29 de maio de 2023

A Teimosia das Sementes Diante da Morte

Texto sobre filmes da 12ª Mostra Ecofalante de Cinema

Por Lucas Coelho Pereira*

A violência colonial possui um roteiro. Primeiro ato:  apropriação das terras pelos colonizadores europeus. Segundo ato: destruição da vegetação local, o desbravamento. Terceiro ato: escravização e massacre contra os povos nativos. Malcom Ferdinand (2022) caracteriza essas ações como fundamentos do habitar colonial. Apesar da enumeração dramatúrgica, não se trata de uma sequência, mas de movimentos conjuntos. Disso tiramos uma primeira lição: articular os impactos no meio ambiente com o dilaceramento e desterro de corpos racializados é desenvolver um pensamento ecológico sensível às causas ambientais e, ao mesmo tempo, atento às lutas antirracistas. Os movimentos negros, indígenas e quilombolas nos educam nesse sentido. Eles ensinam o quanto reagir à opressão e reivindicar seus territórios, por exemplo, é um caminho de refazimento de si, do meio e dos outros com quem se compartilha a vida (sejam humanos ou não humanos). 

“Nação Lakota Contra os EUA”, de Jesse Short Bull e Laura Tomaselli

“É possível mudar o mundo e remendar suas feridas ao mesmo tempo?”, pergunta Aaaju Peter, advogada inuíte da Groelândia. Em Duas Vezes Colonizada (Groenlândia, Dinamarca, Canadá, 2022), documentário dirigido por Lin Alluna, acompanhamos a luta de uma mulher indígena frente à União Europeia na defesa de condições dignas de existência e participação política para os povos indígenas do Ártico. Ao exercer seu ativismo, Aaaju enfrenta uma série de dilemas, como os conflitos internos causados por um sistema educacional que negava sua cultura. A prática também existe nos EUA, onde as violações do sistema educacional contra povos indígenas eram expressas na máxima “mate o índio, salve o homem”, como vemos em Nação Lakota Contra os Estados Unidos (EUA, 2022), de Jesse Bull e Laura Tomaselli. No caso de Aaaju, nas escolas canadenses pelas quais passou após deixar seu povo, o lema era: “tire o índio da criança”. 

A trajetória dessa liderança fala da violência colonial ligada à dimensão do ser. As investidas estatais contra seu território, a ponto de proibir atividades tradicionais de vital importância para os seus, como a caça de focas, anda junto com o desmantelamento das subjetividades indígenas. São feridas abertas pela violência colonial que continuam a reverberar. A possibilidade de cura, no contexto de um mundo despedaçado, é a criação de alianças com outros povos indígenas. 

“Uma História de Ossos”, de Joseph Curran e Dominic Aubrey de Vere

Aliança também é palavra forte para Annina Van Neel, que, em Uma História de Ossos (Reino Unido, 2022), dirigido por Joseph Curran e Dominic Aubrey de Vere, articula parcerias internacionais na tentativa de criar um memorial para centenas de africanos livres enterrados em valas comuns na ilha de Santa Helena, lugar estratégico para colonizadores no tráfico atlântico de pessoas escravizadas. “Não faz parte da nossa tradição não lembrar dos nossos antepassados”, pontua Annina, mulher africana que chega à Santa Helena para inspecionar a construção de um aeroporto na Ilha, momento em que descobre os ossos. Corpos negros são, por um lado, desejáveis como mão de obra em uma engenharia colonial altamente lucrativa; por outro, são também descartáveis. Nem as vidas, nem as memórias negras importam. Desafiar esse veredito é travar uma batalha solitária e trazer à superfície lembranças de trauma e sofrimento. As ruínas e destroços também fazem morada dentro.

Como se reerguer depois da destruição? Como criar mundos possíveis em meio ao caos? Filhos do Katrina (EUA, 2021), documentário dirigido por Edward Buckles Jr., também aciona os caminhos tortuosos da memória. Não aquela sistematicamente negada, como no caso de Annina na ilha de Santa Helena, mas aquela soterrada por escombros de casas destruídas, pela negligência do Estado e da sociedade norte-americana em prestar auxílio às famílias atingidas pelo furacão Katrina. São as crianças da Nova Orleans de anos atrás, hoje jovens adultos, que evocam lembranças soterradas. Casos como o do Katrina, muito frequentemente, acionam um ambientalismo global e totalizante que, ao focalizar as consequências do aquecimento global e das mudanças climáticas, por exemplo, desconsideram os impactos da colonialidade e do racismo na forma como grupos racializados vivenciam esses fenômenos. Foram famílias negras que vivenciaram desterramentos compulsórios, fome, perseguição policial e mortes perante um mundo em desmantelo. 

“Filhos do Katrina”, de Edward Buckles Jr.

Furacões, tornados, poluição química, derretimento das calotas polares impactam o modo de vida de diferentes comunidades no planeta. Contudo, são geralmente os corpos de pessoas pobres, mulheres, crianças, negros, indígenas e outros racialmente marcados que ocupam categorias abstratas como “vítimas de catástrofes ambientais” ou “refugiados climáticos”. Ações que atacam a polarização humano/meio ambiente (ou a “fratura ambiental”, nas palavras de Malcom Ferdinand) sem reconhecer a “fratura colonial” (Ferdinand, 2022: 27), isto é, as assimetrias entre colonizados e colonizadores, brancos e negros, homens e mulheres, entre outras, estão – além de impotentes no enfrentamento ao racismo e outras opressões – fadadas a uma cegueira com relação à forma como coletividades não hegemônicas compõem seus mundos e se relacionam com o meio. 

É seguindo as tramas dessa incapacidade de compreensão do outro que Forrageadores (Palestina, 2022), documentário dirigido por Jumana Manna, lança-nos no meio de um conflito entre políticas de conservação ambiental e práticas comunitárias de relação com a terra e as plantas. Guardas israelenses perseguem, detêm e interrogam mulheres e homens que se aventuram pelos campos da Cisjordânia na procura de folhagens tradicionais da culinária local. A expertise científica dos órgãos ambientais confronta os conhecimentos ecológicos tradicionais, negando-os. 

“Forrageadores”, de Jumana Manna

As perseguições às comunidades desconsideram ainda o quanto sair à procura de Akkoub (gundelia) e Za’atar (tomilho selvagem) é uma das principais formas de se relacionar com a terra, conhecer seus caminhos e vivenciar seus ritmos. Discursos de autoridade sobre o meio ambiente, nesse contexto, andam junto com a vigilância dos corpos daqueles mais conectados à terra. Em meio a tantas violências e conflitos, porém, são sempre as potências criativas dos encontros que garantem respiros de vida.

“Tem um ditado assim: se você for para um lugar isolado, mesmo na Savana, são os pássaros e as formigas que te darão as boas-vindas e você ficará em dívida com eles por tudo o que fizer naquele lugar”, fala um agricultor africano em Xaraasi Xanne – Vozes Cruzadas (França, Alemanha, Mali, 2022).  O filme – dirigido por Bouba Touré e Raphaël Grisey – acompanha a resistência de migrantes africanos na França que, diante de condições de vida e trabalho degradantes, decidem voltar para sua região de origem, onde começam a desenvolver atividades agrícolas e fundam uma cooperativa na década de 1970.

“Xaraasi Xanne – Vozes Cruzadas”, de Bouba Touré e Raphaël Grisey

As relações interespecíficas dão o tom para um conjunto de práticas de convivência entre os agricultores e a Savana. Longe da ideia de dominação da natureza, ou mesmo de combate a condições ambientais áridas e extremas, o que os homens africanos de Xaraasi Xanne nos evidenciam é como conviver com outros mais que humanos. “Desde cedo nossos mais velhos colaboraram com os cupins para construir canais de irrigação”. A convivencialidade é a negação das plantations, que, ao atualizarem o habitar colonial, deixaram um rastro de destruição e seca por todo o continente. 

É o emaranhamento entre diferentes modos de existência – verdadeiros ajuntamentos, assemblages, na perspectiva de Anna Tsing (2019) – que torna a vida possível.  A abundância alimentar obtida pela cooperativa evoca a felicidade de quem sabe que “sementes são diamantes” e, enquanto houver terra, pássaros, cupins e formigas, haverá a garantia do que é necessário. As potencialidades criativas da relação com o meio e outros seres (humanos ou não) – mesmo diante da perenidade da violência colonial – aparecem também em Exu e o Universo (Brasil, 2022), dirigido por Thiago Zanato. 

Baba King, figura central no documentário, nos ensina o quanto o culto aos orixás é um culto à natureza, uma oferenda às águas, às matas, ao chão e todas as suas potencialidades geradoras da vida. Sua voz paciente e segura, feito flecha que atravessa o tempo, conflui com o pensamento de Beatriz Nascimento em Ôrí, filme de Raquel Gerber (1989). O ebó é um presente à terra, afirma Beatriz, que continua: “todos os elementos vivos estão na terra. E vão participar daquele banquete, que é o ebó. E esse é o princípio do axé, da força. (…) Porque Gagarin viu a Terra azul, mas existe a Terra preta, existe a Terra que é terra, que é a coisa que a gente tem mais medo de perder”. Longe de ser apenas o lugar onde se está, a terra é o lugar onde se é. Perdê-la é desencontrar-se de si, dos que vieram antes e dos que ainda estão por vir.  Nesse ponto, as experiências afro-diaspóricas e indígenas pisam em um terreno comum. 

“Exu e o Universo”, de Thiago Zanato

Retomo as vozes indígenas de Nação Lakota contra os Estados Unidos (EUA, 2022). Com uma riqueza de documentos históricos e relatos contundentes, o filme expõe o racismo colonial dos EUA em artimanhas jurídicas espúrias cujo principal objetivo era o roubo das terras Lakota. Acordos entre as lideranças indígenas e o Estado norte-americano eram reiteradamente quebrados e o território dos povos originários, seus lugares sagrados – como o Monte Rushmore – e suas fontes de água e alimento eram profanados e destruídos. Na linguagem do Estado, tudo isso pode ser revertido em mercadoria e, em última instância, dinheiro capaz de indenizar os povos originários pelos danos sofridos. Os Lakota respondem: não!! Eles viram seu chão ancestral, lugar coletivo de plantas, bichos e gente, ser esquadrinhado em pequenos cubículos de terra e designado como propriedade privada. É o modo de vida dos povos originários na mira do racismo colonial.

Não – repetem e lutam os indígenas –, nossa terra não é objeto inanimado, ela não tem dono, ela é uma entidade viva e “nós, Lakota, temos um direito inerente à vida”. Se nas religiosidades de matriz africana o ebó é um oferecimento à terra, entre os Lakota os cantos e adorações se direcionam ao sol e a religião é a própria mãe terra. Não se vende o útero criador, essa força motriz criadora de mundos. E, assim, bem ao estilo Conceição Evaristo (2015), os indígenas lutam por seus territórios como se dissessem: “combinaram de nos matar, mas combinamos de não morrer”. Lutar contra a morte – seus desterros e adoecimentos – é também uma forma radical de celebrar a vida.

Nas cosmologias africanas, Exu aparece como aquele que provê a energia necessária para que a vida seja celebrada, lembra-nos Baba King. Exu, orixá sobre o qual a colonialidade conferiu a alcunha de Demônio. São inúmeras as tentativas da colonização de exterminar e despotencializar os modos de vida africanos e indígenas, como temos observado até aqui. Mas “você só acaba com o que não tem semente”, responde o pensamento afrodiaspórico a partir de Exu. 

“Duas Vezes Colonizada”, de Lin Alluna

Esta seleção de filmes da 12ª edição da Mostra Ecofalante de Cinema se debruça sobre as consequências nefastas do habitar colonial, marcado pela degradação ambiental e pela violação de corpos racializados. A dor de não poder enterrar seus ancestrais, a angústia de ver a casa alagando enquanto as crianças choram, o sofrimento de se saber um corpo facilmente morto e descartável. Retomo as ideias de Malcom Ferdinand. Reagir ao habitar colonial começa com o desenvolvimento de ações capazes de costurar as lutas dos povos colonizados e as questões ambientais. Junto com as dores e violências, os filmes apontam para a potencialidade vital da luta de povos negros, indígenas e outros coletivos marginalizados. 

É fato que o empreendimento colonial transforma terras, territórios, meio ambiente e corpos subalternizados em mercadorias. Escapar dessa máquina moedora requer não só criatividade, mas, sobretudo, retomadas – para usarmos um termo do movimento indígena brasileiro: retomar um pensamento ecológico desobediente capaz de juntar o que a colonização estilhaçou; retomar o entendimento de que a vida se faz a partir de alianças colaborativas entre as mais variadas espécies. Não se trata de uma competição sob a égide do “que vença o mais forte”. É preciso retomar a habilidade de se perceber rio, pedra, vento, cupim, ensinamento precioso dos Lakota e dos agricultores africanos da savana. Retomar, insisto, palavra-força capaz de criar outros mundos possíveis enquanto se resiste ao caos e à destruição. 

_

REFERÊNCIAS 

EVARISTO, Conceição. A gente combinamos de não morrer. In.: Olhos d’Água. Rio de Janeiro: Pallas, 2015.

FERDINAND, Malcom. Uma ecologia decolonial: pensar a partir do mundo caribenho. São Paulo: Ubu Editora, 2022. 

GERBER, Raquel.1989. Ôri. Cor, 131’. 

TSING, Anna. 2019. Viver nas Ruínas: paisagens multiespécies no antropoceno. Brasília: IEB Mil Folhas.

_

*LUCAS COELHO PEREIRA é mestre e doutor em Antropologia Social pela Universidade de Brasília. Realiza pesquisas no campo das relações entre humanos, plantas e animais; antropologia das práticas; antropologia ecológica e antropologia da pesca. É professor na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), fotógrafo e realizador audiovisual.