Texto sobre os filmes da temática Ativismo do Panorama Internacional Contemporâneo
Por Gabriela Moncau*
Um hospital, no surpreendente intervalo de 15 minutos, é ocupado por movimentos organizados da comunidade. Só saem de lá, avisam, com suas demandas por saúde acolhidas. No mesmo país, mas décadas depois, o ato é na frente da casa de empresários cujos lucros vêm de testes e torturas com animais. No meio do deserto, uma comunidade se junta em um salão para assistir ao julgamento de sua ação judicial contra uma gigante mineradora transnacional. Do outro lado do oceano, a policial sorri ao dar a ordem para que se inicie a repressão contra pessoas que protestavam justamente, quem diria, contra a violência das forças estatais.
Essas são algumas das muitas cenas marcantes dos quatro documentários que compõem a temática Ativismo desta edição da Mostra Ecofalante de Cinema. A seleção nos leva numa viagem por questões históricas e contemporâneas tão inspiradoras quanto urgentes para pensar os desafios dos nossos tempos.
Se você se interessa pela história do Partido dos Panteras Negras, provavelmente a imagem que te vem à mente é a de ativistas com cabelo black power, boina de lado, casaco de couro e arma na mão. Talvez você pense nos famosos 10 pontos de reivindicação do movimento, nos programas de creche e alimentação gratuita nos bairros negros ou na incrível arte de Emory Douglas. Mas é menos provável que você conheça a experiência retratada no filme Dope Is Death: A Outra Luta dos Panteras Negras.
Dirigido pela canadense Mia Donavan e com imagens de arquivo impressionantes, o longa tem seu nome tirado de um documento de 1976, feito por uma articulação que reuniu Panteras Negras, Young Lords (movimento revolucionário de porto-riquenhos nos EUA), pacientes e trabalhadores da saúde dos bairros de Harlem e South Bronx, em Nova Iorque. Como o título já diz, a ideia de que “droga é morte” fazia parte de uma concepção presente nesses e outros movimentos do período: a de que substâncias alteradoras de consciência são ruins a priori, coisas “do sistema” para alienar o povo.
Nos Estados Unidos dos anos 1970, o consumo de heroína e metadona ganhava adeptos e enchia as ruas de bairros periféricos com usuários em situação de rua, em sua maioria negros e latinos. Se o discurso antidrogas desses movimentos radicais se aproximava, em alguns aspectos, de uma perspectiva proibicionista, a ação que decidiram pôr em prática – a despeito e contra as políticas do governo – se conecta não só com aquilo por que hoje os movimentos antiproibicionistas lutam, como vai além: eles criaram uma radical e antissistêmica política de redução de danos.
Com uma compreensão holística do que é saúde e cura, a experiência desenvolvida pelos ativistas partia do pressuposto de que o cuidado é político. Ao serem tratadas não apenas como usuárias de drogas ou pacientes, mas como sujeitos, não é de se espantar que muitas das pessoas que buscaram esses cuidados tenham também se engajado nas lutas políticas antirracistas do período. “Precisávamos trazer um médico que tivesse consciência revolucionária”, conta uma das entrevistadas. Foi assim que esse projeto visionário contou com a chegada de Mutulu Shakur (padrasto de ninguém menos que o rapper Tupac Shakur), que tinha uma formação em acupuntura e de longa data se interessava por saúde pública.
É fundamental conhecer essa experiência não só do ponto de vista histórico (até porque os envolvidos lidam com as suas consequências até os dias de hoje), mas também porque assistimos a esse filme diretamente de um Brasil que, de governos supostamente progressistas aos fascistas de hoje, sustenta políticas de guerra contra seu próprio povo com o pretexto do combate às drogas. A retórica de uma pretensa (e não embasada cientificamente) epidemia de crack, temperada com pitadas de pânico moral e de defesas nada laicas da família e dos “cidadãos de bem”, é o pretexto usado pelo Estado para lidar com as populações pobres, incluindo as que fazem uso de drogas em lugares visados pela especulação imobiliária, na base da repressão e do encarceramento. Na contramão disso, o slogan da articulação retratada no documentário, Health Revolutionary Unity Movement, diz tudo: “Ame as pessoas”. E amar as pessoas sob um sistema que dita amor apenas ao mercado não é tarefa simples. Essa bem-sucedida experiência de saúde comunitária passou a ser considerada pelo governo e pela justiça estadunidenses como perigosa demais.
Um tema transversal aos quatro filmes é justamente a elasticidade do que se entende por ilegal ou perigoso. A legalidade e os seus limites são, escancaradamente, determinados pelos interesses de quem tem poder político e econômico. Não precisamos nos esforçar muito para pensar em exemplos cotidianos que reforçam o quanto nos inserimos nessa realidade internacional.
E, se não existe uma lei na qual enquadrar quem incomoda, não tem problema: cria-se uma. Foi o que aconteceu na história captada pelo documentário Ativistas Animais. “Seremos o mais criativos possível para acusá-los de alguma violação”, afirma um agente do FBI no filme, se referindo aos seis ativistas estadunidenses alvos de uma das maiores investigações da agência, a partir de 2004. E foram criativos mesmo. Na esteira do combate ao terror, que ganhou corpo depois dos atentados de 11 de setembro de 2001, o parlamento dos EUA, atuando ao lado de grandes corporações, criou a Lei de Terrorismo contra Empresa Animal, que tornou crime qualquer atividade que cause perda de lucros a uma empresa que trabalhe com animais. Na sessão parlamentar, o depoimento de um jornalista foi tão ignorado pelos congressistas quanto certeiro: “Isso não é terrorismo. Isso é ativismo eficaz”.
“Nosso crime foi fazer exatamente o que estou fazendo agora: falar”, conta Josh Harper. Ele e os outros cinco ativistas foram perseguidos pelo governo norte-americano por integrarem o SHAC (Stop Huntingdon Animal Cruelty). Tendo como alvo a Huntingdon Life Sciences, o maior laboratório de testes com animais da Europa, a campanha lutou contra a crueldade com animais por meio de protestos, escrachos e estímulo de ações descentralizadas. Conseguiram, de forma bastante inteligente, pressionar os investidores da empresa a tal ponto que era mais vantajoso que eles simplesmente retirassem os financiamentos. Imagina se a moda pega?
Filmado ao longo de 15 anos, o longa é dirigido por Denis Henry Hennelly e Casey Suchan, com a produção executiva do ator e ativista vegano Joaquin Phoenix. Ao narrar o processo que fez com que se tornasse militante, Josh Harper relata como, ao estudar a história da humanidade, se deu conta de que cada pequeno progresso em direção a um mundo mais justo aconteceu porque havia pessoas dispostas a lutar e a se sacrificar. “Nem todas tiveram sucesso em suas lutas”, diz; “Mas existe algo lindo em uma pessoa que tem um grau de abnegação que a tira da zona de conforto e a impulsiona para o mundo, a despeito de uma absoluta desigualdade na correlação de forças”.
É como pular num rio cheio de crocodilos. A metáfora foi usada por Njeri Mwangi ao descrever a decisão do marido, Boniface Mwangi, personagem central de Softie, de se candidatar para as eleições regionais de 2016 em Nairóbi, no Quênia. Fotógrafo da violência política de seu país e inconformado com a realidade estampada em seus registros, Boniface se torna um conhecido ativista. Entendendo a hipocrisia, a corrupção e a intolerância dos políticos como a continuidade de um sistema colonial, que governa com base na imposição de uma divisão sanguinária da população entre tribos, Boniface e Njeri sonham com outro Quênia.
O filme vai além das dificuldades de se fazer uma campanha limpa contra duas consolidadas e corruptas dinastias políticas que se revezam no poder desde a independência do imperialismo britânico. A discrepância entre as panfletagens de Boniface e dos outros candidatos, que do teto de carros chiques jogam camisetas e dinheiro aos eleitores, explica que as cenas em que ele se depara, nas ruas, com os pedidos de pagamento em troca de votos não retratam simplesmente uma postura interesseira por parte da população. Fazem parte da constatação, bastante empírica, de que dos políticos não se pode esperar absolutamente nada. Então, que ao menos se consiga algo para encher a barriga nas próximas horas.
Com uma bela trilha sonora, o diretor queniano Sam Soko conseguiu, em Softie, equilibrar questões macropolíticas com um íntimo retrato familiar. O que é mais importante: transformar o país ou cuidar da família? Luta política ou afetos? O coletivo ou o pessoal? Essas dicotomias, que por vezes surgem em diálogos dos protagonistas, aparecem também em várias das sinopses disponíveis na internet como uma das questões centrais de Softie. No entanto, as complexidades trazidas à tona justamente por conta de uma filmagem íntima e feita ao longo de anos demonstram como as lutas, no âmbito da vida diária, não só não comportam uma escolha entre opções binárias, como revelam que essas questões são inseparáveis.
Ainda bem, aliás, porque serão necessárias diferentes formas de engajamento para enfrentar o crescimento de movimentos totalitários em diferentes partes do mundo. O envolvimento da empresa Cambridge Analytica nas eleições do Quênia é outro elemento de Softie que costura o contexto local com um fenômeno global. Sim, é aquela mesma empresa envolvida no Brexit e também contratada pelo então assessor do Trump, Steve Bannon, que, por sua vez, se reuniu com Eduardo Bolsonaro antes das eleições brasileiras de 2018. Empresa acusada de usar ilegalmente dados de redes sociais de 50 milhões de pessoas para mapear populações, disseminar notícias falsas e manipular opiniões.
“Ser pobre dói, cara. Ensinam você a ser tímido e a evitar problemas, a priori”, expõe Boniface. “Eu era a criança mais fraca, a menor, pensavam que eu era muito fraco. Então me chamavam de ‘softie’ [‘molenga’]”. Mal sabiam eles. Também na contramão da ideia de que, sendo pobre, é melhor se calar, está a história dos moradores de Arica, cidade chilena do norte do deserto de Atacama.
O regime ditatorial de Pinochet estava em vigor quando uma mineradora sueca despejou 20 mil toneladas de lixo tóxico no deserto, ao lado de casas já estabelecidas. Como se não bastasse, o governo chileno ainda construiu ali conjuntos habitacionais para a população de baixa renda. Ao longo de décadas, a exposição às montanhas de arsênico, chumbo e mercúrio imposta a cerca de 12 mil pessoas causou numerosos casos de deformações, doenças e mortes. Filmado por William Johansson Kalén e Lars Edman (um chileno-sueco), Arica documenta, com imagens coletadas por uma década e meia, a luta pela responsabilização da poderosa empresa europeia.
Ao assistir aos quatro documentários, fica explícito o quanto, ao redor de todo o mundo, a manutenção de sistemas de poder e desigualdades se dá por meio de um entrelaçamento quase umbilical entre governos, empresas e justiça. Mas também salta aos olhos (e aos ouvidos e ao coração) a beleza e a diversidade das lutas políticas contra essa tão poderosa tríade.
Em Dope Is Death: A Outra Luta dos Panteras Negras, Felipe Luciano, um dos fundadores dos Young Lords, relata uma conversa que teve com o famoso militante antirracista Bobby Seale, no período que precedeu a criação da organização revolucionária latina nos Estados Unidos. Ele disse que queria organizar um equivalente aos Panteras Negras, que batizaria de Tigres Marrons. “Seale falou: ‘filho, vou te dizer uma coisa”, conta Luciano, “Eu sugiro que você encontre outro nome e tente trabalhar e aplicar o socialismo de acordo com as condições objetivas do seu povo. Não tente fazer o que fazemos’”. Luciano achou a resposta brilhante. Eu também.
Nos tempos duros que enfrentamos no Brasil, em que muitos defendem que a saída da barbárie está em um salvador, é fundamental mergulharmos em histórias como as retratadas nesses filmes. Não para imitá-las. Mas para que inspirem a criatividade política e a ousadia de criar novos caminhos.
–
*GABRIELA MONCAU é ativista, jornalista e antropóloga. Tem experiência com comunicação escrita e audiovisual, em temas relacionados à sociedade, política, direitos humanos, gênero, raça, classe e movimentos sociais. É co-realizadora dos minidocumentários Monocultura da Fé e Enquanto a Liberdade Não Canta – A Redução da Maioridade Penal. É autora de uma etnografia com as mulheres da Ocupação Esperança, uma ocupação de terra em Osasco (SP). É também militante do Coletivo DAR (Desentorpecendo a Razão), da Marcha da Maconha de São Paulo, do Bloco Feminista da Marcha da Maconha SP e da Frente Estadual pelo Desencarceramento de SP.