Texto sobre os filmes da temática Biodiversidade do Panorama Internacional Contemporâneo
Por Paulina Chamorro*
Quando se pergunta qual o sentido da palavra “biodiversidade”, não é difícil se surpreender com a pluralidade de respostas e entendimentos que este conceito encerra. No entanto, talvez a melhor resposta para essa questão seja que a biodiversidade é a teia da vida na fina película que envolve o nosso planeta – e é a partir dessa ideia que tentaremos pensar a série de títulos apresentados na 10ª Mostra Ecofalante de Cinema sob o eixo temático da Biodiversidade.
Esses filmes nos colocam frente a alguns fatos irrefutáveis que deveriam nos fazer refletir: somos, nós mesmos, integrantes desta teia; aquilo que consumimos tem impacto sobre o meio ambiente; a despeito de todos os males que isso já trouxe, somos uma espécie que tenta o tempo todo se sobrepor à natureza: impusemos inclusive nosso próprio tempo.
Testemunhamos os últimos espaços onde a natureza ainda segue o seu curso. São sopros de beleza de um planeta selvagem e próspero, onde a interdependência é apresentada, revelando as conexões de todos os seres vivos, mostrando que cada elemento tem seu espaço e encaixe na teia. Do mínimo ao grande. Do micro-organismo ao grande urso marrom.
A velocidade imposta pela espécie humana à fina camada de vida, onde estão animais, solo, plantas, florestas, águas e alimento, está gerando transformações tão violentas que a era já tem até nome: Antropoceno, um novo período geológico em que as ações humanas estão alterando o Planeta em seus ciclos, clima e reações. Este ano se inicia a Década da Restauração de Ecossistemas, movimento global liderado pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente e também pela FAO – Organização da ONU para Alimentação e Agricultura. Este chamado, urgente e talvez o último, é para dez anos de ações imediatas de regeneração dos solos, conexão e preservação das mais diferentes formas de vida.
Superar a perda da biodiversidade, a poluição e a crise climática, colocadas como os grandes desafios para a humanidade, será nosso vale-permanência enquanto espécie. Os títulos aqui exibidos apresentam caminhos necessários para a regeneração do solo, para a manutenção de culturas tradicionais. São soluções baseadas na natureza, que sempre estiveram conosco, ainda que passemos por tempos de cegueira. Os filmes desta edição nos levam por reflexões de causa e efeito de uma economia predatória, em que os bens naturais são tratados como recursos de produção, mas também nos mostram que existem lugares onde a regeneração está em curso. Isso acontece em pequenas vilas ou grandes campos, indicando que podemos resgatar nossas relações mais íntimas e selvagens com uma natureza prístina. A hora é agora.
A Exaustão das Formas de Vida
Era uma Vez um Lago, curta alemão de 2019, mostra a morte do lago iraniano Urmia, que “veste uma mortalha e espera a sua morte”. Intercalando registros fotográficos do passado, quando o Urmia era o maior lago do Oriente Médio, com imagens de um presente cheio de sal e secura, o que o filme mostra é uma triste realidade: hoje, o lago possui apenas 5% do seu tamanho original. Sem demorar-se nas causas dessa tragédia ambiental, o curta traz pensamentos e trechos de poemas para acompanhar cenas de desolados visitantes que chegam com suas famílias às margens secas do lago.
O uso da natureza de forma intensiva também está presente em O Tempo das Florestas, documentário francês de 2018 que retrata o processo de transformação de florestas em monocultura às custas da perda do conhecimento tradicional e da biodiversidade. A tese principal do filme é apresentada logo de início: afinal, o que faz uma floresta? Do campo às florestas manejadas para a produção de madeira, passando por exemplos de como é possível garantir a diversidade das espécies e do solo, o documentário acompanha personagens mergulhando na silvicultura e em formas de produção conectadas com os ciclos da natureza. Por enquanto as soluções, apesar de numerosas, não são suficientes para reverter totalmente o processo de destruição. Esta, aliás, é uma realidade que retorna em outros títulos desta seção, ao mostrar o impacto da ação humana, que já degradou quase 25% de toda a superfície do Planeta.
Estamos exaurindo a nossa casa comum, a terra e o oceano. Moralmente, como lidar com o fato de que, se continuarmos com as mesmas atitudes, perderemos, nos próximos 20 anos, uma espécie de baleia ? É o que se pergunta uma pesquisadora em Baleias Enredadas. O documentário de 2020, que já ganhou diversos prêmios, denuncia o risco de extinção da baleia-franca do Atlântico Norte – apenas cerca de 400 espécimes deste animal ainda sobrevivem. Atualmente, o grande perigo são as redes, necessárias à pesca de lagosta. O documentário traz dados: hoje, 85% das baleias têm cicatrizes causadas por esses instrumentos. Antes da utilização das redes na pesca, estima-se que existiam vinte mil baleias-francas no Atlântico Norte. O documentário acompanha ainda o embate de pesquisadores e conservacionistas por regulamentações mais rígidas na indústria da pesca de lagosta nos Estados Unidos e Canadá. A questão em pauta não é de fácil solução, pois há, de um lado, a sobrevivência de um setor produtivo e, de outro, o destino de uma espécie.
Coexistindo e Regenerando
Dois documentários nos apontam caminhos para a regeneração da biodiversidade ou soluções para tal transição. Em Solo Fértil, produção de 2020 narrada pelo ator e ativista Woody Harrelson, são apresentados exemplos de pessoas em diversos países que transformaram a forma de plantar. A conservação e a regeneração do solo, tal como apontado no filme, são a chave para a crise climática, a alimentação global e o retorno a um equilíbrio do Planeta.
A produção apresenta o frágil equilíbrio das interações que compõem o solo, o papel das plantas e da agricultura na retenção e liberação de carbono e o impacto das alterações dos ciclos curtos, como os da chuva e das águas interiores. O documentário é didático ao apontar que trabalhar na cobertura do solo, devolvendo a ele o carbono, os microrganismos e a água, como propõe a agricultura regenerativa, é uma questão econômica. É a economia da regeneração.
Quando se fala em recuperação do solo, fala-se também de agricultores que variam suas culturas e, desta forma, não precisam depender de subsídios do governo para a compra de defensivos e de sementes mais resistentes. Ao mesmo tempo, também se devolve a diversidade, a temperatura mais amena da terra e a capacidade de produção de chuvas, alterando positivamente o microclima.
A metamorfose da vida das borboletas, um dos ciclos mais impactantes da natureza, trouxe uma alternativa econômica e de preservação da floresta no Quênia. É o que mostra o curta As Borboletas de Arabuko, de 2020. O terceiro estágio de uma borboleta, depois de sair do ovo e antes de virar lagarta, é ser uma pupa, ou crisálida. A comercialização delas transformou um pequeno inseto em uma das principais alternativas econômicas para evitar o desmatamento, a caça e a perda de biodiversidade. Através da história de um antigo caçador, o filme apresenta como as borboletas têm contribuído para a manter a floresta remanescente mais importante da África Oriental.
O Estado Pleno
Os dois últimos documentários trazem a celebração do Planeta no seu estado prístino e o entendimento de que os humanos são apenas mais uma entre todas as espécies que compõem a biodiversidade da Terra. Em O Salmão Vermelho, filme russo de 2020, através de relatos de um guarda florestal, conhecemos o Santuário do Sul de Kamchatka, no extremo oriente da Rússia, um lugar de extensas áreas de florestas, montanhas e água, lar dos ursos marrons e do salmão vermelho.
Filmado ao longo de muitos anos, o documentário traz cenas e momentos primorosos, como a desova dos salmões e seu crescimento, a caça dos ursos e o trabalho de conscientização da comunidade local para a manutenção desse equilíbrio, o que contribuiu fortemente para a diminuição das caças furtivas, deixando assim de impactar no equilíbrio do ecossistema “Kamtchaka carrega o sabor da vida. Aqui precisamos valorizar cada ser”, diz o personagem central do documentário, um apaixonado defensor de Kamtchaka e do estado natural e selvagem do Santuário, onde os animais não temem os humanos. A partir de sua reprodução, o salmão-vermelho demora de um a três anos para partir rumo ao oceano. Por isso, conservar a área de crescimento é vital. O salmão também retém na região os ursos, que, por sua vez, sustentam uma série de outras espécies da floresta, mantendo intacto o ciclo da vida.
Um Ambiente e um Lar para Partilhar
“Houve um tempo, milhares de anos atrás, quando a relação entre homens e animais não era baseada em diferenças, mas na identificação. O ser humano não se distinguia dos animais.” A indagação sobre essa relação milenar dos seres humanos com os outros animais é a proposta de Res Creata, documentário-ensaio italiano de 2019. Poético e filosófico, o filme traz personagens solitários e reflexivos – pesquisadores dos cantos das aves, pensadores, filósofos – em sua vida no campo.
O que guarda um canto de ave? O que podemos aprender da relação simbiótica dos animais com a natureza? O que perdemos rumo a uma sociedade mais “desenvolvida”? Compreender os animais – percebê-los como seres inteligentes e sensitivos – e entender, através das histórias de personagens, da filosofia e da contemplação, como fomos nos desgarrando do mundo animal e natural é a proposta deste longa. Como os animais podem nos ajudar a estar mais em sintonia com nosso planeta? Em um ensaio de imagens e paisagens, este filme de extrema sensibilidade nos mostra que algo nos aproxima e nos entrelaça no reino animal, do qual fazemos parte. O filme, assim como o conjunto de títulos reunidos sob o tema de Biodiversidade desta 10ª Mostra Ecofalante, nos propõe olhar para a história destas relações e para o sentido da vida, em um caminho de retorno, até sermos humildemente apenas mais uma espécie, a humana, “sem acreditar que ocupamos um lugar privilegiado na mudança”.
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*PAULINA CHAMORRO tem mais de duas décadas na cobertura de temas socioambientais. Desde 2016, produz o podcast Vozes do Planeta (um dos pioneiros no Brasil sobre o tema). Em 2016 recebeu a Medalha João Pedro Cardoso, condecoração do Governo do Estado de São Paulo, a única distinção ambiental do país, pela atuação na comunicação sobre cultura e meio ambiente. É uma das idealizadoras da Liga das Mulheres pelo Oceano e colaboradora da National Geographic Brasil desde 2017.