, e despejamos anualmente bilhões de toneladas de gases de efeito estufa na atmosfera.
Tudo em nome de um progresso que, naturalmente, melhorou muito as condições de vida da humanidade. Mas que está custando o nosso futuro neste planeta. O alarme já é soado por pesquisadores há pelo menos 40 anos: desde que passamos a queimar combustíveis fósseis e aumentar a intensidade do nosso consumo, os gases que saem das chaminés das fábricas, das usinas que produzem energia, dos escapamentos dos nossos carros, dos bois que vão parar nos nossos pratos e das florestas que queimamos se acumulam de tal forma na atmosfera que aprisionam o calor e fazem com que a temperatura global aumente. Por isso, fomos capazes de influenciar uma era geológica. Vivemos agora no Antropoceno, a Era do Homem.
Esse modo de viver pelo qual a sociedade moderna optou nos trouxe até aqui, uma crise ambiental com desdobramentos que muitos de nós temos dificuldade de processar, e que o documentário A Era das Consequências, de Jared P. Scott, aborda de forma precisa. Embora já estejamos vivendo nos tempos de mudanças climáticas acentuadas, a ciência tem nos permitido há tempos prever cenários e tomar decisões para evitar que o mundo se torne um lugar insuportável para os humanos. Em muitos locais, a vida já chegou a esse ponto, com impactos drásticos na sociedade, como fome, pobreza e fuga como única opção de sobrevivência.
O documentário vasculha o caso da Síria, mergulhada há anos em uma guerra civil. Acompanhamos, da televisão, a caminhada de milhares de sírios que, em 2015, buscavam refúgio na Europa. Muitos também começaram uma nova vida no Brasil, depois de terem escapado dos horrores da guerra. O que pouco se fala é que, anos antes de o conflito estourar, a população sofreu com uma seca severa, o que gerou instabilidade e agravou a crise. Com apoio de fontes militares dos Estados Unidos, A Era das Consequências mostra todos os possíveis desdobramentos das mudanças climáticas para a segurança nacional. Vulneráveis à pobreza, agravada pela falta de água, por exemplo, e sem dinheiro ou comida, cidadãos de qualquer parte do mundo podem até se juntar a organizações terroristas para sobreviver. Na Síria, o Estado Islâmico, grupo extremista, controlou represas de água como instrumento da guerra para forçar pessoas a se juntarem ao levante.
A esta altura da nossa história, a crise climática só vai desacelerar se fizermos mudanças drásticas no nosso modo de habitar a Terra. Precisamos frear já as nossas emissões de gases estufa. Na verdade, estamos atrasados. Apesar de os países mais poluidores do mundo terem reconhecido esse risco iminente e concordado em reduzir suas emissões na Conferência do Clima de Paris em 2015, com um acordo que ganhou o nome da capital francesa, uma onda de negacionismo e ganância, representada sobretudo pela eleição de Donald Trump, em 2016, nos afastou da rota.
A Nova Era do Petróleo, de Zach Toombs, é uma prova de como os Estados Unidos têm ido na direção contrária àquela que garantiria um futuro confortável e investido num novo boom do petróleo. Dos poços tradicionais ao fracking, técnica de fraturamento hidráulico com uso de substâncias químicas e alta pressão para acessar reservas de gás natural, o mercado vive uma alta e deixa cada vez mais impactos na saúde das pessoas. O filme visita cidades no estado de Texas e mostra o que os olhos humanos não conseguem enxergar: fumaça invisível que sai das torres carregada de metano e outros gases nocivos ao planeta e à população do entorno.
Com plantas de exploração cada vez mais perto das cidades, estima-se que pelo menos 1,4 milhão de americanos vivem em zonas de alto risco perto da produção de petróleo e gás. Dentre os danos potenciais à saúde apontados por cientistas estão câncer e defeitos congênitos para pessoas que vivam a menos de 200 metros dessas áreas. Junto ao repórter investigativo que nos conduz por esse universo no documentário, é possível ainda chegar perto da realidade daqueles que são mais afetados por esta indústria nociva ao clima global, como moradores de Bangladesh. Este país asiático é um dos que menos contribuíram historicamente para a concentração de gases de efeito estufa na atmosfera e um dos mais duramente atingidos pelos impactos das mudanças climáticas.
Os filmes escolhidos para esta edição da Mostra e o nosso atual cenário jogam luz sobre verdades irrefutáveis, que muitos setores da nossa sociedade tentam negar, não querem ver. Somos habitantes de uma mesma casa, que dá mostras de que não estamos agindo com inteligência para mantê-la habitável. A pandemia que agora nos amedronta é apenas uma fração dos terrores que a crise climática, provocada por nós mesmos, nos fará enfrentar. Que já enfrentamos, aqui e ali, ano a ano, com mais intensidade, pagando com vidas, com muito dinheiro, mais recursos, mas que nossos governantes insistem em tratar como casos isolados. Não são. Tudo está interligado. Diferentemente da doença que agora nos afasta, faz de nós uma companhia perigosa ao nosso semelhante e nos obriga a um isolamento social, a crise climática precisa ser combatida no conjunto, com decisões coletivas afiadas, com posturas firmes e diárias na hora de comer, de se vestir, de se transportar, de comprar, de votar.
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*NÁDIA PONTES é jornalista multimídia especializada em ciência e meio ambiente, mestre em Ciência Ambiental pela Universidade de São Paulo com ampla experiência em produção de reportagens para imprensa internacional e nacional. Correspondente no Brasil da Deutsche Welle, escreve principalmente sobre ciência, mudanças climáticas e sustentabilidade. É uma das ganhadoras do prêmio Voices2Paris, dado pela UNDP em 2015, VerCiência, em 2015; Berlin Science Communication Award, em 2017, e grantee do Rainforest Journalism Fund em parceria com Pulitzer Center.