2 de maio de 2025

A Montanha, o Mar, a Floresta, o Animal e o Seu Irmão Humano: do Capitaloceno Colonial às Comunidades Tradicionais

Por Cristina de Branco*

Ouve-se a voz de uma senhora contando uma história dos primórdios: “Não havia humanos nem animais na Terra. Havia apenas a Mãe Terra e seus três filhos. Um dos filhos era a Montanha, o outro, o Mar, e o outro, a Floresta. Os filhos eram muito bons uns com os outros. Amavam-se e sempre se importavam uns com os outros. Um dia, os irmãos decidiram que seria melhor ter um irmão mais novo. Compartilharam a ideia com sua mãe. A mãe concordou e logo deu à luz dois filhos: o Humano e o Animal.” Entre imagens da destruição de uma montanha, uma menina quase dormindo continua escutando a história de sua avó: “Os irmãos mais velhos amavam os mais novos. Deram-lhes água, comida, roupas para vestir, um lugar para dormir e uma casa para morar. Depois de algum tempo, o Humano começou a dominar os irmãos mais velhos, fazendo coisas ruins com eles e agindo maliciosamente. Um dragão ganhou vida como resultado de suas ações. O dragão destruiu a Montanha, matou as árvores da Floresta e secou a água do Mar. A Mãe Terra ficou frustrada e matou o dragão. Mais tarde, ela exilou o Humano para desertos distantes. O Humano se arrependeu de suas ações e pediu perdão à sua mãe. Mas a Mãe Terra não o perdoou. Mesmo agora, o humano espera pelo perdão e misericórdia de sua mãe.” A menina então adormece, junto à sua avó, numa aldeia próxima à montanha Avey, no Azerbaijão, país limítrofe entre o extremo leste da Europa e a Ásia ocidental.

Por mais que esta passagem do curta-metragem Lua Sem Lar(Evsiz qalmış Ay, 2024) tenha pleno sentido no seu contexto local e temporal específico, a cena também reverbera de muitas formas em outros filmes da 14ª Mostra Ecofalante de Cinema, muito além das montanhas do Cáucaso euroasiático. O filme de Atanur Nabiyeva retrata a ternura entre uma avó e uma neta e simultaneamente delata a destruição da montanha onde vivem pela ação de explosões e tratores, pela dominação humana. Enquanto a menina domina formigas levadas da terra livre para dentro de um pote de vidro, a montanha Avey é bombardeada e desmembrada num processo de desaparecimento de si mesma pelas mãos e máquinas humanas. A sirene das pedreiras próximas grita, para susto das cabras apertadas no capril pela avó. A sirene grita como que anunciando o horror da aniquilação e a desaparição em nome de um sistema econômico alheio, indiciando o fim de um mundo próprio, lembrado com nostalgia pela própria diretora, autorretratada no último plano, refletida num espelho, entre a neta (que ela foi) e a avó (de que ela se lembra).

Imagem do filme “O Pastor e o Urso”

Essa dimensão de conflito entre o ser humano e a natureza se expressa também no documentário O Pastor e o Urso (The Shepherd and the Bear, 2024), de Max Keegan, no qual pastores franceses reagem à reintrodução de ursos pardos na Cordilheira dos Pireneus. Um pastor quase aposentado, uma pastora aprendiz e um jovem, filho de pastores e fascinado por ursos pardos, diversificam as perspectivas sobre a questão. Por um lado, os ursos são imprescindíveis ao ecossistema pireneu e tal ausência interfere em toda a cadeia. Eles são os maiores predadores de mamíferos herbívoros. Na ausência dos ursos, estes vêm se alimentando da flora da região e, pela sua atual proeminência no território, impedem que as árvores cresçam para além da fase de plântula, causando um desequilíbrio ecológico na região. Além disso, os ursos pardos quase foram extintos por força da caça ilegal praticada na cordilheira, isto é, pela intenção humana de dominar e assassinar essa outra espécie.

Por outro lado, os pastores pireneus foram por muito tempo atormentados pela presença feroz dos ursos, tendo seus rebanhos e suas vidas sempre em risco, pelo que se aliviaram dessa ameaça por um par de décadas, desde a quase total extinção dos ursos na década de 1990 até o seu retorno recente. Atualmente, uma prática humana tão antiga quanto o pastoreio na região se encontra quase extinta, em parte pela reintegração do urso pardo, espécie ainda em risco crítico de extinção. Ainda que todos esses seres vivos, os ursos, os humanos pastores e os animais herbívoros, estejam profundamente imbricados na constituição ecossistêmica dos Pireneus, essa confluência interdependente se dá de forma inerentemente conflituosa. O equilíbrio biótico da região, como de tantas outras, existe exatamente no desequilíbrio de relações entre seres, desnivelado sobretudo pelo domínio maior ou menor do Humano sobre o Animal e seus outros irmãos.

Imagem do filme “Réquiem para uma Tribo”

Noutros lados, essa confluência entre irmãos pode ser quase simbiótica de tão próxima, ainda que também em conflito, mas por outras forças. A um continente de distância, Hajar Faramarzi, pastora da etnia Bakhtiari, cuida de seu rebanho por entre as montanhas do sudoeste do Irã. Várias vozes humanas ecoam pelos vales montanhosos, “jalili! Jalili!”, é tempo de migrar. Se segue o lamento em forma de canto pela voz de Hajar, sozinha, debaixo de uma árvore também só num amplo prado dourado. Em Réquiem para uma Tribo (Marsiehei Baraye Eil, 2024), Marjan Khosravi documenta a relação da pastora com aquelas montanhas e animais, relembrando o passado recente de sua “tribo” e suas “migrações” cíclicas por meio de material de arquivo filmado há 50 anos – oriundo de People of the Wind (1976), de Anthony Howarth –, e registrando a desaparição do pastoreio nômade em nome da ilusão da modernidade urbana.

Entre imagens dos anos 1970 e atuais, Hajar conta: “Os Bakhtiari migram entre as épocas de verão e inverno. Fui nômade a vida toda. (…) Nasci na rota da migração. Meu pai me chamou de Hajar. Recebi o nome em homenagem à andorinha, porque elas são aves migratórias.” Saudosa das migrações estacionais que caracterizaram os Bakhtiari por dezenas de gerações e que determinaram a sua própria vida comunitária até os vinte e poucos anos, Hajar parece ser a personificação do nomadismo pastoril da região. Ela mesma é a montanha, é cada ovino, é cada um daqueles passos dados entre familiares e próximos, percorridos nas rotas nômades. Hajar existe como fruto daquele bioma, depende dele e a ele retorna a cada ato de cuidado com suas cabras e ovelhas. Mais adiante, ela conversa com a cineasta e com uma ovelha mãe e uma ovelha filha: “Deus sabe que eu jamais poderia deixar esta linda boneca [ovelha filha] e ir para a cidade (…) Prefiro morrer do que viver numa cidade por um dia sequer sem estas queridas [ovelha mãe e ovelha filha].”

Sentindo que chega ao final da vida e pressionada pelos seus filhos e marido, que a querem na cidade, perto do pretenso conforto urbano, Hajar decide migrar pela última vez junto à família de seus primos, dos poucos clãs que ainda migram pela região. Para isso, ela deixa as suas ovelhas dentro de um caminhão que irá reencontrá-la quase ao final do caminho. Hajar é, então, traída pelos filhos e pelo marido, que vendem seus ovinos para forçá-la a se desfazer de sua casa e ir para a cidade, obedecendo à ilusão alheia da modernidade urbana. Vê-la desencontrada de suas ovelhas, impedida de cumprir o seu próprio sonho de voltar a migrar com seu clã e com seus animais, fazê-los se alimentarem, caminharem e prosseguirem a tradição secular de sua tribo é como ver uma existência sendo amputada de sentido. Toda a sua lógica de existência está enraizada naquelas montanhas, naqueles animais e naquele caminhar que a própria família tirou dela. O dragão aqui é os humanos homens, o marido e os filhos, mas é também, de modo estrutural, o imaginário do desenvolvimentismo humanocêntrico e da modernidade urbana, criado pelo avanço de uma forma de vida hegemônica em detrimento dos modos de vida das comunidades tradicionais e daqueles envolvidos em outras lógicas de existência que não são humanocentradas.

Imagem do filme “Alma do Deserto”

Georgina Epiayú também caminha, atravessando o deserto da Península de La Guajira, extremo norte da Colômbia, junto ao Mar Caribe. O filme Alma do Deserto (Alma del Desierto, 2024), de Mónica Taboada Tapia, documenta um retrato da vida da primeira indígena da etnia Wayúu a conseguir seu registro legal enquanto mulher transgênero. Após décadas de exílio do outro lado da Guajira, fugida por conta das ameaças de morte de seus irmãos, violentamente mobilizados contra sua existência enquanto mulher trans, Georgina insiste em ter um documento de identidade colombiano com seu nome corrigido. Já próxima de conseguir esse reconhecimento legal, ela percorre o território guajiro para se reencontrar com sua família e ser, talvez, reconhecida pelos seus irmãos. Nesse percurso, ela mesma reconhece a transformação do seu território ancestral pelas mãos das indústrias mineiras que exploram a região, mudando o curso dos rios e poluindo suas águas, e pela presença ostensiva das forças militares. Ao reencontrar sua família, Georgina fortalece sua existência por meio do reencontro com seus irmãos e outros do seu clã Epiayú. A opressão vivida por ela advém da atuação direta dos irmãos, mas também da violência sistêmica da sociedade colombiana contra pessoas indígenas e pessoas trans, da agressão industrial empresarial contra seus territórios ancestrais no sentido da despossessão total. Uma vez mais, o dragão não é apenas humanos irmãos, mas o próprio sistema econômico-político criado e mantido por mãos e cabeças humanas em detrimento da terra, dos animais e dos outros humanos.

Imagem do filme “Nossa Terra, Nossa Liberdade”

Não interessa aqui repetir um discurso de inspiração crítica na ideia do “Antropoceno”, que trata das profundas e vertiginosas transformações levadas a cabo pelo Humano por cima de seus outros irmãos, Montanha, Mar, Floresta e Animal, num movimento homogêneo de opressão enquanto espécie contra outros seres vivos. Importa ir além disso, trazendo a consideração sobre o Capitaloceno Colonial, isto é, assumindo o capitalismo enquanto motor de destruição do planeta e sublinhando o quanto esse sistema político econômico hegemônico é historicamente idealizado por certos humanos e não por quaisquer e todos os humanos. A neta e a avó de Lua Sem Lar não são o motor da destruição de sua montanha Avey, como os pastores não são os únicos motivadores da quase extinção dos ursos pardos nos Pireneus; Hajar tampouco é responsável pelo fim do nomadismo no Irã ou Georgina pela despossessão sucessiva do seu território ancestral. Afinal, não se trata de pensar a humanidade enquanto um grupo humano unívoco, homogêneo, feroz contra a natureza ou contra o planeta, mas sim de assumir a pluriversalidade humana, os muitos pluriversos (em contraste com o “universo”) pulsantes e o quanto processos de dominação colonial de certos humanos contra outros humanos buscam desmembrar e capitalizar não apenas as montanhas e as florestas, mas também os próprios grupos humanos. Se trata de pensar a liberação da Terra e de todos os seus filhos enquanto a liberação também do humano pelo humano, como relembra o filme Nossa Terra, Nossa Liberdade (Our Land, Our Freedom, 2023), realizado por Meena Nanji e Zippy Kimundu.

Imagem do filme “Lua Sem Lar”

Ao acompanhar a luta da queniana Wanjugu Kimathi pelos restos mortais de seu pai, Dedan Kimathi, líder anticolonial assassinado em 1957 pelo Império Britânico, o documentário denuncia o horror dos processos coloniais de humanos contra humanos e contra territórios inteiros e releva a luta pela liberdade dos povos originários da região e da terra que habitam, hoje República do Quênia. Aqui, o dragão da história da avó e da neta azerbaijanas é evidentemente a potência imperialista britânica e seus tentáculos assassinos, combatidos pelos chamados “Mau Mau”, autonomeados como Exército da Liberdade da Terra, entre 1952 e 1960, e até hoje enfrentados em suas heranças pelos filhos e filhas dos “Mau Mau”, os “Mau Mau children”. Depois da independência do Quênia, os milhares de resistentes contra o poder colonial britânico, seus líderes e descendentes seguem sem reconhecimento oficial do Estado e sem acesso a políticas de justiça e reparação. No entanto, como Mukami Kimathi, mãe de Wanjugu e viúva de Dedan, heroína pela libertação dos povos do Quênia, profere: “O rio reclamará de volta aqueles que levou. As árvores reclamarão de volta aqueles que enforcou.” Se quem defende a terra são eles, a terra também os defenderá e reclamará. Se a liberdade é da terra, a liberdade é de quem luta por ela. Afinal, existem sim partes do irmão Humano que lutam junto com seus irmãos Montanha, Mar, Floresta e Animal para que todos entre si voltem a cuidar-se e querer-se bem.

*CRISTINA DE BRANCO é filha e neta de exiladas políticas pelas ditaduras brasileira e chilena, antropóloga visual e indigenista. Doutoranda em Antropologia pela Universidade Nova de Lisboa, foi cocriadora e curadora do Microcine Migrante (2016), em São Paulo, e do Cinesur Microcine Latino-americano (2018), em Lisboa. Tendo escrito artigos e resenhas fílmicas focadas nos cinemas de autoria e tema migrante e indígena, principalmente dos contextos latino-americanos, foi cocuradora da I Mostra de Cinemas Migrantes – Fronteiras Cruzadas de São Paulo (2024). Dirigiu a série documental Ventos do Peabiru (2023), disponível no streaming Retina Latina. É integrante-fundadora do Visto Permanente e integrante-aliada do Centro Cultural Andino Amazônico, coletivo indígena andino de São Paulo. Hoje é pesquisadora do Museu da Imigração do Estado de São Paulo.