Em Meio ao Apocalipse, Poesia, Inspiração, Compreensão
Por Denis Russo Burgierman*
Lá vem mais uma Ecofalante, a décima quarta. Lembro da primeira, em 2012. Eram outros tempos. Pairava ainda no ar um certo otimismo – uma sensação de que o arco da história nos favorecia no longo prazo e de que, apesar dos tantos sinais de que as coisas não iam bem nos sistemas vivos da Terra, cabia ter fé na democracia, na mobilização cívica, na cooperação internacional. E no cinema, claro, com seu poder de moldar a cultura e de inspirar transformação. Estávamos ainda sob o impacto da marcante superprodução Uma Verdade Inconveniente (An Inconvenient Truth, 2006), filme americano de Davis Guggenheim, conduzido por um ex-candidato à presidência dos Estados Unidos, o democrata Al Gore. Com um orçamento milionário e um tom didático e de alto impacto, o filme denunciava o caráter suicida da nossa civilização movida à queima de petróleo e cobrava urgência na transformação profunda do mundo. A “verdade inconveniente” foi vista no mundo todo por muitos milhões de pessoas e, segundo uma pesquisa realizada em 44 países, dois terços do público mudaram sua visão sobre o tema por causa do filme. Parecia que ele era parte de um grande movimento de conscientização que, apesar dos desafios no curto prazo, alcançaria cada vez mais gente e inevitavelmente acabaria nos levando a um mundo diferente, melhor.
A criação, em 2012, de uma mostra em São Paulo que exibe apenas filmes de temáticas ambientais foi lida como um sinal de que esse movimento ganhava força. Não que os filmes mostrados naquela estreia pintassem um cenário cor-de-rosa – entre os seis longas-metragens exibidos no Museu da Imagem e do Som em março de 2012 (juntamente com mais de 30 curtas e médias), quase todos tratavam de temas sombrios, como o desmatamento da Amazônia e o genocídio indígena. Mas, ao menos, os filmes estavam sendo mostrados, e filmes mudam as pessoas, e as pessoas mudam o mundo.
Agora, treze anos depois, ficou bem difícil sustentar aquele otimismo. O ano da décima quarta edição é o primeiro após a Terra ultrapassar o limite de 1,5 grau de aquecimento global causado pelo homem, em 2024. O cinema não conseguiu impedir essa marca trágica – aliás, não conseguiu nem sequer reverter a tendência de aumento anual das emissões de carbono. Não é só que não fomos capazes de frear o problema: seguimos acelerando-o sem parar.
Não bastasse o aprofundamento da crise ambiental, estamos também mergulhados numa crise da nossa capacidade de prestar atenção. Ficou difícil acreditar no poder transformador do audiovisual, soterrados que estamos neste vasto lixão de imagens. Enquanto as cenas mostradas pelos noticiários ficam cada vez mais parecidas com os filmes-catástrofe de Hollywood, inteligências artificiais borram todo dia um pouco mais a fronteira entre a verdade e a ficção, e algoritmos nos submetem a uma dieta de pílulas audiovisuais altamente viciantes, que embotam nossa capacidade de sermos tocados por imagens.
Afinal, para que serve um filme neste momento tão distópico? Descrentes da democracia, traumatizados com as consequências inesperadas da mobilização cívica, velando o cadáver da cooperação internacional, como acreditar no poder transformador do cinema, diante da maior crise que a humanidade já enfrentou?
Fui procurar respostas para essas perguntas nos filmes da 14ª Mostra Ecofalante de Cinema. Um dos mais esperados desta edição é o canadense Feitos de Plástico (Plastic People, 2024), um documentário filmado ao redor do planeta, na tradição de Uma Verdade Inconveniente. Assim como o filme apresentado por Al Gore, Feitos de Plástico exibe uma quantidade avassaladora de provas de que algo terrível está acontecendo, e que precisamos sair da negação e encarar o problema. A verdade inconveniente, desta vez, é que estamos plastificando a Terra.
Trata-se do outro lado da mesma questão levantada quase 20 anos atrás por Gore: a inviabilidade desta nossa civilização sustentada por petróleo. Se Uma Verdade Inconveniente mostrou como isso nos levou à transformação da atmosfera numa estufa cada dia mais inóspita para a vida, agora a diretora – ao lado de Ben Addelman – e apresentadora Ziya Tong revela que polímeros indestrutíveis tirados do petróleo e quase sempre descartados após um único uso estão sufocando todos os sistemas vivos da Terra.
Claro que isso não é novidade para ninguém. Aliás, o cinema já retratou diversas facetas desse problema – em filmes como Plastic Planet(2009), Bag It(2010), Plasticized (2011), Plastic Paradise (2014) e Oceanos de Plástico(A Plastic Ocean, 2016). Mas Feitos de Plástico vai mais fundo ao mostrar a questão sob uma imensa diversidade de perspectivas, revelando seu caráter sistêmico.
Tem plástico se acumulando desde a montanha mais alta da Terra até o mar mais profundo. O microplástico flutua no ar que respiramos, na água que bebemos, no sangue que circula em nossas veias, no muco que escorre do nariz das nossas crianças, no interior do núcleo das células da placenta das pessoas que ainda nem nasceram. Todas as pessoas do mundo estão contaminadas com microplástico. Toda a vida da Terra, das bactérias unicelulares à maior das baleias, carrega em si ao menos um pouco desses pedaços de petróleo.
O filme pode não revelar algo novo, mas ajuda a enxergar o absurdo da situação na qual nos metemos. Todos os ciclos da Terra estão carregando plásticos enquanto circulam, contaminando tudo, envenenando toda a vida que existe. Talvez você já saiba disso, racionalmente, mas Feitos de Plástico ajuda a compreender a questão no corpo. Ao final do filme, tive a sensação de ser capaz de sentir a presença do plástico nos meus pulmões, no meu sangue, nas minhas células, nas profundezas mais íntimas da minha subjetividade.

Se Feitos de Plástico, ao contar uma vasta história sobre algo que está acontecendo no planeta inteiro, me fez refletir sobre o que há de mais íntimo em mim, o segundo filme ao qual assisti, o belga Apple Cider Vinegar (2024), me levou pelo caminho oposto. O ponto de partida desse filme estranho e encantador dirigido por Sofie Benoot foi uma pedra quase branca do tamanho de uma uva-passa que apareceu no rim de Siân Phillips, uma narradora de documentários de natureza aposentada. O título do filme faz referência ao vinagre que dava alívio a Phillips durante suas dolorosas crises renais.

Apropriando-se de um estilo de narração emprestado dos clássicos documentários sobre natureza, da escola da BBC, moldado em parte pela própria Phillips, Benoot parte dessa formação mineral surgida dentro do corpo humano para desenvolver uma tese sobre as rochas e seu papel crucial para a vida. O roteiro, carregado de humor e melancolia, vai aos poucos tecendo conexões inesperadas entre a pedra no rim e outros personagens profundamente conectados a minerais: uma família cuja casa foi coberta de lava na Ilha do Fogo, em Cabo Verde, uma comunidade arrancada da terra na Palestina para que Israel possa extrair rochas do chão, uma investigadora que soluciona crimes a partir do estudo de minerais.
Aos poucos, essa soma de estranhas subjetividades vai revelando um planeta todo interconectado, no qual os minérios circulam incessantemente, como se fossem vivos. E é claro que o organismo dessa Terra viva que Benoot descreve está todo contaminado de plástico. Um dos personagens, aliás, é um artista que se dedica ao trabalho paciente de extrair microplástico da natureza para com ele esculpir obras de arte monumentais na paisagem.

Por último, vi Middletown (2025), do casal de documentaristas americanos Jesse Moss e Amanda McBaine. O filme conta a história de um outro filme: Garbage Gangsters and Greed (“lixo, mafiosos e ganância”), um documentário produzido como trabalho escolar por uma turma de estudantes de ensino médio em 1997. Liderados por um professor idealista, Fred Isseks, os adolescentes iniciaram uma investigação sobre um lixão ilegal que eles descobriram no interior do estado de Nova York. Inicialmente ignorados e ridicularizados, os alunos acabaram revelando um grande crime ambiental, perpetrado pela Máfia diante da negligência cúmplice de governantes e da imprensa.
Em Middletown, que é o nome da escola onde Isseks deu aula, os autores do filme são entrevistados, 30 anos depois, para tentar entender o impacto que aquela investigação teve em suas vidas. A uma certa altura, o entrevistador pergunta a uma das ex-alunas se Garbage Gangsters and Greedé um bom filme. “Não!”, ela responde, enfaticamente. Claro que não, era um exercício escolar, amador, carregado de ingenuidade. Ainda assim, ele gerou consequências profundas e impactos duradouros naquela comunidade. E alterou para sempre a trajetória de vida de muitos daqueles jovens.
Nenhum dos filmes aos quais assisti – e arrisco dizer, nenhum dos mais de cem filmes exibidos pela Mostra – vai ser capaz de, sozinho, salvar a Terra desta crise sistêmica que nos ameaça. Assim como os estudantes da Middletown High School, já passamos da adolescência e deixamos a ingenuidade para trás. Um filme, por si só, não tem o poder de mudar o mundo.
Mas isso não significa que o esforço de deixar por uma hora ou duas as timelines infinitas e os microvídeos viciantes de TikTok de lado para entrar fundo numa narrativa cinematográfica não tenha suas recompensas. Um filme ainda tem o poder de nos fornecer inspiração, como Middletown faz, a partir da história quixotesca de um bando de adolescentes que se descobrem atores políticos relevantes a partir de uma investigação jornalística. E de nos tocar a alma com poesia, como Sofie Benoot faz, tecendo múltiplas conexões em Apple Cider Vinegar. E também de aprofundar nossa compreensão dos grandes fenômenos globais, como faz Feitos de Plástico.
Se há ou não saída para este apocalipse que nossa própria espécie engendrou, só o futuro dirá. Mas uma coisa é certa: haverá testemunhas.
*DENIS RUSSO BURGIERMAN é jornalista, editor e escritor e tem 52 anos. Ex-diretor de redação de publicações como Superinteressante e Vida Simples, foi também editor-chefe do programa Greg News, da HBO Brasil. Escreveu livros como Piratas no Fim do Mundo (2003), um relato de uma expedição à Antártica para combater baleeiros, e O Fim da Guerra (2011), sobre novas políticas de drogas. Comandou a curadoria da primeira edição do TEDxAmazônia, em 2010, evento no qual até hoje trabalha voluntariamente como curador e preparador de palestrantes. Foi JSK Fellow na Universidade Stanford entre 2007 e 2008. É pai de Aurora (11 anos) e Francisco (8).