19 de agosto de 2021

Da Crise ao Fantástico: Arruinamento, Interdição e Memória em Seis Cidades pelo Mundo – Por Gabriela Leandro Pereira

Texto sobre os filmes da temática Cidades do Panorama Internacional Contemporâneo

Por Gabriela Leandro Pereira*

Uma vez, a escritora carioca Ana Paula Lisboa, que reside em Angola, disse, em conversa, que algumas cidades, como Luanda ou Salvador, já estão prontas para se transformarem em histórias; que tanto suas paisagens como suas estruturas, edifícios e habitantes já estão aí, existindo, aguardando o olho atento de alguém para serem “narrados”. Os seis filmes que compõem o eixo Cidades na 10ª Mostra Ecofalante nos presenteiam com cidades ricas em histórias “prontas”, nas quais arruinamentos – de edifícios e de vidas –, gentrificação, expropriação de terras, periferização e precarização de mão de obra na construção civil são temas que emergem, expondo crises sociais, ambientais, econômicas e raciais.      

O único filme de ficção, Ar Condicionado, dirigido por Fradique, beira o fantástico, e nem por isso deixa de nos trazer uma narrativa bem real. O longa angolano se passa no centro de Luanda, cidade fortemente marcada pela estratificação social, em um edifício de arquitetura modernista, habitado pelas heranças e ruínas da Guerra da Independência, manifesta nas relações hierárquicas que posicionam de um lado patrões – donos do poder e de cargos de relevância política – e, de outro, guerrilheiros e suas crias, empregados dos primeiros. Ao redor do prédio, rapazes que vagam a esmo pelas redondezas disputam o ganho de algum dinheiro, se oferecendo para transportar pelas escadas quaisquer mercadorias que necessitem subir, independente de seu peso, diante da inexistência de um elevador que funcione. O próprio edifício e sua comunidade são metáforas potentes da obsolescência, adaptação e gambiarra que trabalham juntas para manter de pé uma estrutura social precária, violenta, mas incapaz de deter completamente os desmoronamentos e também os sonhos de uma nação. 

“Ar Condicionado”, de Fradique

Aparelhos de ar condicionado inexplicavelmente se desgarram das janelas dos apartamentos dos mais abastados, causando a morte de desavisados nas calçadas da capital angolana. Esse misterioso fenômeno atrapalha momentaneamente a rotina de Matacedo e Zezinha, respectivamente segurança e empregada doméstica em um prédio no centro da cidade. Quando Zezinha incumbe Matacedo do conserto do ar condicionado do patrão, começa sua perambulação: a caminho da loja de conserto, entre muitas idas e vindas, Matacedo se move entre os vestígios da utopia nostálgica do velho militante e o desejo de sonhar futuros maiores, que, sem a memória da luta por liberdade, parecem fadados ao imobilismo. Essas memórias aparecem no filme de forma fantasmagórica, ora perambulando junto aos personagens por escadas e corredores do prédio como sombras, ora aprisionadas em televisores antigos, vídeo cassetes, fitas VHS e fragmentos de peças extraídas de objetos em desuso. A trilha, composta por Aline Frazão, emociona e se soma, como uma camada importante, à luz azul resplandecente que emana de uma oficina fantástica lotada de equipamentos antigos e sucatas, deslocando Matacedo para outro universo. Universo onírico ou premonitório? A saber. A essa altura, acompanhamos como espectadores sua viagem, na torcida para que ela seja uma pista de um mundo por vir: “Quando eu fecho os olhos imagino um país novo”, anuncia a música que embala Matacedo. A ficção angolana deixa em suspenso muitas perguntas sobre os acontecimentos do país e os caminhos que estão sendo desenhados rumo ao futuro. A cidade, apreendida na tela, assume sem dúvida um lugar de cúmplice, testemunha material de uma história repleta de conflitos em um passado não tão distante.

No filme Formas Concretas de Resistência, do diretor Nick Jordan, a arquitetura também assume esse lugar de testemunha, mas agora em outro contexto. A ruína do Complexo da Feira Internacional de Trípoli, projetado pelo arquiteto brasileiro Oscar Niemeyer e construído em 1975, é o tema principal. Concebido a partir dos anseios utópicos de promover espaços democráticos através de uma arquitetura generosa, com um programa extenso voltado a atividades culturais, recreativas e sociais, além de significativos espaços ao ar livre, o Complexo, no entanto, nunca foi utilizado para esses fins. Ocupado pelo exército Sírio entre 1976 e 1998, suas ruínas hoje abrigam as memórias da guerra. São visíveis as marcas de balas cravadas em uma de suas paredes, anunciando o uso como parede de execução; há destroços de equipamentos bélicos, tanques e veículos militares, que se beneficiaram dos acessos para automóveis previstos no projeto original, adentrando com facilidade as estruturas do parque; vergalhões à mostra revelam fissuras nas estruturas da arquitetura brutalista, expondo seu abandono. 

“Formas Concretas de Resistência”, de Nick Jordan

Em contraste, é possível perceber, inscritos nas camadas de concreto, os veios de madeira das caprichosas formas utilizadas na construção à época, trabalho primoroso realizado por artesãos carpinteiros que ainda hoje mantêm vivo esse ofício, cada dia com mais dificuldade. Trípoli foi considerada a capital libanesa do móvel, mas, diante da produção chinesa em larga escala e baixos preços – assim como é baixa sua qualidade –, a carpintaria encontra dificuldades. 

Apesar de estar há décadas desocupado, o imenso Complexo permanece em ruínas, interditado ao público e sem se integrar à dinâmica de Trípoli, que carece de espaços públicos. Em seu entorno, nessa área que surgiu como expansão da cidade, concentra-se a população com maior poder aquisitivo, enquanto no centro, área mais antiga, concentram-se os mais pobres. A relação entre arruinamento, memória da guerra (ou do futuro que não veio) e especulação imobiliária apresenta-se como uma importante triangulação a partir da qual o destino do complexo depende. Se a recuperação integral dos edifícios nunca inaugurados é inviável, a recuperação de seu caráter público, democrático e social poderia ainda ser pleiteada na Trípoli contemporânea?      

O arruinamento aparece em outro filme selecionado pela Mostra, mas de um lugar bem distinto. Em A Nossa Terra, O Nosso Altar, do diretor português André Guiomar, acompanhamos o processo de desocupação e demolição de torres habitacionais construídas pelo Estado no bairro social do Aleixo, próximo ao Rio Douro, na cidade do Porto. Ali, testemunhamos um processo de reurbanização que não contempla os moradores das torres – estes serão distribuídos em outras habitações sociais dispersas pela cidade. No lugar, serão construídas habitações de luxo e edifícios comerciais. O filme vai revelando o cotidiano dos últimos moradores da área, marcado pela melancolia com o desmonte promovido pelo Estado. Muitos dos moradores nasceram no bairro e têm no local, nas relações familiares e de amizade com a vizinhança, sua principal rede de sociabilidade, solidariedade e afeto. 

“A Nossa Terra, O Nosso Altar”, de André Guiomar

É com tristeza que vivenciam os últimos dias antes da demolição, marcados também por despedidas dolorosas, gestos de apoio mútuo que a ação do Estado está prestes a inviabilizar e nos quais a comunidade de moradores do Aleixo mostra-se ainda mais unida e necessária. A quem interessa essa demolição interessa que recoloca no mercado terras e empreendimentos tão bem localizados? São questões que emergem do filme, enquanto acompanhamos o desmonte das vidas de moradoras e moradores do Aleixo. 

Ao Leste de Finfinnee, do diretor alemão Daniel Kötter, poderia ser um contraponto ao filme português, por não tratar do desmonte, mas sim da construção de novos empreendimentos habitacionais na periferia de Addis Abeba, na Etiópia. No entanto, ao documentar os trabalhadores da construção civil que estão empenhados em erguer os novos edifícios e infraestruturas nessa área distante do centro urbano, o filme revela as precárias condições de trabalho, além dos relatos de violências cometidas contra pequenos agricultores pobres, coibidos a vender suas terras sob ameaças. Transitando pelo espaço rural e o urbano em expansão, os diálogos que emergem durante as gravações nos revelam muito sobre privação do direito à cidade. Os conjuntos habitacionais da periferia são opostos às unidades habitacionais de luxo apresentadas por um empreendedor imobiliário, comprador de terras na cidade que apresenta argumentos duvidosos em defesa de seu modelo de negócio. 

“Ao Leste de Finfinnee”, de Daniel Kötter

Um Lugar Como Nenhum Outro, filme canadense da diretora Lulu Wei, é também um filme sobre um empreendimento imobiliário em vias de ser implementado na cidade de Toronto, que acarretará o desalojamento dos moradores e comerciantes de um quarteirão. Muitos deles construíram ao longo de décadas vínculos estreitos com o lugar e com a vizinhança. Caracterizado pela presença de artistas, da comunidade afrodescendente, de imigrantes, estudantes universitários ou jovens recém-formados que lá encontravam aluguéis que cabiam em seus orçamentos, o quarteirão possuía uma dinâmica cultural muito particular, boêmia e acessível. O novo empreendimento, por outro lado, vê no local uma oportunidade valiosa de lucro e sucesso com a construção de torres de apartamentos que serão alugados a preços bem mais elevados, visando a atingir um público diverso dos atuais moradores do quarteirão. Ainda que o poder público demonstre vontade política de incidir junto ao empreendimento, com o intuito de assegurar alguma contrapartida social, as conquistas são insuficientes diante do esgarçamento provocado pela demolição. 

Registrando tanto a sua própria mudança do quarteirão como a saída dos demais moradores e comerciantes, a diretora Lulu Wei compartilha com o espectador o processo de gentrificação visto de dentro, através de um olhar pessoal, íntimo e sensível. Especialistas também foram mobilizados para explicitar as consequências perversas que o empreendimento gerará, levando a população mais pobre a morar cada vez mais longe. Alternando entre imagens de arquivo e registros feitos durante os anos em que a diretora acompanhou o processo, o filme é também uma bonita homenagem aos imigrantes que encontraram em Toronto um lugar para recomeçar suas vidas, ao mesmo tempo em que revela a ausência de mecanismos e instrumentos de controle social que contestem ou interditem arrasamentos como esse. Restará à sociedade civil produzir registros dos desaparecimentos, como modo de resguardar as memórias da cidade?    

“Um Lugar Como Nenhum Outro”, de Lulu Wei

E quando o desaparecimento é de vidas? Vidas Negras? Injustiça Climática, dirigido por Judith Helfand, investiga a onda de calor que atingiu Chicago, nos EUA, em 1995, quando ao menos 739 pessoas morreram, em sua maioria idosos. Essas mortes se deram majoritariamente em bairros habitados por cidadãos afro-americanos, revelando as consequências de políticas urbanas e habitacionais de negligência e desinvestimento públicos nas comunidades negras, o que as torna mais vulneráveis diante da crise ambiental. A sobreposição do mapa dos óbitos com o mapa da concentração da população negra se mostrou quase coincidente na crise de 1995. Em contraposição, a diretora questiona o orçamento público destinado para treinamentos e simulações de desastres ambientais. Se essas mesmas comunidades recebessem investimentos ou fossem cuidadas com o mesmo empenho mobilizado para simular salvamento de vítimas, não teríamos 739 pessoas mortas por causa do calor. Esse número seria sem dúvida menor. Durante o filme, diversas pessoas são ouvidas: representantes da comunidade afro-americana, militares, pesquisadores, funcionários públicos e moradores. 

Englewood, bairro que teve um elevado número de mortes, é visitado pela diretora, que constata que, mais de 20 anos depois da onda de calor, o bairro continua desassistido, com casas arruinadas, outras tantas demolidas e muitos terrenos de propriedade do poder público vazios, o que nos leva a pensar que, se uma nova crise ambiental acontecer, Englewood certamente estará no topo da lista dos bairros mais afetados. Hoje, ao procurar dados sobre a COVID-19, nossa suspeita se confirma: Englewood foi um dos bairros mais atingidos de Chicago durante a pandemia. A recorrente negligência por parte do Estado em assumir o cuidado e direcionar políticas urbanas eficazes aos territórios de minorias étnicas configura o que podemos chamar de racismo ambiental. 

Injustiça Climática, de Judith Helfand

No conjunto de filmes do eixo Cidades, é instigante (e também angustiante) perceber a convergência de temáticas. A imposição do abandono do lar devido à demolição de edifícios aproxima as dinâmicas urbanas do Porto e de Toronto, orquestradas por interesses imobiliários e conivência (ou impotência) do Estado. São seus moradores, enlaçados pelo fato de não possuírem meios para serem eles proprietários, que nos revelam, com suas trajetórias e possibilidades de reinvenção de vida, as distinções e especificidades desses impactos. Os seis filmes aqui citados revelam o quanto o acesso pleno à cidade e as condições de pleitear o direito a ela está, em maior ou menor grau, ainda em construção. De Chicago à periferia de Addis Abeba, os mecanismos de intervenção e precarização da vida mediante o controle e a gestão da cidade pelo capital imobiliário e pelo Estado mostram-se eficientes. Mas, em detrimento das interdições, a cidade é também o lugar onde a vida se atualiza todo dia e a esperança se renova em gestos que buscam futuros menos desiguais e injustos – seja através do fogo que contesta monumentos em homenagem a genocidas, plantados violentamente nos espaços públicos da cidade, seja através da chuva de ares condicionados despencando de prédios tal qual fruto maduro do pé, para despertar os ideais libertários ainda vivos e conclamar velhos e novos a mudar o mundo.

*GABRIELA LEANDRO PEREIRA é professora e pesquisadora na Faculdade de Arquitetura da UFBA (Salvador-BA). Tem formação em Arquitetura e Urbanismo pela UFES (Vitória-ES) e mestrado e doutorado pelo PPGPAU/FAUFBA (Salvador-BA). É integrante do Grupo de Pesquisa Lugar Comum (PPGAU/FAUFBA) e coordenadora do Grupo de Estudos Corpo, Discurso e Território. Desenvolve investigações sobre narrativas, histórias, memórias e epistemologias produzidas sobre a cidade, urbanismo, arquitetura e seus apagamentos, interseccionados pelo debate das racialidades e de gênero. Em 2017 foi vencedora do Prêmio de Teses da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional e publicou, em 2019, o livro Corpo, Discurso e Território: Cidade em Disputa nas Dobras da Narrativa de Carolina Maria de Jesus. É cofundadora e integrante da Coletiva Terra Preta e Conselheira da Casa Sueli Carneiro.