2 de maio de 2025

Cabras Marcados para Morrer

Por Heitor Augusto*

– Como está seu ânimo hoje?

– Ah, o de sempre: acordo esperançosa, deito desiludida.

Natalia Zubkova em Neve Negra

*

A despeito disso, ela persistiu.

Discurso do então líder do Senado estadunidense Mitch McConnell, justificando sua decisão de censurar a também senadora Elizabeth Warren em fevereiro de 2017

Ainda que as redes sociais tenham trazido visibilidade a diferentes ativismos, o ato de se organizar, resistir e eventualmente manejar o ricochete trazido pela vida na militância não se inaugura, de forma alguma, com o mundo digital. Também não é nova a relação que o cinema busca estabelecer com aqueles cuja atuação política mira a redução de desigualdades. A própria referência feita pelo título deste ensaio ao incontornável documentário de Eduardo Coutinho indica a historicidade da luta e a presença do cinema.

Contudo, num momento da história mundial particularmente desafiante para o mundo ocidental, resistir contra o esfarelamento de democracias liberais, o extrativismo estruturante do capitalismo e as práticas agrícolas predatórias toma contornos ainda mais dramáticos.

Cinco dos filmes em exibição na 14ª Mostra Ecofalante de Cinema abordam assuntos urgentes nos Estados Unidos, na Hungria, Noruega e Rússia, filmando e dando a ver as respostas dos ativistas. Entre as reflexões que este conjunto de filmes nos leva a fazer, quiçá a mais atemporal seja a constatação de que a militância, o ativismo e a resistência são como um elástico que se estica e contrai, de forma contínua.

Ou seja, onde há sociedade, há luta.

Imagem do filme “Neve Negra”

Inimigos do Estado

Um dia você acorda e a neve que caiu em seu bairro tem a cor negra. Tempos depois, nesse mesmo lugar, focos de fumaça emergem da terra – literalmente. E você, uma mulher comum cuja vida até então passava longe de um típico roteiro de militância, torna-se uma ativista. Num curto espaço de tempo, o Estado a classifica como uma perigosa inimiga que precisa ser neutralizada.

Esse é o retrato construído por Neve Negra (Black Snow, 2024). A mulher, no caso, é Natalia Zubkova, uma dona de casa na pequena cidade de Kiselyovsk, na porção russa da Sibéria. Dirigido pela jornalista Alina Simone, o filme acompanha a jornada de Natalia durante sua transformação em ativista ambiental contra a mineração abusiva na cidade e na região conhecida como Kuzbass, conjunto de cidades que constituem um dos territórios mais poluídos da Sibéria.

O filme apresenta as dualidades do impacto da militância na vida dos indivíduos, como relacionamentos “interideológicos”, desafios da organização comunitária, a dependência econômica da mineração e o desequilíbrio de forças entre Estado e pessoas. O que sustenta o filme é, contudo, a resiliência de sua protagonista e a identificação empática do espectador.

Não apenas Natalia é indômita, mas o próprio Neve Negra também o é. Chama a atenção a coragem da diretora e da protagonista. Causa fascínio como conseguem revelar a maneira em que, nos buracos da burocracia, manifestam-se as práticas de um Estado autoritário. Ao trazer à luz o espaço para a censura permitido por um véu de procedimento burocrático, o filme nos permite ampliar nosso imaginário acerca do autoritarismo, bem como da fragilização da democracia.

É direta a conexão entre os eventos representados por Neve Negra e a resistência das personagens de Democracia Noir (Democracy Noir, 2024). No filme de Connie Field, acompanhamos militantes húngaros que tentam resistir ao afrouxamento da democracia liberal na Hungria desde a ascensão de Viktor Orbán ao posto de primeiro-ministro em 2010.

O mérito do documentário está em organizar cronologicamente como o premiê, pouco a pouco, tem transformado a democracia húngara numa espécie de regime híbrido, utilizando-se tanto da perseguição a agentes atuantes em prol da democracia (juízes, jornalistas, ativistas) como de benesses a porções carentes do país. O filme revela também a estrutura corrupta que permite a circulação de riqueza entre poucas mãos.

Democracia Noir é mais uma peça de um quebra-cabeça investigativo no qual jornalistas ao redor do mundo registram a ascensão da extrema direita via eleições e seus atos antidemocráticos uma vez no poder. Além de mostrar as conexões estabelecidas pelo campo conservador, o filme da estadunidense Connie Field se beneficiaria de uma reflexão mais detida acerca das falhas das esquerdas e da inaptidão do campo progressista em frear tal ascensão. Ainda assim, o documentário deixa o público com uma necessária ponderação: que tipo de ativismo é possível frente a uma correlação de forças tão desfavorável?

Imagens do filme “Democracy Noir”

Sem direito de existir

O ataque sistemático às populações LGBTQIA+ é uma das características compartilhadas pelas direitas que vêm ascendendo ao poder nos últimos 15 anos. Utilizando táticas como forjar artificialmente um inimigo comum e propagar um discurso apocalíptico da família, o campo conservador vem rifando essas vidas, direcionando uma perversidade especial às pessoas trans.

Rigoroso Escrutínio (Heightened Security, 2025) parte do pioneirismo de um advogado para construir um amplo retrato macro de medidas políticas e arcabouços discursivos que miram extinguir o direito de pessoas trans à vida. O filme acompanha Chase Strangio, advogado da União Americana pela Liberdade Civil, durante sua preparação para arguir, frente à Suprema Corte, contra uma lei do Tennessee que impede o acesso de jovens trans ao sistema de saúde.

Imagem do filme “Rigoroso Escrutínio

A direção de Sam Feder oferece uma experiência informativa acerca da prática criminosa da restrição a direitos. O filme é particularmente certeiro ao analisar a conexão direta entre cobertura midiática e a proposição de legislações restritivas. Ao retratar o cotidiano de Chase num período anterior à segunda eleição de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos, o documentário é uma mirada para um país que ainda não havia mergulhado com tamanha intensidade rumo ao obscurantismo.

Agricultura familiar e práticas antiextrativistas

A despeito da distância geográfica e das identidades dos universos retratados, Uma Nova Selva (A New Kind of Wilderness, 2024) e Terra Negra, Mãos Negras (Farming While Black, 2023) formam um díptico improvável. Entre os rincões da Noruega e a costa leste dos Estados Unidos surge uma inesperada conexão, cujo elo está no questionamento ao extrativismo tanto na relação com a terra como com os indivíduos.

Na intimidade de uma família biparental, a personagem anuncia sua identidade: “Mãe de quatro crianças, fotógrafa, amante da natureza”. Um corte indica a chegada de um elemento inesperado – uma doença fulminante acomete a matriarca. A partir do desmoronamento do mundo sonhado pelas personagens, Uma Nova Selva estabelece o cenário: uma família de agricultores incrustada nas florestas norueguesas; pessoas dispostas a conduzir suas vidas à parte do Estado.

Imagem do filme “Uma Nova Selva”

Há, para citar o português Tabu (2012), de Miguel Gomes, um Paraíso e um Paraíso Perdido. No documentário de Silje Evensmo Jacobsen, o Paraíso é a vida constituída por um casal norueguês-britânico. Nele, a família produz seu alimento, educa suas crianças em casa e extrai do meio ambiente o necessário. O Paraíso Perdido instaura-se em decorrência da morte da matriarca, evento que força a adaptação de toda a família. Interrompe-se um projeto de vida de integração total humanidade-natureza e inicia-se uma contínua negociação com a “civilização”.

Uma Nova Selva seduz pelo tom de intimidade que logra construir. Testemunhamos um ativismo silencioso da família, registrado no cotidiano das práticas. Suas convicções são firmes, mas expressas sempre a partir do seio daquele núcleo. O filme se distancia de grandes slogans ou respostas coletivas, mas não se esquiva de tecer comentários, por meio de cortes e decupagem, acerca do mundo para o qual os adultos têm de voltar – e as crianças, conhecer. O luto é, de fato, a matéria que sustenta o filme.

Contudo, o longa-metragem consegue, ainda assim, fomentar uma profunda reflexão acerca não apenas da relação dos humanos com a natureza, mas especialmente com as instituições que constituem o Estado-nação. Extrapolando o filme, assistir a Uma Nova Selva alarga o imaginário espectatorial. Num certo recorte brasileiro, quando vislumbramos populações com dificuldade de se adaptar ao mundo ocidental, suas instituições – escolas, hospitais, bancos, burocracias – e práticas ambientais – pilhagem, acúmulo, extrativismo, comoditização –, o que vêm à mente são os povos indígenas. Nesse documentário, são noruegueses de brancura incontestável que atravessam tal jornada, gerando, assim, um produtivo deslocamento.

Se no filme norueguês a raça não é uma variável que informa a crítica ao capital, em Terra Negra, Mãos Negras ela é o vetor analítico. No documentário de Mark Decena, o ativismo é tudo menos silencioso, e o seio familiar representa um ponto de partida para a enunciação de problemas estruturais.

Imagem do filme “Terra Negra, Mãos Negras”

No longa, conhecemos três personagens negras que chegaram à agricultura por meio de diferentes rotas. Em comum, contudo, está a clareza política de suas práticas. O documentário abre com a assustadora estatística de que, em 1910, 14% da propriedade da terra estava na mão de afro-americanos; atualmente, esse número não passa de 2%. Para espectadores minimamente familiarizados com a história racial nos EUA e com o sistema jurídico que organizou, por um século, a segregação racial, tal estatística posiciona o filme num gesto crítico de questionamento às narrativas de progresso pós-1964.

Para um público leigo, Terra Negra, Mãos Negras apresenta o trabalho de uma geração contemporânea de pessoas negras que reivindicam a posse de terra, ato que entra em conflito direto com as ações terroristas da supremacia branca contra a prosperidade econômica negra ao longo da história estadunidense.

Já que a raça é o vetor analítico da criticidade do documentário, o filme aborda interessantes conceitos e convida à reflexão. Traça-se uma linha direta entre a plantation economy, ou economia escravocrata latifundiária, e a agricultura industrial. O próprio conceito de “deserto alimentar” é atualizado para “apartheid alimentar”, de forma a enfatizar a ação humana sobre a falta de acesso a alimentos orgânicos.

Em Terra Negra, Mãos Negras, o ativismo em prol de práticas agrícolas sustentáveis é enquadrado dentro da discussão de justiça alimentar, de forma a se integrar com outras pautas naquele território, tais como justiça social e ambiental. Num território no qual o fomento ao que no Brasil se convencionou chamar de “comida de verdade” parece se assemelhar a um crime capital, a militância das personagens do documentário representa, inesperadamente, um modo alternativo de vida.

Um dia após o outro

Este conjunto de filmes navega por sentimentos como frustração, esperança, desânimo, crença e cansaço. Acompanhando a jornada de pessoas muitas vezes comuns, mas cujas circunstâncias as fizeram se transformar em ativistas, esta seleção presente na 14ª Mostra Ecofalante de Cinema enfatiza como a nossa relação tanto com o planeta como com outros seres humanos têm de mudar. Para citar uma das personagens de Terra Negra, Mãos Negras: “A forma com que tratamos os seres humanos se reflete na maneira com que tratamos a Mãe Terra”.

*HEITOR AUGUSTO é curador, consultor e pesquisador em cinema desde 2008. No campo da curadoria, seus projetos se destacam por premissas inovadoras de investigação e rigor de pesquisa. Além da vasta experiência em festivais brasileiros, Augusto tem trabalhos na Alemanha, Canadá, França e Estados Unidos. Em 2025, faz parte da equipe de advisors para cinema da 35ª Bienal de São Paulo.