25 de julho de 2024

Anatomia da Irresponsabilidade Corporativa

Marijane Lisboa

Não há uma boa tradução para o português do substantivo inglês accountability, usado para se referir a empresas e mesmo a governos que adotem boas práticas de gestão e assumam responsabilidade por seus atos. Frequentemente tal palavra aparece na publicidade de grandes empresas, inclusive – e talvez principalmente – na daquelas que não adotam boas práticas de gestão e se recusam a reparar os danos que provocam ao meio ambiente e às comunidades afetadas.

Justiça ambiental, por sua vez, é a percepção de que as injustiças ambientais não atingem todos os grupos humanos da mesma forma, mas oneram especialmente aqueles vulnerabilizados do ponto de vista social, econômico e político. Sim, dificilmente veremos um bairro rico de alguma de nossas cidades lutando para impedir que se instale na sua vizinhança um incinerador de resíduos domésticos, uma fábrica química ou mesmo que se destruam seus parques arborizados. Há sempre uma escolha muito cuidadosa dos lugares onde instalar atividades industriais especialmente danosas. Não é só importante que haja acesso fácil a fornecedores dos insumos necessários e a mercados consumidores, já que isso se pode construir, mas, principalmente, que se encontre comunidades pobres, sem força política e econômica, de preferência de grupos minorizados e cujos governantes sejam facilmente subornáveis e cooptáveis. Muitas vezes estamos diante de um racismo ambiental, ou seja, da escolha de vítimas que são alvo de racismo em suas sociedades. São questões como essas que permeiam os filmes do eixo Accountability e Justiça Ambiental da 13ª Mostra Ecofalante de Cinema.

Imagem do filme “Água É Vida!”

No documentário Água É Vida! (Water for Life, 2023), de Will Parrinello, podemos ver, por exemplo, como comunidades indígenas mapuches no Chile e camponesas em El Salvador e Honduras se percebem subitamente atacadas no que lhes é mais essencial, a água, por empresas vindas de bem longe, que podem ser chinesas, estadunidenses e até holandesas. Essas companhias querem sua água para produzir eletricidade ou para minerar. Executivos bem vestidos, eventualmente questionados em seus países de origem ou em tribunais de justiça, mal escondem o seu desprezo por essa gente simples que ousa se opor aos seus planos, pois, afinal, justificam, estão apenas querendo trazer empregos e progresso para essas comunidades atrasadas. O fato surpreendente para aqueles últimos é que essas comunidades “atrasadas” lutam contra esse “progresso” não solicitado, buscam apoio, advogados, vão à justiça. O que acontece com os líderes desses movimentos depende muito do quanto existe nesses países de algo que se possa chamar de um Estado de Direito que garanta o mínimo de proteção aos cidadãos pobres e sem poder político. Acossados pela polícia e pela justiça, eles podem acabar acusados e presos por crimes que não cometeram, ou mesmo mortos, porque, em certas regiões, uma empresa multinacional, moderna, poderá recorrer a um método bastante local e “atrasado” e contratar um matador de aluguel. Quase sem exceções, nesses países, as autoridades nacionais e especialmente as locais são passíveis de corrupção e cooptação.

As empresas petroquímicas são outro setor industrial no qual vemos escolhas cuidadosas de áreas: reservas abundantes de petróleo e gás fóssil coincidem com a existência de comunidades vulnerabilizadas e autoridades coniventes e interessadas nas rendas a serem recebidas. Como já não é mais possível negar que as mudanças climáticas estejam diretamente relacionadas à exploração de petróleo e gás, as grandes empresas petroquímicas globais, depois de décadas de negacionismo climático, reciclaram sua publicidade para se apresentarem como empresas seriamente comprometidas com a chamada “transição energética”, como vemos em O Sistema Total, Anatomia de uma Multinacional de Energia (Le Système Total, Anatomie d’une Multinationale de l’Énergie, 2022). Nele, o cineasta Jean-Robert Viallet acompanha a transição da empresa francesa Total, uma das cinco maiores petrolíferas do mundo, para TotalEnergies. Para isso vale tudo, desde singelas mudanças de imagem e nome até a implantação de algumas usinas eólicas ou solares com fim publicitário, enquanto na surdina crescem exponencialmente seus novos investimentos em poços de petróleo e gás, de preferência, novamente, em países e regiões distantes, como países africanos, nos quais os impactos ambientais e os protestos locais não sejam visíveis e audíveis para o Primeiro Mundo.

Imagem do filme “O Sistema Total, Anatomia de uma Multinacional da Energia”

Umbilicalmente ligadas ao petróleo estão as indústrias de plásticos e de setores industriais que os utilizam na fabricação de embalagens, tecidos e materiais de construção. Os plásticos, a rigor, são um mero e inevitável subproduto da exploração do petróleo. No alemão Plastic Fantastic (2023), de Isa Willinger, vemos os diversos usos que as empresas bioquímicas encontraram para passar adiante esses resíduos, infestando o planeta. Microplásticos que não se degradam estão nos oceanos, nos peixes, nos répteis e até em nossos organismos. Um tratado internacional para eliminar a poluição com plásticos vem sendo penosamente negociado há alguns anos, enfrentando a resistência tanto da indústria petroleira como dos grandes produtores de alimentos que usam plásticos como embalagem, especialmente os de uso único. Na iminência de ver seus negócios lucrativos serem prejudicados, a indústria química mundial lança uma ofensiva de marketing verde apregoando uma eterna reciclabilidade dos plásticos e a impossibilidade de substituí-los sem que a humanidade possa subsistir. 

Entre os filmes que compõem este eixo, nota-se uma preocupação especial com os males – e as possíveis soluções – provocados pelo setor agropecuário e pela indústria alimentícia, discussão central para a contemporaneidade, que atinge a todos nós. Solo Comum (Common Ground, 2023) mostra como as novas técnicas introduzidas na agricultura no pós-2ª Guerra Mundial, como o emprego de sementes e fertilizantes industriais, agrotóxicos, máquinas e irrigação, transformaram a agropecuária em um setor que tem trazido grandes lucros para um pequeno número de empresas às custas do envenenamento do meio ambiente e dos nossos alimentos, e do empobrecimento e aridificação dos solos. O foco do documentário dirigido por Josh e Rebecca Tickell, entretanto, é em como a agricultura regenerativa recupera a fertilidade dos solos ao abandonar o uso da aragem profunda, de fertilizantes e agrotóxicos, e reintroduzir técnicas tradicionais, empregadas por povos indígenas e camponeses em todo o mundo. Ao fazê-lo, a agricultura regenerativa não só produz um alimento saudável e protege os trabalhadores de adoecerem pelo emprego de substâncias tóxicas, como também é capaz de trazer ganhos econômicos aos agricultores, poupando-lhes os gastos com insumos industriais. A agroecologia, no entanto, enfrenta uma guerra sem tréguas da parte das grandes empresas agroquímicas, que, para defender os seus negócios, exercem um lobby pesado junto às autoridades públicas, financiam pesquisas nas universidades e empreendem campanhas difamatórias contra cientistas que ousem publicar pesquisas comprovando os danos causados por seus agrotóxicos. O processo movido por um jardineiro contra a Monsanto nos EUA veio a revelar que a empresa tinha perfeita ciência de que o herbicida Glifosato poderia causar Linfoma não Hodgkin, um tipo de câncer, mas continuou negando-o até o fim.  

Imagem do filme “Solo Comum”

No ramo do chamado “sistema alimentar”, ao invés de uma accountability, predomina o marketing verde ou os discursos demagógicos sobre a contribuição do setor para saciar a fome no mundo. Em O Cheiro do Dinheiro (The Smell of Money, 2022), vemos que aquilo que chamávamos de agropecuária é hoje basicamente um cartel de poucas empresas multinacionais que produzem commodities, ou seja, proteína animal, para o mercado mundial. Desmatamento, expulsão de moradores, poluição com os excrementos de animais, pulverização com agrotóxicos, contaminação da água e do ar são “efeitos colaterais” externalizados para as comunidades vizinhas de tais empresas, enquanto estas internalizam os seus lucros. O filme de Shawn Bannon enfoca a luta vigorosa de uma comunidade negra nos EUA contra o empesteamento da sua região por uma grande empresa de pecuária suína.

Food, Inc. 2 (2023), de Robert Kenner e Melissa Robledo, por sua vez, explora um dos principais mercados da agropecuária ambientalmente insustentável e socialmente injusta: a indústria de comidas ultraprocessadas, que se especializou em produtos que imitam alimentos naturais graças ao emprego de aditivos que simulam sabor, consistência e cor. Além de não nutrir, esses “alimentos” fazem mal à saúde, podendo causar obesidade, diabetes tipo 2, ansiedade, infarto e AVC, entre outras doenças. Ao substituírem ingredientes naturais por substâncias químicas criadas em laboratórios, tais mercadorias acabam por ser bastante baratas e, portanto, preferidas pelas camadas mais pobres da população. Não só. O uso agressivo de publicidade que incorpora o resultado de pesquisas sobre ruídos e sensações táteis agradáveis nas embalagens visa a todos os públicos, particularmente às crianças, mais suscetíveis a essas propagandas. 

Imagem do filme “Food, Inc. 2”

Em todos esses filmes vemos as dificuldades, muitas vezes intransponíveis, que a sociedade civil em todos os países, e não só entre nós, do Sul global, tem de enfrentar para defender o seu direito a um meio ambiente equilibrado e saudável. Embora possam existir leis, órgãos públicos e sistemas de justiça encarregados de garantir esses direitos, o seu acesso por parte da sociedade civil, especialmente quando se trata de comunidades vulnerabilizadas, é muito mais difícil do que para as grandes indústrias, cuja influência econômica e, portanto, política chega bem mais rápido aos formuladores de políticas públicas, à própria Justiça e ao aparato repressivo estatal. 

É possível sim estabelecer uma relação direta entre a falta de accountability e a injustiça ambiental. Quanto mais certas indústrias causam danos graves e muitas vezes irreparáveis ao meio ambiente e à saúde coletiva, mais a publicidade, o marketing verde ou o greenwashing, como se queira chamar, se esmeram em escondê-los. As comunidades atingidas, entretanto, seja nos EUA, na África ou na América Latina, se organizam e enfrentam essa luta desigual, como vemos nos filmes em questão. Elas sabem que se trata literalmente de lutas de vida ou morte.  

MARIJANE LISBOA possui graduação em Sociologia pela Freie Universitat Berlin (1977) e Doutorado em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2000). Foi Relatora de Direito Humano ao Meio Ambiente para a Plataforma DHESCA por dois mandatos, de 2007-2009 a 2010-2012. Exerceu outros dois mandatos como conselheira da Comissão Técnica Nacional e Biossegurança, CTNBio, na qualidade de especialista de consumidores, entre 2012 e 2015. É membro da Rede Brasileira de Justiça Ambiental.