2 de maio de 2025

Ainda Resistem Aqui

Por Mateus Camillo*

“Ainda estamos aqui. Ainda estamos lutando, mas ainda estamos aqui”. A fala de Sleydo’ Molly Wickham, uma das personagens do documentário canadense Yintah (2024), não poderia soar mais atual para o público brasileiro. O Oscar de melhor filme internacional para Ainda Estou Aqui (2024) não deixou apenas essas três palavras na ponta da língua, mas despertou um interesse pela história e memória da Ditadura Militar no Brasil (1964-1985) e pelas forças de resistência a ela, como Eunice Paiva, viúva de Rubens Paiva. Nos filmes internacionais sobre povos originários desta 14ª Mostra Ecofalante de Cinema, ecoa a mensagem de que eles “ainda resistem aqui”, apesar do genocídio a que são submetidos há mais de cinco séculos nos territórios colonizados do continente americano, e reverberam a realidade dos povos ancestrais no território brasileiro.

Imagem do filme “Yintah”

Dirigido por Jennifer Wickham, Brenda Michell e Michael Toledano, Yintah acompanha por mais de uma década a resistência do povo Wet’Suewet’En, no Canadá, em busca da soberania de seu território (Unist’ot’en) contra o avanço do gasoduto Coastal GasLink (CGL). Perdemos a conta de quantas vezes o Unist’ot’en é violado: seja por funcionários do CGL e pela polícia, que o invadem sem mandato, seja pelo sistema judiciário e pelo governo canadense, que concedem reiteradas licenças para a sua exploração. Os policiais garantem que não haverá prisões. Poucos minutos depois, rompem com a palavra. A associação com Enterrem Meu Coração na Curva do Rio, de Dee Brown, é imediata. No livro, o historiador estadunidense narra como os acordos do governo dos EUA com os indígenas foram sistematicamente quebrados logo depois de assinados, algo comum a todo o mundo colonial.

A resistência em Memória Implacável (Memoria Implacable, 2024), uma coprodução entre Chile e Argentina, vem do resgate histórico feito pela ativista e pesquisadora mapuche Margarita Canio Llanquinao de dois dos muitos genocídios contra seu povo na segunda metade do século XIX, durante a consolidação dos Estados nacionais do Chile e da Argentina, em massacres conhecidos como “Pacificação da Araucanía” e “Campanha do Deserto”, respectivamente. Margarita traduziu mais de três mil páginas dos diários de Katrulaf (que depois passaria a se chamar Juan Castro), um indígena mapuche prisioneiro de guerra e raro sobrevivente do extermínio. O documentário de Paula Rodríguez Sickert descreve com detalhes a travessia forçada dos mapuche de seus territórios a uma prisão em La Plata, na Argentina, em meio a torturas, fome e sede.

Imagem do filme “Memória Implacável”

O assunto ainda é um tabu entre os descendentes mapuches. “Só agora estou me dando conta do que se passou aqui. Meus pais, meus avós nunca falaram sobre”, diz uma das entrevistadas. Na escola, fala-se ainda menos. “Se contassem sobre o que aconteceu, os Estados do Chile e da Argentina teriam que devolver nossos territórios”, afirma outro mapuche.

A trajetória de resistência de Leonard Peltier, preso por quase meio século após um processo judicial repleto de violações ao devido processo legal, é retratada em Libertem Leonard Peltier (Free Leonard Peltier, 2025). O ativista indígena estadunidense pertence ao American Indian Movement (AIM), um dos principais grupos de defesa dos povos indígenas, fundado em 1968. Nos anos 1970, o governo dos EUA intensificou a repressão na Reserva Pine Ridge, na Dakota do Sul, e os indígenas do AIM reforçaram a resistência. Em junho de 1975, agentes do FBI invadiram a reserva para prender o jovem Jimmy Eagle. Houve um tiroteio. Dois agentes morreram e o órgão iniciou uma caçada a Peltier, que negou ser o autor dos disparos. Em fevereiro de 1976, ele foi preso no Canadá e extraditado para os Estados Unidos. Houve uma série de manobras ilegais no processo de extradição e condenação, como testemunhos falsos, provas manipuladas, mudanças de versões. Nunca se provou a culpa de Peltier. Mesmo assim, ele foi condenado à prisão perpétua.

Há história suficiente para uma série, caso os diretores Jesse Short Bull e David France quisessem. Personalidades como Marlon Brando, que já havia recusado o Oscar pela maneira como os indígenas eram retratados em Hollywood, manifestaram apoio ao ativista. A causa ganhou o mundo. Passaram-se mais de duas décadas até o governo do democrata Bill Clinton ensaiar conceder o perdão presidencial (um poder constitucional dos presidentes estadunidenses de perdoar uma pessoa condenada por um crime federal), mas uma impressionante marcha de 500 agentes do FBI em Washington, em protesto pela soltura do suposto autor da morte de seus dois colegas, colocou o mandatário contra a parede. Manifestações públicas e políticas de agentes de segurança nacional são absolutamente excepcionais nos EUA, o que dá uma dimensão da repercussão do caso de Peltier.

Imagem do filme “Libertem Leonard Peltier”

Foi preciso esperar mais 24 anos para o também democrata Joe Biden finalmente conceder a clemência a Peltier nas últimas horas de seu governo (ele, aliás, também daria a liberdade a seu filho, Hunter Biden, em decisão bastante contestada). O ativista indígena deixou a prisão em fevereiro de 2025, após quase 50 anos de cárcere. A comemoração dos ativistas indígenas do NDN Collective é comovente. Libertem Leonard Peltier foi finalizado pouco antes da soltura, mas a equipe do documentário produziu uma cena extra, que será exibida após o filme na Mostra, com Peltier discorrendo sobre sua experiência e as expectativas para o futuro.

Também há um êxtase coletivo no final do estadunidense Desterrar (Unearth, 2024), quando os moradores de Bristol Bay, no Alasca, conseguem barrar, após 21 anos de luta, a construção da controversa Pebble, mina de cobre, ouro e molibdênio, nas proximidades de suas casas, onde predomina a cultura do salmão. “Mineração e pesca não podem coexistir. Esse é um risco que nós não estamos dispostos a correr”, dizem os locais.

Imagem do filme “Desterrar”

Na linha de frente da resistência estão duas duplas de irmãos: as Salmon, nativas do Alasca, que atuam na frente regulatória, pressionando a Agência de Proteção Ambiental dos EUA (EPA); e os Strickland – codiretores do longa, ao lado de John Hunter Nolan —, pescadores independentes que investigam reuniões a portas fechadas se passando por investidores da mineração. Discursos de executivos, como “a mineração protege o meio ambiente — eu acredito piamente nisso” e “a mineração tem que acontecer onde Deus colocou mineral”, dão o tom de quem defende a mineração em Bristol Bay. A certa altura, eles quase são desmascarados e saem vazados de um evento. É nítido que não fazem parte daquele círculo. “Nós percebemos que um grupo muito reduzido de pessoas tem impacto sobre um número muito grande de humanos”, dizem os irmãos.

Imagem do filme “Patrulha”

Quando muitas forças se unem, a resistência tende a ser mais eficaz. É o que mostra o nicaraguense Patrulha (Patrullaje, 2023), de Camilo de Castro e Brad Allgood. O avanço do gado ilegal na última década na Reserva Biológica Indio Maíz, um dos lugares que mais absorvem gás carbônico no mundo, traz os problemas a que estamos acostumados na Amazônia: desmatamento, avanço da fronteira agrícola, conflitos fundiários, violência, aumento de eventos climáticos extremos. Fazendeiros terceirizam o trabalho sujo: contratam famílias locais para criar e vender o gado a frigoríficos. Para barrá-los, guardiões indígenas dos povos Rama e Kriol, um ativista estadunidense e um grupo de jornalistas se juntam para patrulhar e defender o território — sem apoio de nenhum órgão governamental.

Um raro momento em que o aparato estatal funciona é quando uma investigação liderada pelos integrantes da patrulha desbarata a ação criminosa do fazendeiro José Solis Durón. A fazenda do ruralista é destruída por agentes governamentais, para alívio dos ativistas. Esse desmantelamento das atividades criminosas remete à destruição de equipamentos de garimpo ilegal que o Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) realiza na Amazônia nas últimas décadas. Como mostrou o ativista Claudio Angelo no livro O Silêncio da Motosserra: Quando o Brasil Decidiu Salvar a Amazônia, uma série de fatores políticos aliados ao espírito do tempo permitiram ao governo Lula criar, em 2004, o PPCDAm (Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal) e reduzir o desmatamento da Amazônia em níveis sem precedentes. 

Os líderes progressistas atuais, porém, não estão comprometidos com a urgência que a pauta ambiental contemporânea requer. É o que a jornalista Eliane Brum classifica como “o negacionismo progressista”. Se alguns chegam a acusar o presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva (PT), de 79 anos, de “déficit geracional” por conta de sua visão desenvolvimentista ao encampar a defesa da exploração de petróleo na foz do Amazonas, esse já não poderia ser o caso do então premiê canadense Justin Trudeau, de 53 anos, que vemos em Yintah. Trudeau, no evento “Investindo no Canadá”, em 2018, exalta o “maior investimento privado na história do Canadá” e elogia o “desenvolvimento social responsável”. Em uma outra aparição, em 2019, ele tenta justificar as invasões em territórios indígenas e recebe um “sonoro” dedo do meio de uma indígena na plateia. “Passou da hora da geração de Lula terminar seu caso de amor com o petróleo”, defende Brum em SUMAÚMA, plataforma jornalística da qual é uma das fundadoras. O petista, aliás, assinou apenas 13 homologações de territórios indígenas desde a posse em 2023, apesar da demagógica promessa de não deixar nenhuma terra indígena sem demarcação.

O peruano Karuara, o Povo do Rio (Karuara, la Gente del Río, 2024), de Miguel Araoz Cartagena e Stephanie Boyd, nos lembra que a resistência também é espiritual. Os Kukama são um povo indígena do rio Marañón que possui uma relação umbilical com o rio. Os Karuara são seus familiares que vivem no fundo das águas. “Irei morrer pescador. Um dia que não pesco é um dia que não como”, diz José Murayari Saquirai. O rio não é tratado como um ser vivo: o rio é um ser vivo, segundo os Kukama. Por isso, um grupo de mulheres Kumama entra com um processo na justiça para que o rio Marañón seja reconhecido como um “sujeito de direito”. “Nós existimos e nós resistimos. Por isso estamos aqui”, diz a líder indígena Mariluz Canaquiri Murayari, laureada em abril com o Prêmio Goldman Environmental, considerado o “Nobel verde”.

Imagem do filme “Karuara, o Povo do Rio”

Os Kukama seguem o caminho de outros povos, como os Sarayaku, no Equador, que há 40 anos empreendem uma campanha em diferentes esferas contra as petrolíferas e o Estado. Já o rio Paraguai tornou-se um sujeito de direito em julho de 2023 em Cáceres (MT), a sexta cidade brasileira a reconhecer os direitos da natureza. Mas, lá, a decisão durou apenas um mês, por conta de uma ofensiva de forças conservadoras no município.

O ativista e filósofo indígena Ailton Krenak nos ensina diariamente que a terra e a Terra não são uma mercadoria. “Nossos ancestrais diziam: ‘nós somos a terra e a terra somos nós’”, afirma Molly, em Yintah(palavra que, por sinal, significa “território”). A inversão do centro do mundo defendida por Krenak — o centro, para ele, é onde está a natureza e a vida, não onde está o dinheiro e as cidades —, aparece com frequência nestes filmes. “[Nós, os Lakota] Somos o centro do universo, mas de riqueza espiritual”, mostra uma gravação antiga de Leonard Peltier. Madonna Thunder Hawk, em Libertem Leonard Peltier, nos recorda o óbvio: “[o massacre contra indígenas] é sempre por causa da terra”.

Eunice Paiva não se limitou a defender a memória de seu marido. Em 1973, viúva e com cinco filhos, iniciou o curso de direito e, em 1987, fundou uma ONG de defesa dos povos indígenas. Ainda Estou Aqui pouco aborda esse trabalho, que “renderia outro filme inteiro”, como defendeu a antropóloga Betty Mindlin em entrevista à BBC Brasil.

Assim como a militância de Eunice, as mortes de indígenas durante a ditadura quase nunca são mencionadas. Mesmo a Comissão Nacional da Verdade (CNV), que identificou 434 mortes e desaparecimentos políticos entre 1946 e 1988, pouco se debruçou sobre os 8300 indígenas assassinados nesse período, número que a própria CNV encontrou e que considera bastante subestimado. A Comissão investigou apenas oito dos quase 300 povos indígenas e não os contabiliza como “mortos e desaparecidos políticos da Ditadura”.

Os seis filmes desta temática deixam claro que essa não é uma tragédia restrita a períodos de ditadura ou regimes coloniais, mas sim uma realidade permanente dos povos originários em todo o mundo, sob todos os governos, democráticos ou autocoloniais, como Chile, Argentina e Brasil.

REFERÊNCIAS

BROWN, Dee. Enterrem Meu Coração na Curva do Rio. Tradução de Marcos Santarrita. São Paulo: L&PM, 2019.

ANGELO, Claudio. O Silêncio da Motosserra: Quando o Brasil Decidiu Salvar a Amazônia. São Paulo: Companhia das Letras, 2024.

BRUM, Eliane. O negacionismo progressista que nos governa. SUMAÚMA, Altamira, PA, 17 ago. 2023. Disponível em: https://sumauma.com/negacionismo-progressista-que-nos-governa/. Acesso em: 23 abr. 2025.

SANTOS, Leonardo. “Essa terra não está vazia”: quem são os povos indígenas que viviam no território brasileiro antes da chegada dos portugueses. BBC News Brasil, 16 abr. 2024. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/articles/c3d5nm0m0myo. Acesso em: 23 abr. 2025.

BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Relatório final: volume I. Brasília: Comissão Nacional da Verdade, 2014. Disponível em: https://www.gov.br/memoriasreveladas/pt-br/assuntos/comissoes-da-verdade/volume_1_digital.pdf. Acesso em: 23 abr. 2025.

*MATEUS CAMILLO é jornalista pela Escola de Comunicações e Artes da USP (ECA-USP) e editor de redes sociais de SUMAÚMA – Jornalismo do Centro do Mundo. Trabalhou sete anos na Folha de S.Paulo, onde foi repórter e editor. Venceu o Prêmio Jovem Jornalista Fernando Pacheco Jordão com a reportagem “O Brasil não é aqui”, sobre a imigração haitiana ao Brasil.